Jorge Forbes
Uma reflexão sobre a tragédia de ontem, em artigo escrito a pedido de Paulo Markun, para o Jornal de Debates – 17 de abril de 2007.
Quando tudo pode ser, nada é. Um novo assassinato em massa, o maior, acaba de ocorrer em mais uma escola americana, na Universidade Tecnológica de Virgínia. Trinta e dois mortos e muitos feridos, completados pelo suicídio do assassino. Pululam diagnósticos para acalmar o angustiante “Por quê?”. Um paranóico identificado à Hitler (esta interpretação já foi usada em Columbine); um perverso querendo chamar a atenção; um rebento de uma família mal constituída; um estressado pelo sistema competitivo do capitalismo americano; um drogado químico; um drogado religioso; um tarado por armas, impulsionado pela venda livre; um imigrante deslocado; enfim, e definitivamente, um louco completo.
Sim, tudo pode ser se insistirmos no diagnóstico da criatura, o que evidencia a sua insuficiência. A série de assassinatos inusitados não revela nenhum tipo clínico especial talhado para esta calamidade. Qualquer um dos acima descritos pode se encaixar no assassino, sem, no entanto – e por isso mesmo – elucidar nada.
Assassinatos inusitados, como esse, devem ser somados aos novos sintomas do laço social da globalização. Ao fracasso escolar, à epidemia de depressão, às toxicofilias generalizadas, para citar os principais.
O mundo mudou, mas nós não. Saímos de uma sociedade que organizava a identidade humana verticalmente: a identificação com o pai, com o chefe, com o líder; uma sociedade que estabelecia padrões estáveis de comportamento, aos quais se aderia ou se rebelava, para uma sociedade horizontalizada, onde os princípios são outros e muito diferentes – ainda desconhecidos da maioria – o que leva a encararmos o novo com velhas categorias, como o que presenciamos.
Antes, tínhamos aquele que queria matar o líder: é o caso da morte de John Lennon e o da tentativa sobre João Paulo II. Hoje, cada vez mais, temos um anônimo que mata anônimos e depois se mata. Como padrão, dois aspectos: criminoso e vítimas são jovens e o contexto é o escolar. Não acrescentaria a esta lista o país, os Estados Unidos, por não entender ser uma exclusividade americana, haja vista o já ocorrido no Brasil; só constato lá uma maior facilitação, uma plasticidade ao fenômeno.
Um laço social horizontalizado, como o que começamos a viver, exige um reaprendizado completo de como habitá-lo. Muda o amor, o trabalho, o corpo, a família, a educação. A amizade passa a ser o afeto por excelência, por motivos óbvios, é o que melhor veste um mundo plano. Uma amizade que suporta a diferença do outro, sua solidão fundamental, por isso solidária. Os jovens e os que estudam são os mais sensíveis a esta mudança.
Estamos pagando um preço alto pelo nosso atual descompasso entre onde estamos e o que pensamos. Nossa cabeça não andou na mesma velocidade dos nossos pés. Uma barbaridade como esta de Virgínia é mais um alerta: tem alguma coisa fora de ordem da nova ordem mundial e será como fora de ordem que ela permanecerá se quisermos insistir em compreender tudo. Quando vamos perceber que para conviver – e bem – não é necessário a mútua compreensão? Suportar as diferenças é isso, é só isso. O amor não exige compreensão, até ao contrário, muitos se separam quando resolvem explicar o seu amor pelo parceiro.
Um massacre como este, inusitado, ser ter nem para que, clama para que não depositemos todas as nossas esperanças no diálogo compreensivo, como o fizemos nos últimos trezentos anos, e comecemos a perceber uma nova realidade afetiva: os monólogos articulados. Esse espaço não deve ser conquistado a bala, mas legitimado em um mundo de um novo amor, além da hierarquia paterna, das chefias e dos padrões.
São Paulo, 17 de abril de 2007