Artigo de Jorge Forbes publicado no jornal FOLHA DE SÃO PAULO no domingo 22 de julho de 2007, em sua Revista da Folha.
Primeiro a indignação, depois a depressão seguida de resignação e, por fim, o esquecimento. Conhecemos bem os passos dessa estrada e que eles não vão dar em nada
a soma de todas as dores por Jorge Forbes
Dói. Dói muito, como dói. Dói pelos que foram queimados. Dói porque nós sabíamos e deixamos. Dói porque no fundo -todos- apostamos na ficha errada. Dói porque podia não ter doído.
A dor coletiva é diferente da dor individual. O número 170, 180, 200, 200 e pouco não importa. Em seu anonimato ele nos nomeia. Somos 200, sim, 200 milhões enlutados. A chama do Pan ganhou novo e triste sentido. Aplaudimos os atletas com lágrima nos olhos; suas energias vitais aumentam nossa saudade dos 200, pelo contraste. Não precisava ter sido assim.
A morte nunca é natural para o humano. Se fosse, não haveria velórios, nem enterros, nem dia de lembrança dos mortos. Não há morte conhecida e morte desconhecida -ela é sempre desconhecida, porque morte, assim como o amor, não se entende. Mas pode-se falar em morte esperada ou surpreendente. Ela é esperada na velhice e na lenta doença grave. Fora disso, ela é incabível em nosso sentir, tanto mais se coletiva. Quando acontece com um, falamos em azar; com muitos, é azar demais; vem a desconfiança, a revolta, queremos achar os culpados. Ora, para isso não é preciso ir muito longe: companhia aérea e governo, ponto.
Agora, a quem vamos reclamar o nosso sofrimento: ao bispo, como diziam os antigos? A um ministro da Defesa que nos deixa tão indefesos, há tanto tempo? A essas companhias aéreas nas quais, a cada vôo, você pensa ter crescido, tal o espremido indecente das pernas dos passageiros, em nome de uma sardinha a mais? Parece pouco, não o é: o descuido com as pessoas começa nos detalhes e não nos grandes feitos.
Mas nós fomos levando, sempre na idéia da brasilidade divina que nos faz acreditar que tudo se ajeita, mesmo quando o deus brasileiro dá sinais de fraqueza frente ao deus brasiliense. O que fazer: queimá-los vivos? Talião não funciona. Não viajar mais de avião? Será possível por certo tempo, não muito, em um país continental (dá para congelar uma empresa específica, se recusar a voar por ela, isso dá).
Desconhecer, não falar mais, esquecer, dizer que não é comigo? Seria abandonar a cidadania e, com ela, a si próprio -eu é um outro, já dizia Rimbaud.
Não é a revolta que nos fará melhores. A revolta, paradoxalmente, aumenta o poder daqueles contra quem nos revoltamos. De cara, ela afirma o lugar de maior poder da pessoa ou da instituição visada (é simples constatar) e coloca o revoltado em posição inferior. Qualquer adolescente aprende essa lição após as primeiras frustrações; depois, pelo visto, esquece.
Ficamos tentando localizar todos os pêlos desse ovo mortal. Há mesmo um prazer nesse exercício. Foi bom para o trânsito liberarem a avenida do desastre 12 horas depois, mostrou a eficiência dos bravos bombeiros. Foi ruim para as pessoas. Aquele desfile automobilístico, de curiosidade mórbida, em frente ao local do acidente, poderia ter sido evitado. O que é um congestionamento a mais, em nossos sentimentos abarrotados de dor? Também não tem sentido o regozijo público dos que perderam o avião, trocaram o horário do vôo ou a sua rota. O que está sendo buscado? Ganhadores de uma loteria mortal, como se o acidente fosse uma roleta-russa que premia os sobreviventes? Oh, arrogância.
Silêncio! Não é à toa que se faz um minuto de silêncio. Os momentos fundamentais de nossas vidas exigem o silêncio, o mais profundo dos sons. O silêncio antes do aplauso, ao fim de uma sinfonia; o silêncio frente à tragédia. O que não tem nome, melhor se captura com o silêncio. Difícil de suportar, mas necessário.
Basta de ministra relaxada gozando de passageiro e de ministro confundindo descalabro aeronáutico com índice econômico positivo. É de dar dó, mais que raiva. Basta, mas por isso mesmo não esperemos muito deles; seria incoerente. Deveremos nos resignar, então? Claro que não: deprimir-se é uma covardia moral, afirmava Lacan, duramente.
Nós, brasileiros, vivemos um momento especial de solidariedade interna e mundial. Hoje, aquela pessoa que passa por nós na calçada não é um assaltante em potencial, que, para evitar, cruzamos a rua ou fechamos às pressas a janela do carro. A dor nos iguala, nossas diferenças sociais se abrandam, um outro paradigma se instala. Sabemos quão provisória é essa situação se deixada a seu próprio curso. Primeiro a indignação, depois a depressão seguida de resignação e, por fim, o esquecimento. Conhecemos bem os passos dessa estrada e que eles não vão dar em nada, como já foi cantado.
É possível fazer durar esse momento de solidariedade sem novas lições trágicas. Como? O que estamos fazendo nesse momento tão difícil mostra uma possibilidade: compartindo -cada um a seu modo e na sua intensidade- um sentimento solidário. Na palavra solidariedade tem “solidão”, etimologicamente. Pois bem: há como ser solitários e juntos.
Santos Dumont é brasileiro. Ele conquistou os ares, sua descoberta nos elogia. Gostamos de voar, “fazendeiros do ar”, mas não temos sido competentes em continuar o sonho de Santos Dumont. Fomos atingidos, mais uma vez, no âmago dos nossos sonhos. Uma descoberta tem que ser renovada, reajustada diariamente, pois ela é sempre incompleta. Um sonho não foi feito para ser repetido, mas para desencadear outros.
Dói. Dói muito, como dói. Dói mais ainda porque podia não ter doído.
Jorge Forbes, 56, é psicanalista em São Paulo.