Esses fatos se passam em Paris entre o dia 24 de janeiro e o dia 10 de fevereiro de 2005.
JORGE FORBES
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Varig, São Paulo – Paris, ao meu lado um rapaz de vinte e um anos, do interior do Paraná.
– Estou indo jogar bola na Espanha. Lá é mais fácil, tem menos brasileiro do que no Paraná.
É a sua segunda viagem de avião, a primeira foi do Paraná para o aeroporto internacional de São Paulo. A companhia deu-lhe um up grade para a classe executiva. O efeito Espanha já está funcionando. Pergunta-me como usar a quinquilharia aérea. Eu respondo.
Ao chegarmos a Paris, sobrevoando a cidade, mais uma pergunta:
– A gente atravessou um oceano, ou ainda não?
Em pouco tempo ele vai dar as caras, provando que o mundo é uma bola.
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O cartão de fidelidade funciona. É curioso: você viaja na Varig porque tem milhas – só por isso – e quando usa o seu presente, já ganha um pedaço do próximo, a saber, mais milhas. Vai ver que é por isso que empresa aérea chama-se ‘companhia’: porque descobriu a certeza da fidelidade, mesmo que capenga.
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Aeroporto Charles de Gaulle, sempre em reforma, com aquela plaquinha que diz que é por nossa causa o incômodo. Não pude entrar na livraria do desembarque, tive que descer ao ‘boutiquaire’. Nas mesas das livrarias parisienses você tem uma fotografia dos fatos intelectuais do momento. Muita biografia, como me profetizou Antoine Gallimard, há seis anos. Ele conhece seu métier! Não se trata de ser importante e sim, singular. Compro o último Modiano, uma auto-biografia, com o sugestivo nome de Pedigree… Compro também a heterobiografia “BHL”, pelo mesmo autor que fez o livro-ataque ao Le Monde. Ele agora critica a má influência de Bernard-Henri Lévy, que inventou o ‘intelectual midiático’. Jacques-Alain Miller saiu em defesa, com um artigo laudatório.
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Encontro Jacques-Alain no dia da chegada, terça-feira. Jantamos no Vavin. Ele me diz que passado o luto, sente-se com a ‘pêche’, entusiasmo. Voltamos a jantar no dia seguinte. Vimo-nos ainda no sábado. Visitamos a exposição do Veronese, no Luxemburgo, e fomos à Closerie de Lilas. Não faltou a lembrança de Hemingway. O pianista do local, um brasileiro, está cada vez mais inchado. O principal da conversa foi a respeito da psicanálise no mundo e suas novas formas, motivado pelo Fórum do sábado da semana seguinte. O ministro da saúde acabava de confirmar sua presença. Ele me pede que convide Jean Marie Rouart, o mais jovem ‘imortal’ francês, com quem eu almoçaria no dia seguinte.
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Sexta-feira, longa conversa com Eric Laurent, sobre a atualidade do modelo ‘Escola’, como instrumento para a psicanálise. Como prosseguir com muitos, em um tempo de singularidades? É possível? Também falamos da preocupação do momento: o ensino esotérico e o exotérico. Jacques-Alain comentando o Seminário ‘O Sintoma’, de Lacan, que acaba de estabelecer, entende que algumas complicações são devidas à precaução de Lacan em não assustar seu auditório, exotérico, reservando a clareza para os mais próximos, esotérica. Isso é complicado: criticável pela faceta manipulação, defensável pela faceta estratégia, da mesma ordem de uma licença poética. Será que o Real precisa de proteção? A melhorar.
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Maison de l’Amérique Latine, sexta à noite, jantar de início de ano e das atividades. Cinqüenta pessoas, uma porção de embaixadores, a ponto que ser diferente é não sê-lo. Sérgio Amaral, pessoalmente, é ainda melhor que como porta-voz monotonal. É a sublime exceção à regra da cordialidade brasileira. Lula já lhe deu o bilhete de volta. Ele, Amaral, e o Brasil são contraditórios. Indicam-me uma mesa no salão Souza Dantas. Nosso Schindler foi também quem fundou a Maison, há sessenta anos. Emoção de alguns ao saberem da presença de um descendente. Emoção minha ao ser abraçado, fortemente, por um senhor que me diz, com lágrimas nos olhos, que, se não fora o Embaixador, ele não estaria ali.
