/“… Reusement!”

trecho do livro Biffures, de Michel Leiris

tradução de Alain Mouzat

“… Reusement!”

Michel Leiris

No chão impiedoso do cômodo (sala de visita? sala de jantar? tapete pregado de ramagens desbotadas ou então tapete móvel de cenário qualquer onde eu inscrevia palácios, sítios, continentes, verdadeiro caleidoscópio com o qual minha infância brincava, combinando nele construções feéricas, tal um roteiro para mil e uma noites que não me abriam então as folhas de nenhum livro? assoalho nu, madeira encerada de lineamentos mais escuros, cortados rente pelo negrume rígido das ranhuras de onde eu brincava, por vezes, de tirar flocos de poeira, quando tinha tido a sorte grande de alguma agulha caída das mãos da costureira diarista?) no chão irrecusável – e sem alma – do cômodo (aveludado ou lenhoso, enfeitado ou despojado, apropriado para as corridas da imaginação ou para jogos mais mecânicos), na sala de visita ou na sala de jantar, na penumbra ou na luz (segundo se tratasse ou não dessa porção da casa onde os móveis normalmente são protegidos por capas e todas as modestas riquezas frequentemente subtraídas, pela barragem das venezianas, dos ataques do sol), nesse recinto privilegiado acessível apenas aos adultos – e grota tranqüila para sonolência do piano – ou num local mais comum que encerrava a grande mesa com extensões em volta da qual toda ou parte da família se reunia para o rito das refeições cotidianas, o soldado tinha caído.

Um soldado. De chumbo ou papel machê. Figurinha delicadamente moldada e colorida, ou um desses bonecos toscos, pintados de azul, vermelho, branco, preto e cujo corpo se mostra, quando quebram, feito de uma matéria suspeita e indigente, esbranquiçada ou cor de barro.

Um soldado novo ou antigo. Anteriormente colocado junto de seus companheiros – ou de outros modelos diferentes, exército heteróclito! – numa mesa bem estável ou num aparador talvez ornado de chinesices ou de figurações animais tal como cegonhas se esse aparador nada mais for que um dos elementos de uma desses móveis encaixáveis chamadas de “ móvel gigonha” que (como o nome indica) só podem ser decorados de cegonhas.

Um soldado, possivelmente francês. E que tinha caído. Escapado de minhas mãos inábeis, ainda inaptas a traçar, num caderno, nem mesmo meros garranchos.

O importante não era que um soldado tivesse caído, que fosse um militar – e não tal outra criatura – que tivesse sido vítima dessa queda. Naquele tempo, não creio que a palavra “soldado” significasse para mim algo muito preciso. Mal sabia que um soldado francês se reconhece pela calça vermelha. Talvez eu já me tivesse extasiado, na rua d´Auteuil, na vitrine da mercearia Meuredefroy, com um painel de propaganda onde se via – representada por personagens articulados de papelão recortado – uma cena de refeitório ou de cantina em que os protagonistas eram uns homens vestidos de fardeta ou trajando a casaca azul e a calça vermelha. Talvez eu já tivesse fixado meu olhar nesse burlesco quadro animado, de cores gritantes, seguindo pela rua d´Auteuil um dia em que me levavam para passear no Bois.

Mas, com toda certeza, não dedicava aos “soldados” nenhum interesse particular; não me preocupava nem um pouco em inteirar-me sobre a diversidade dos uniformes e possuía, de soldados, apenas uma parca série, em vez da abundante coleção de que seria dono mais tarde, incluindo sobretudo soldados de estanho (comprados aos poucos, em caixa oval de madeira fina que, dependendo do formato, custavam respectivamente 13, 19, 28 e 32 sous) e cuja mais bela jóia foi uma tropa de guerreiros medievais – cavaleiros de armaduras umas douradas, outras prateadas – enfrentando-se num torneio, lanças em riste e montadas a galope.

