/A sinuca ética dos genes (O ESTADO DE SÃO PAULO – 1 de abril de 2007)

Jorge Forbes e Mayana Zatz entrevistam Keith Campbell. Publicado no Domingo, 1 abril de 2007 – Caderno Aliás, O ESTADO DE SÃO PAULO.

A sinuca ética dos genes

Entrevista

Keith Campbell

Geneticista da Universidade de Nottingham, na Inglaterra

Embriões, células-tronco, transgênicos: para o “pai” da Dolly, sua cria deixou tudo complicado.

Pedro Doria

Quando Dolly nasceu, em 1996, Keith Campbell não se emocionou. Para ele, era só a confirmação do que já sabia: a técnica que inventara dois anos antes funcionava. Mas a vinda ao mundo da pequena ovelhinha, o primeiro mamífero clonado, atraiu para as portas do Instituto Roslin, na Escócia, legiões da imprensa. O diretor do instituto, Ian Wilmut, puxou para si os holofotes.

Campbell, verdadeiro responsável pelo projeto, esperou uns meses e pediu o chapéu, discretamente. Enfurnou-se em laboratórios da indústria farmacêutica, onde ainda atuava quando a ovelha-experimento morreu, em 2003.

Inglês, um quê passado dos 60, há alguns anos Campbell trocou as ovelhas pelos porcos, na Universidade de Nottingham. Os suínos são grandes e vivem muito. Testar terapias genéticas neles permite o estudo dos efeitos de longo prazo antes de testes em humanos, calcula este cientista que, embora consagrado, carrega consigo questionamentos. “Meu passo, a clonagem de Dolly, criou dilemas éticos ainda pendentes”, admitiu Campbell em recente visita ao Centro de Estudos do Genoma Humano, na USP. “Como o de que os tratamentos genéticos continuam sendo privilégio dos ricos.”

Terapias genéticas estão em pauta. No dia 20 de abril, 17 especialistas brasileiros se apresentarão perante o Supremo Tribunal Federal (STF) para explicar aos ministros em que momento vêem surgir o início da vida. O uso de embriões humanos para pesquisas com células-tronco já é permitido no País, mas uma ação questiona a constitucionalidade da lei que garante isso.

Campbell está acostumado a controvérsias desse tipo e de algumas delas não foge: “Por causa do lobby anti-transgênicos, perdemos vantagens no uso de animais geneticamente modificados.” Agricultura modificada também é benéfica, garante. E tão isenta de agrotóxicos quanto os alimentos orgânicos.

Entre curar doenças e fabricar super-homens, finca um limite ético: “Não devemos clonar humanos ou modificá-los”. Mas, vacila. Pergunte a Campbell se ele acha que alguém fatalmente fará o ser humano transgênico e ele escorrega, sem responder. “Não tenho todas as respostas”, esquiva-se. Esta entrevista que se segue, feita pelo Aliás no Centro do Genoma, ganhou um formato diferente. Foi capitaneada pela geneticista Mayana Zatz e pelo psicanalista Jorge Forbes, dois profissionais também interessados nas imbricações entre ciência e ética.

Jorge Forbes – Gostaria de fazer perguntas pessoais, técnicas e éticas.

Você terá meus pontos de vista. E não sei resolver todos os problemas.

Forbes – Este é um dado importante: quando um cientista admite que não sabe responder um problema ético.

Devemos explicar a biologia de modo que as pessoas possam compreender o contexto ético. O embrião, por exemplo. Ele é um ser humano ou um punhado de células?

Forbes – O que é?

Depende de sua religião.

Forbes – E o seu ponto de vista?

Para mim, o início da vida se dá quando o sistema nervoso central começa a se formar. Os judeus acreditam que isso acontece lá pelas 12 semanas. Para os hindus, também, quando para eles a alma entra.

Mayana Zatz – Casais geram embriões que possam servir de células-tronco para filhos portadores de doenças genéticas, para quando tais tratamentos estiverem disponíveis. A lei hoje não permite a produção de embriões com este fim. Mas, se o objetivo alegado é ter outro filho, dribla-se a lei. O problema é que não podemos garantir se as terapias serão alcançadas.

Não podem. No Reino Unido, é permitido selecionar embriões que serão implantados para permitir terapias em irmãos mais velhos, mas apenas usando células do cordão umbilical. Nunca embriões. Não sabemos quando conseguiremos tratar destas doenças. Talvez em cinco anos. Ou em 25.

Mayana – O que você diria aos pais, neste caso?

Como cientista, Mayana, deve obedecer a lei. Pode lutar para mudá-la, mas obedeça-a. Se você diz que células-tronco podem ser usadas terapeuticamente, estará dando falsas esperanças de que uma cura aparecerá ainda durante a vida da criança. Eu tenho esperanças. Mas não vai ser amanhã que as terapias virão.

Mayana – É o que jornalistas sempre perguntam: quando haverá cura para certas doenças?