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Almoço com Jean-Marie Rouart, no domingo. Tínhamos previsto sermos rápidos, uma hora. Estouramos em muito. O meio intelectual parisiense comenta seu recente e ousado discurso de recepção a Giscard D’Estaing, na Academia francesa, em dezembro. Quem leu o livro de Rouart, que em breve será lançado no Brasil, pela Manole, ‘Nous ne savons pas aimer’, conhece a relação difícil dos dois. O discurso pode ser lido no site da Academia. Rouart me pergunta sobre a presença da literatura francesa no Brasil. Fica impressionado quando lhe respondo que d’Ormesson é quase desconhecido. Está radiante com ‘Nós não sabemos amar’. Comento-lhe da importância desse seu livro em português, indicação minha a Manole, que se antepõe à epidemia das publicações de ‘auto-ajuda’.
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Algo novo acontece no domínio da psiquiatria e da saúde mental. Ele foi expresso nesta sexta-feira, pelo Ministro da Saúde Philippe Douste–Blazy ao apresentar o seu esperado plano psiquiátrico “… o próprio da saúde mental é que ela deve se confrontar ao sofrimento nascido do mais íntimo. Em face deste sofrimento secreto, indizível, o primeiro dever de uma sociedade fundada sobre a solidariedade e as liberdades é reconhecer que não pode haver aí só um tipo de resposta. O sofrimento psíquico não é nem avaliável, nem mensurável”. Aí está a novidade: um homem público que tem a coragem de não ceder à fácil e tanto quanto perigosa tendência atual de oferecer falsos semblantes de segurança, através de critérios empíricos de avaliação e controle, a uma população desbussolada por fenômenos tenebrosos, como a decapitação de duas pessoas na cidade de Pau, ou do recente assassinato no metrô parisiense. Douste–Blazy disse não à fórmula reacionária que prega que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Ele disse sim ao desejo e à responsabilidade subjetiva, fora do standard. Ele reenlaçou a psicanálise com a psiquiatria, sabendo distinguir claramente as diferenças, o que é fundamental para a colaboração. Ele aguarda as respostas dos Psi.
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Perguntei a Douste-Blazy, em público, se ele concordava que compreendêssemos que o seu plano, além das mudanças no investimento hospitalar e na formação dos agentes de saúde, tinha como principal característica uma radical mudança na orientação seguida até recentemente sob a influência de uma psiquiatria biológica associada a técnicas cognitivas. Em outras palavras, perguntava se ele chegou à conclusão que uma das principais fontes dos problemas que se apresentam hoje no atendimento psiquiátrico é dado pelo desconhecimento da clínica, provocado pelos formulários americanos dos DSM (Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais). Ou ainda, poderia dizer com Lacan, o recalcado no Simbólico retorna, com violência. no Real. O Ministro respondeu-me longa e afirmativamente, e, logo em seguida, continuou em conversa pessoal.
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Francesinhas:
“C’est compliqué” – ah, como todos assim não se explicam: c’est compliqué!
O Restaurante.
Você entra e, mesmo se estiver vazio, sua mesa será só para um, sem cadeira para sacola ou pasta. C’est logique.
Você entra e o garçon quase pergunta: – O que o senhor está fazendo aqui? E ainda por cima quer comer? Ah, é demais!
Convite: – Vamos almoçar? Que tal voltarmos àquele restaurante ao lado do meu trabalho? “Ça m’arrange”. Triste ilusão pensar que sua presença desarranja. Não, sua presença não muda nada.
-“Ici on travaille beaucoup”, não é como nessas cidadezinhas americanas: São Paulo ou Nova Iorque…
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Gilles Lipovetzky deixou Grenoble e veio passar dois dias em Paris. Ele parece com Cícero Dias em sua relação com o Recife. É desde lá que ele vê o mundo, e quão bem! Em agosto Gilles irá – ou virá – ao Brasil. Ron, ele e eu estamos preparando um seminário juntos, que também terá Sir Ken Robinson, da Getty Foundation e, provavelmente, Manuel Carrilho, ex-ministro da cultura de Portugal.
