/Os perigos de tudo poder

por Jorge Forbes

 

A Psicanálise caminha junto à Genética e questiona a moral romântica das escolhas pós-modernas absurdas. Qual é afinal o princípio da responsabilidade de cada um?

 

Há quatro anos, convi­dados pela professora Mayana Zatz, titular de genética médica da Uni­versidade de São Paulo (USP), criamos uma clínica de Psicanálise no Centro do Genoma Humano dessa universi­dade. Pode parecer estranho a muitos essa junção de Genética com Psicaná­lise e isso porque popularmente se tem a ideia que Genética é uma disciplina empírica e objetiva e a Psicanálise é es­trutural e subjetiva. Uma, a Genética, trabalharia no eixo de causa e efeito, estabelecendo relações biunívocas sem falhas, outra, a Psicanálise, seria sem­pre relativa ao contexto, sem possibi­lidade de generalização, trabalhando na singularidade do caso a caso. Pois bem, o que motivou a criação de uma clínica de Psicanálise em um centro de genética foi exatamente a constatação de que o aumento do conhecimento das nossas bases genéticas, a possibili­dade de hoje decodificarmos o DNA de uma pessoa, não traz nenhuma paz eterna a nossas dúvidas de como viver, ao contrário, a massa de informações que recebemos aumenta a necessidade da interpretação. Quem achou que a Genética seria uma astrologia cientí­fica e que geneticista seria o vidente da pós-modernidade, se viu frustrado. Sobre isso, o primeiro homem a ter seu DNA decodificado, o geneticista norte-americano Craig Venter, escre­ve na abertura de seu livro Uma vida decodificada, o seguinte: “O DNA é a música. Nossas células e o ambiente são a orquestra”, o que é uma síntese poética do que dizíamos.

Temos vários aspectos desse tra­balho a abordar, coisa que farei pau­latinamente nessa coluna; dessa vez questionemos onde está o limite do uso dos avanços científicos, como nos posicionarmos frente às inusita­das possibilidades que esses avanços produzem?

No seu blog da revista Veja, Maya­na Zatz cita que a revista Nature, um dos mais prestigiados veículos científi­cos do mundo, acaba de publicar um artigo de Alan Handyside, especialista de reprodução assistida, que, ao fazer o balanço de vinte anos dessa prática, conclui preconizando que no chamado “DPI”, sigla de “Diagnóstico Pré-Im­plantação”, em caso de dúvida, “Dei­xem que os pais decidam”.

É simpática essa posição, ela se ba­seia na moral romântica de que os pais, sempre querendo o melhor para os seus filhos, seriam os melhores decisores, in­clusive sobre a vida que ainda vai exis­tir. Muitas vezes funciona relativamen­te bem, porém nem sempre. Vejamos, a título de exemplo, um dos casos rela­tados por Dena Davies, em seu recente livro: Genetic Dilemmas. Pais surdos, nos Estados Unidos, estão optando por implantar embriões com o mes­mo tipo de alteração que eles têm e, quando contestados em sua vontade, argumentam que a vida em silêncio é melhor e que não permitir que seu filho seja tão surdo quanto eles, os pais, seria uma forma perniciosa de discriminação, blá, blá, blá. Durma-se com um barulho desses, é o caso de dizer. Pode ser evidente o absurdo, mas não é tão evidente a solução, a ponto dessa prática já existir em al­guns estados americanos.

Um dos melhores livros sobre uma nova ética necessária para esses tem­pos pós-modernos, Princípio da Res­ponsabilidade, de Hans Jonas, defende a ideia, sensível a todos, que pela pri­meira vez na história da humanidade, por causa do imenso avanço da tec­nologia, o homem pode mais do que deseja. Se antes o limite do que querí­amos era dado pela possibilidade dos meios disponíveis, ou seja, pela im­possibilidade de se obter tudo o que se pretendia, hoje não, a oferta de meios é muito maior que a possibilidade de utilização. Mais evidente que no domínio da genética, esse problema já se nota nas aberrações de cirurgias plásticas feitas em série, criadoras de robôs esticados, ou em dermatologias cosméticas responsáveis pelas caras de bruxa ou de paisagem, botocadas além de qualquer sentido estético.

Mas, voltemos ao exemplo do dile­ma genético que citamos: o que fazer com pais surdos que querem implan­tar um embrião com a mesma altera­ção, ou, ainda, na mesma linha, com pais anões que querem ter filhos à sua altura, no duplo sentido? Será que o psicanalista tem a resposta? O jurista? O educador? Difícil, muito difícil, pois não há uma solução para todos. A resposta de Jonas, que está no título do livro, é o Princípio da Responsa­bilidade de cada um, frente ao acaso e à surpresa, eu acrescentaria. Agora, tudo se complica quando se trata de tomar uma decisão pelo outro, quan­do este outro ainda vai nascer. Alguém vai dizer que primeiro cresça e depois escolha. Será que alguém que um dia ouviu o barulho do mar, o som de uma orquestra, o canto da voz huma­na, preferiria ser surdo? O problema é que aquilo que é evidente para a maioria não funciona como critério de certeza suficiente, em uma socieda­de customizada. A pensar.

 

(artigo publicado na revista Psique, nº 54, junho 2010)

 

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