Não gosto de responder esse tipo de indagação, porque às vezes a ciência dá saltos em poucas semanas. Às vezes, não.

Mayana – Acho que clones humanos não devem ser feitos. Mas vejo brechas para exceções: por exemplo, o casal que perde o filho de apenas um ano. Você seria contra?

Seria. Clonagem não substitui entes queridos. O único uso potencial de clonagem, a meu ver, é a remoção de um defeito genético no início do desenvolvimento. Mas é alterar um único gene, se possível, usando o processo de transferência nuclear empregado na clonagem. E não é um clone. É um indivíduo criado pela reprodução sexual.

Forbes – Casais fazem substituições perdendo um filho e tendo outro, dando a este o nome do anterior. Usam as mesmas roupas. O resultado é o pior possível porque você pode reproduzir um corpo humano, mas não uma pessoa.

Concordo completamente.

Forbes – Seu passo, a clonagem de Dolly, foi mais ou menos importante do que o passo de Neil Armstrong na Lua?

O meu certamente criou mais problemas. Por exemplo, receio que estes tratamentos estejam disponíveis apenas para os ricos. No fundo, tenho problemas com o mundo. Há coisas demais que poderiam ser resolvidas, que renderiam muito mais qualidade de vida do que a produção de células-tronco. Vacinação, por exemplo, ou levar água potável a todas as pessoas. Parece que a gente se recusa a fazer isso.

Forbes – O que mudou em sua vida quando passou a ser o “pai”de Dolly?

Publicamos um artigo no ano anterior, provando que a técnica funcionava. Então, de minha parte, quando Dolly nasceu, era apenas a confirmação. Mas o mundo enlouqueceu com a notícia. Os clones deixavam de ser ficção científica.

Forbes – Você lê ficção científica?

Não leio porque não tenho tempo. Se lesse, me sentiria culpado porque deveria estar devorando artigos científicos.

Forbes – Clones envelhecem mais rápido?

Quem disse?

Aliás – Há cientistas que o dizem.

Há sinais de que, conforme envelhecemos, os telômeros, que são as pontas dos cromossomos, ficam mais curtos. E, ao que parece, conforme ficam mais curtos, vive-se menos. Tínhamos indícios de que os telômeros de Dolly eram menores do que o habitual, mas em certos estudos eles se mostravam maiores do que os da ‘mãe’ original. Dolly morreu de um câncer pulmonar oriundo de retrovírus. Outros animais em Roslin morreram da mesma doença. De qualquer forma, a clonagem não é uma técnica perfeita. Sabemos que há problemas e envelhecimento prematuro é o menor deles. Muitos nascem com anormalidades.

Forbes – Como você lida com inveja científica?

Ignoro.

Forbes – Como consegue?

A atenção da mídia estava concentrada em Roslin. Eles gostavam desta atenção, então saí quietinho.

Forbes – Você saiu ou foi saído?

Saí. Sou um cientista e gosto de ciência básica. Fui trabalhar com produção de remédios que precisavam sair. Depois fui para a universidade.

Mayana – Você saiu logo depois de Dolly?

Não muito depois. Publicamos sobre Dolly em fevereiro de 1997, saí em julho. Saí um ano depois de ela nascer, em 96.

Mayana – Você concorda que podemos dividir a ciência entre antes e depois de Dolly? E que você fez a diferença?

Tanto Dolly quanto o isolamento de células-tronco humanas tiveram um impacto grande. Os dois experimentos mostraram o quanto podemos controlar a diferenciação celular e sua aplicação para terapias. Por outro lado, creio que estamos perdendo grandes vantagens com animais transgênicos. Por conta do lobby anti-modificação genética, é difícil que venha a existir investimento nisso. O desenvolvimento, neste caso, está acontecendo na Ásia.

Aliás – Mas existem riscos para a natureza que não podemos prever quando modificamos a genética de animais ou vegetais?

Em muitos casos, sabemos o que é seguro. A modificação genética serve para acelerar o que já se faz com cruzamentos. Vacas não deveriam ter o tamanho que têm hoje. Elas eram menores. Nós selecionamos casais que dessem origem a estes animais gigantes, que produzem galões de leite. Plantas geneticamente modificadas podem ser consideradas agricultura orgânica. Se pudermos fazer plantações imunes a certas doenças, não precisaremos de agrotóxicos.

Aliás – Certo, mas seguindo seu raciocínio: por que não planejar o homem perfeito? E em que isso é diferente de eugenia?

Simplesmente não concordo com a modificação genética de humanos. Não há razão. Muita gente quer fazer isso, mas não é possível sem mexer em múltiplos genes e não apenas em um.

Mayana – Não sei você sabe, mas tivemos apoio da imprensa no País para aprovar no Congresso o uso de células-tronco embrionárias.