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Ron Pompei passou vinte e quatro horas em Paris. Fizemos uma reunião peripatética. Revimos o conceito do laboratório da globalização, o programa de março, em Nova Iorque, e avançamos a preparação do seminário de agosto.
Daniel Libeskind, seu colega de escola, que também está por aqui, não lhe diz muito. Seu novo prédio, no Ground Zero, é a ver. Aliás, o Monde de 10 de fevereiro comenta que ele foi obrigado a engolir a parceria de Guy Nordensen, modificando o projeto da torre principal.
Os arquitetos estão na hora do mundo. Em todas as livrarias destaca-se o Atlas da Arquitetura Contemporânea dos últimos cinco anos, editado pela Phaidon. Pesa nove quilos, o que é um problema para as arquitetas. O livro vem com uma maleta para ser carregado. Cada região do mundo é destacada com uma cor.
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Pierre Rey me telefona a uma da manhã. Não são muitos amigos que me ligam a esta hora. Eu, na diferença de fuso horário, ele, sempre em outro fuso. Está escrevendo um novo livro, reclamando, como sempre, do roubo de vida a que a escrita lhe obriga. Como disse uma vez François Leguil, Pierre tem – entre tantas – a qualidade de fazer seu interlocutor se sentir a pessoa mais importante do mundo. Qualquer gesto ou preferência que você demonstre, ele consegue equivaler a uma frase de Verlaine, ou a essa de Montherland: “Vive qui m’abandonne. Il me rend à moi-même”.
Ainda. Um dia, há uns quatro anos, Chez Lipp, ele tinha Belmondo à sua direita e Francisco, então com doze anos, à sua esquerda. E ele não parava de conversar com Francisco. Preocupado se ele não estaria constrangido, disse-lhe:
– Ué, você sempre me falou que não gosta de crianças.
Resposta imediata: – E eu não gosto, nem um pouco. Mas eu adoro o Francisco.
Eh, voilá!
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Conversamos, Lipovetzky e eu, sobre o momento atual da sociedade, no qual há uma substituição do líder, fenômeno do mundo moderno, pelo “décideur”, fenômeno do pós-moderno. Como traduzir “décideur” em uma só palavra? Um “décideur” não é um líder, no sentido de quem se faz modelo de uma ação. Um “decideur” é quem assume o risco da decisão. “Decideurs” estão presentes em todos os extratos sociais. Sim, são poucos, a maioria se acomoda no mutualismo covarde.
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“A Queda” é o nome do filme alemão que causa polêmica por rememorar afetivamente os últimos dias de Hitler. Saí do cinema bouleversé, revirado. Muitos criticam o filme dizendo que pode levar a uma simpatia pelo monstro. Não me parece, ao contrário. Mostram Hitler em família, sofrendo, amando. Reduz, de fato, a tranqüilidade do maniqueísmo, mas aumenta a nossa atenção conosco mesmos. Diderot dixit.
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Eric, que vai assumir a presidência da Associação Mundial de Psicanálise em um ano, pede minha opinião sobre o estado da Escola. Pelo entusiasmo a que ele se obriga, retornei uma atenção que já estava diminuída. Em resumo, se a burocracia conseguiu tranqüilizar o grupo, o custo para a psicanálise foi enorme. Falei-lhe em flashes, em detalhes. É melhor uma Escola sofrer por se ver aquém de um grande projeto, que sofrer por enfado de uma inércia contemplativa. “Take it for granted”, escrevi-lhe ao depois.
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O Fórum foi um sucesso. Douste mereceu a ovação. Jacques-Alain, os aplausos reconhecidos. Silvia, sua neta, estava na primeira fileira. A história se faz com paixão.
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Domingo de manhã encontro, como há anos – a dar inveja a Bouvard e a Pécuchet – com Alain Grosrichard, no mesmo Boulevard Bourdon, para uma longa conversa ciclística. Ele também estará no Brasil em breve.
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Surpresa. Varig, sempre ela, me avisa que chegarei muito mais tarde. O motivo é uma escala não prevista no Rio. Tam, tam, tam, tam.
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De novo, o Brasil. Se Danton fosse brasileiro, além da audácia, teria elogiado o espaço: “O Espaço, Sempre o Espaço, Ainda o Espaço”.
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