O essencial não era que um soldado tivesse caído: um soldado não evocava nenhum eco definido em mim. O essencial era que houvesse algo me pertencendo que tivesse caído e que essa coisa me pertencendo fosse um brinquedo; que essa coisa caída fosse um objeto referente àquele mundo fechado dos brinquedos – que voltam a ficar trancados em caixas quando já se parou de brincar – a esse mundo prestigioso e separado cujos componentes, pela sua forma, sua cor, contrastam com o mundo real ao mesmo tempo que o representam no que ele tem, talvez, de mais agudo. Mundo à parte, que vem somar-se ao quotidiano como as iniciais gravadas vem somar-se aos copos de prata e os penduricalhos às correntes de relógio; mundo intenso, análogo a tudo o que, na natureza, faz ofício de objetos de adereço: borboletas, papoulas nos trigais, conchas e estrelas do céu, e até os musgos e liquens, de que rochedos e troncos parecem ter sido ornados.

Um de meus brinquedos – e pouco importava o que fosse: bastava que fosse um brinquedo -, um de meus brinquedos havia caído. Com grande perigo de quebrar, pois a queda havia sido direta e a altitude – medida acima do nível do chão – de uma mesa ou de um simples aparador, é longe de ser desprezível, em se tratando da queda de um brinquedo.

Sobre um de meus brinquedos, em razão de minha imperícia – causa inicial da queda – pairara a destruição. Um de meus brinquedos, isto é, um dos elementos do mundo aos quais, naquele tempo, eu era o mais estreitamente apegado.

Rapidamente, me abaixei, apanhei o soldado jazido, apalpei, e olhei. Ele não estava quebrado, e viva foi minha alegria. O que expressei exclamando: “ …Reusement!”

Nesse cômodo mal definido – sala de visita ou de jantar, salão nobre ou sala comum -, nesse lugar que não era senão o lugar da minha brincadeira, alguém com mais idade – mãe, irmã ou irmão mais velho – estava comigo. Alguém mais avisado, menos ignorante do que eu era, e que me fez observar, ao ouvir minha exclamação, que o que se deve dizer é “heureusement” e não, assim como eu o tinha feito: “ Reusement!”.

A observação cortou minha alegria ou, melhor – me deixando um breve instante pasmado – não demorou em substituir a alegria, pela qual meu pensamento tinha sido inicialmente preenchido por inteiro, por um sentimento curioso, do qual mal consigo, hoje, desvelar a estranheza.

Não se diz “…reusement”, e sim “ heureusement”.

Essa palavra, empregada por mim até então sem nenhuma consciência de seu sentido real, como uma interjeição pura, está ligada a “ heureux” e, pela virtude mágica de tal aproximação, se viu inserida de repente em toda uma seqüência de significações precisas. Apreender de uma vez na sua integridade essa palavra que antes eu sempre tinha arranhado tomou uma feição de descoberta, como o rasgar brutal de um véu ou o ofuscar de alguma verdade. Eis que esse vago vocábulo – que até o presente me tinha sido totalmente pessoal e permanecia como fechado – ficou, por um acaso, promovido ao papel de elo de um ciclo semântico.

Ele não é mais agora coisa minha: participa desta realidade que é a linguagem de meus irmãos, de minha irmã, e a de meus pais. De coisa própria a mim, tornou-se coisa comum e aberta. Aí está ele, num piscar, tornado coisa compartilhada ou – se quiserem – socializada. Ele não é mais agora a exclamação confusa que escapa de meus lábios – ainda bem próxima de minhas vísceras, como o riso ou o grito – ele é, entre outros milhares, um dos elementos constitutivos da linguagem, desse vasto instrumento de comunicação do qual uma observação fortuita, emanando de uma criança mais velha, ou de uma pessoa adulta, a respeito de minha exclamação consecutiva à queda do soldado no assoalho da sala de jantar ou no tapete da sala de visita, me permitiu entrever a existência exterior a mim mesmo e cheia de estranheza.

No chão da sala de jantar ou de visita, o soldado de chumbo ou de papel machê, acaba de cair. Eu exclamei: “ Reusement!” Me corrigiram. E, por um instante, permaneço pasmado, entregue a uma espécie de vertigem. Pois essa palavra mal pronunciada, e da qual acabo de descobrir que ela não é na verdade o que tinha acreditado até então, me preparou para sentir confusamente – graças à espécie de desvio, de discrepância que foi dessa feita imprimido ao meu pensamento – em que a linguagem articulada, tênue tecido de minhas relações com os outros, me ultrapassa, estendendo para todo lado suas antenas misteriosas.