/A cidade no divã

Artigo publicado na revista WELCOME Congonhas, maio de 2008 – ano 2 – número 14

São Paulo é uma interpretação de milhões de vidas

Viver em São Paulo seria algum tipo de masoquismo, desespero de causa, alienação? O bom senso diria que sim, mas o bom senso pensa mal, não passa de cumplicidade de ignorância.

O bom senso vai dizer que viver em uma cidade feia, poluída, lotada, agressiva, esburacada é coisa de louco, ou de mau gosto. Que o bom é uma casa de campo para ver o sapo cair na lagoa. E cantará todos os benefícios dos lugares puros, livres de conflito, de exigências, seja uma praia ou uma floresta.

Na Itália, existe um desses lugares pintados como paradisíacos pela propaganda do bom senso, é o lago de Como, ao norte de Milão. Tudo o que desenhamos nos primeiros anos de escola está lá: o lago de um azul profundo – dispensável lembrar que o azul, nesses casos, é sempre profundo –; hoteizinhos que harmonizam a correta proporção entre madeira e pedra em sua arquitetura; lareiras acesas indicadas pela fumaça em todas as chaminés; camas com polpudos edredons combinados com fofos travesseiros de penas, em resumo, um sonho, certo? Não, um pesadelo. Os donos dos hotéis, já aprenderam a só aceitar reserva a quem paga uma semana adiantada. Sabe por que? Por uma razão muito simples retirada da experiência vivida: mais de cinqüenta por cento dos casais apaixonados, marujos de primeira viagem ou capitães de longo curso, não ultrapassam as primeiras quarenta e oito horas nesse cenário tão bonito, quanto opressivo. Num lugar desses realmente não há o que se fazer, tudo já está feito, logo, é fácil descobrir o culpado se algo der errado: você. Ali, qualquer coisa menos que um sexo perfeito, uma conversa interessantíssima, uma simpatia contagiante, vai ser vista como grande incapacidade pessoal e é o pessoal derrotado que faz as malas antes do terceiro dia.

A felicidade não se encontra em cenários de cartão postal, essa é a felicidade prêt-à-porter, pronta para vestir; felicidade que viaja em ônibus de vidros embaçados, com hora para admirar, aprender, fotografar e dormir. A felicidade do homem anda a pé, no máximo de bicicleta. Se tudo o que é conhecido é tão chato quanto o bom senso, por ser repetitivo e irrelevante, a felicidade só se alcança no acaso, na surpresa do encontro. Felicidade se dá quando a angústia da surpresa não impede a reinvenção do gosto.

São Paulo não é bonita, nem sadia, São Paulo não é evidente, por isso ela é uma interpretação, é uma interpretação de muitas vidas. – Por que você mora em São Paulo? – Por que você vai a São Paulo, com tantos outros destinos supostamente mais sedutores? São Paulo interpreta dezoito milhões de pessoas que o bom senso as classificaria como tontas. Mas São Paulo, sendo uma interpretação, não responde; exige que os interpretados, seus habitantes – ou amantes, se quiserem – se ocupem da resposta. E uma interpretação não suporta resposta coletiva de cartão postal, já referido. São dezoito milhões de cidades, em uma paisagem incompleta, com muito a ser feito, com muito a desejar. É a graça de uma cidade.

Jorge Forbes