/A vida é honra

por Jorge Forbes

 Na mesma semana, dois fatos contrários. Enquanto festejávamos a moça que, visitando o túmulo do seu pai, avisa a polícia de um assassinato cometido por policiais, somos confrontados pelo moço que loucamente invade uma escola e mata mais de dez alunos, ferindo gravemente outros tantos, para ao final se suicidar.

A alegria que nos deu o gesto da moça desapareceu na enxurrada de sofrimento provocada pela morte das crianças na idade do sonho. Fica uma pergunta no ar de todas as mídias: por quê?

Por que ele fez isso? O que o motivou? Com qual intenção? Era psicótico? Fiel de religiões bárbaras? Possuído pelo demo? Desorientado sexual? Drogado? Revoltado pela adoção? Por queê? Porquê? E toca-se a perscrutar seu passado, seus escritos, conversar com familiares, vizinhos e conhecidos, refazer seus percursos, tudo na tentativa de encontrar supostos elos lógicos que justifiquem um ato tão cruel. Pululam profetas do passado lutando levianamente pela audiência televisiva.

Cá entre nós – paremos um pouquinho – será que alguém seriamente pensa que existiria uma lógica que explicaria essa atrocidade? Uma determinação genética ou cultural assassina? Não me parece crível. O que me é mais convincente é que a sociedade, de tão assustada diante do seu próprio horror, tenta inventar respostas que justifiquem o injustificável, que a assegure que aquela pessoa é diferente de todas as outras, enfim, que não tem nada a ver comigo nem com você.

A presidente Dilma, no momento do ocorrido, declarou que o Brasil não estava acostumado a esse tipo de crime. É certo, não estava acostumado, mas, como se viu, não estava imune. Associamos essa modalidade criminosa mais à América do Norte e a alguns países da Europa, que nos antecederam em ocorrências. Vivemos uma era na qual, se não tomarmos cuidado, descambaremos para a banalização radical da vida. entre os exemplos é enorme, mas, insisto: que nome se dá a “matar”, na gíria criminosa, se não “apagar”?

Para complicar ainda mais nosso estarrecimento, como não perceber a ânsia desses assassinos em querer fazer de sua morte um acontecimento? Esse é um padrão que se repete em todos os casos: se tive uma vida deletável, terei uma morte memorável.

A solução não reside, por tudo isso, no aumento de segurança armada dos estabelecimentos públicos. Seria uma atitude que corresponde a uma visão muito reduzida do que nos ocorre. Pode acalmar, de imediato, angústias desesperadas, mas nem resvalará no problema que nos abate.

Voltemos à moça do cemitério e a seu gesto. Ela contrariou todas as ordens de salvaguarda pessoal que nos doutrinam nas delegacias e na mídia. – “Jamais responda a um atacante, não olhe para ele, abaixe a cabeça, entregue tudo para não entregar a vida, não fuja, fale docemente, chame de senhor, não defenda alguém que está sendo atacado, etc., etc., etc.” A moça foi muito desobediente. Naquele cemitério vazio e afastado, ela, sozinha, homenageava seu pai morto. De repente, um assassinato – e cometido por policiais – na sua frente. Fugir, se amedrontar, se esconder em um túmulo vazio, como lhe ensinaram? Ao contrário, ltivamente, cheia de orgulho humano, pois se trata muito mais de honra que de coragem, ela vai a um telefone público, liga para a polícia militar e descreve calmamente e em detalhes o que está presenciando. E ainda mais: ao ver a aproximação dos homens fardados, é ela quem toma a iniciativa de abordá-los e de inquiri-los sobre o que acabaram de fazer. Ela deve tê-los assustado, não por uma força maior que a deles, mas por agir em outro registro, aquele que lhe dizia que sim, é claro que ela podia fugir, mas viver não é sobreviver, salvar a pele não é salvar a vida, uma vida vai bem além da pele.

Imagine, caro leitor, uma sociedade composta de pessoas do tipo dessa moça. Pessoas que não respondem às armas pelas armas, mas sim respondem às armas pelo constrangimento, que aposta que o pior assassino pode ser tocado em um ponto do constrangimento humano. Mesmo que difícil, não é utópico como o exemplo da moça o demonstra, e o primeiro passo é recuperarmos a noção que viver é muito mais que sobreviver, e que não se vive, não se respira em uma sociedade de deletáveis.

 

(artigo publicado na revista Psique nº 65, maio 2011)

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