No Reino Unido, a regulamentação foi feita pelo Ministério da Ciência, que educou os políticos sobre o potencial das novas técnicas. É uma questão econômica. O tratamento dos doentes custa dinheiro. Se pudermos curar estas doenças, libertamos o doente e também a pessoa que cuida dele. No futuro, esperamos transformar estes tratamentos em simples injeções de células-tronco, talvez dadas a cada cinco anos.

Forbes – Você vê diferenças entre corpo e mente?

Esta é uma questão difícil. Acho que eles são muito interativos e que você pode consertar muito da biologia do corpo com a mente. Creio que temos de ser muito cuidadosos quando dizemos que vamos consertar os sintomas de uma doença, porque não é apenas o corpo que deve ser tratado. A maneira como nossa mente controla a fisiologia é fascinante.

Aliás – Você acredita em Deus?

A resposta é não. Minha mulher acredita. Ela é uma católica praticante.

Aliás – E como ela lida com sua experiência com clonagem?

Ela vende equipamento para clonagem e diz que o catolicismo é a melhor religião do mundo. Você faz o que quiser e pede desculpas no domingo.

Forbes – Nesta visita, você viu o que o Centro do Genoma está fazendo no Brasil. O que achou?

Aqui, vocês têm problemas genéticos específicos. Compreendê-los e tentar buscar as curas é importante. Mais importante do que isso é ajudar as pessoas a compreenderem suas perspectivas. É o que pode ser feito no momento. Não sei se encontraremos curas para muitas destas doenças, mas acredito que encontraremos os fatores que disparam o início delas.

Aliás – Qual a importância de ver tantos países estudando genética em profundidade?

Toda população tem diferenças genéticas. A doença comum num lugar é rara noutro. Cada país deve estudar a sua. E haverá freqüentes encontros de pesquisas, porque isso é ciência: confirmar o que já foi feito.

Mayana – A maneira como nos relacionamos com os pacientes no Brasil é diferente de como se faz nos EUA. Aqui não falamos para a mãe do prognóstico para seu filho, vamos tentando explicar o que acontece aos poucos. Nos EUA, vão lá e dizem “seu filho tem um distúrbio, ele vai parar de andar aos dez anos”. O que é o modo ideal?

Sociedades diferentes têm expectativas diferentes. Dizem isso nos EUA porque as famílias se planejam financeiramente, com muita antecedência, para o momento em que a criança parar de andar. Aqui, vocês provavelmente são menos tocados por dinheiro, então buscam aliviar, tentam não criar dor nos pais.

Forbes – Recentemente, uma jovem indígena grávida procurou o Instituto para fazer um teste genético. Ela disse que, se o feto tivesse uma anomalia e se ela contasse isto à família, ainda que a criança nascesse bem, eles a enterrariam. O que você diria numa situação como esta?

Mas, o que ela faria? Contaria aos pais? Se ela perguntou, vocês devem responder. E não acho que devam abrir o jogo a mais ninguém. Isso acontecia no Reino Unido. Antes da pílula, mulheres tinham muitos filhos. Se tivessem uma criança deficiente, o impacto em suas vidas e na dos outros filhos seria grande. Então, as parteiras matavam os recém-nascidos com problemas e diziam que eram natimortos.

Forbes – Por que Dolly se chama Dolly?

Ela nasceu a partir das células epiteliais mamárias de outra ovelha. Uma das pessoas no Instituto Roslin achava que as melhores células epiteliais mamárias eram as de Dolly Parton, então a homenageamos. Não sei se ela sabe da história completa.

Aliás – Se em algum país do mundo um equivalente aos nazistas chegasse ao poder e algum tipo de eugenia fosse implementado a partir de técnicas da genética, como você se sentiria?

Certamente não iria me culpar, porque contribuí com uma pequena parte para o desenvolvimento desta tecnologia. Situação assim já aconteceu. A política de alteração de atletas na Alemanha Oriental, por exemplo. Eles davam testosterona para meninas desde pequenas. Pessoalmente, o que me preocupa mais são coisas acontecendo agora. Me preocupam os métodos de reprodução assistida. Se começamos a fazer embriões in vitro, corremos o risco de criar defeitos que não serão percebidos senão mais tarde. Desenvolvemos técnicas em reprodução e começamos a aplicá-las com muito pouco teste. Precisamos educar o público para que entenda o que é seguro.

Mayana – Eu concordo. Nós, geneticistas, passamos por comitês éticos, mas a turma da reprodução assistida, não.

A manipulação de embriões humanos é trivial. Muito mais fácil do que a de embriões de outras espécies, estranhamente. Temos que ter discussões abertas e compreender como evitar o abuso de tecnologia. Será que os cientistas devem parar de desenvolver a ciência por conta da possibilidade de ela ser mal aplicada? Vivemos a busca por conhecimento. E pessoas diferentes estão em busca de pedaços variados de conhecimento. Mas conhecimento é benéfico.