/Felicidade não é bem que se mereça – versão completa

Trabalho apresentado por Jorge Forbes no XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Rio de Janeiro, 21 a 23 nov. 2008.

Felicidade não é bem que se mereça (1)

Foi um impacto quando Lacan afirmou, no final de seu ensino, que uma análise ia até a felicidade do paciente. Que felicidade? Como discernir esse momento? Este texto trata disso: da felicidade possível frente ao Real, que se consegue em uma psicanálise, fora da moral tradicional do merecimento.

Felicidade é um tema mais comum a livros de auto-ajuda, de livrarias de aeroporto, que assunto de encontro de psicanalistas. Ao contrário do sorriso bondoso que carregam os arautos da felicidade, os analistas se apresentam normalmente com o ar de ceticismo daqueles que conhecem o desejo, a saber, que alguma coisa sempre lhe estará faltando, mesmo se você ainda não tiver descoberto. É o que faz, também, que cara de felicidade seja associada à tolice, e que cara fechada seja vista como sinal de seriedade.

Nesse ambiente, foi uma surpresa quando Jacques Laca(2), em uma conferência na Universidade de Yale, em 24 de novembro de 1975, afirmou sobre o final de análise, lembrando só poder testemunhar desde a sua clínica, que: – “Uma análise não deve ser forçada até muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz da vida, é o bastante” (p. 15).

Jean-Pierre Deffieux (3) , nosso colega de Bordeaux, em um artigo chamado “Reflexões sobre um dito de Lacan em Yale, em 75” chama a atenção ao fato de como é contrastante essa posição de Lacan, nesse ano, daquela que tinha no Seminário da Ética, quinze anos antes, quando dizia que o neurótico visa a felicidade ao preço de seu desejo e, no tratamento psicanalítico, ele tem a oportunidade de encontrar o caminho de seu desejo, ao preço de sua felicidade.
Deixemo-nos interrogar pela frase de Yale.

Por que não forçar uma análise muito longe? Porque nesse tempo dessa conferência, que é o mesmo do Seminário sobre o Sintoma, Lacan entende que a amarração edípica dos três registros, RSI (Real, Simbólico, Imaginário), não é suficiente para defender o paciente de uma desamarração seguida de uma “normalização”, entenda-se, do desencadeamento de uma psicose.

Assim, o ponto de referência, o ponto de basta, seria “quando o analisando pensa que está feliz na vida”. Mas, em vários momentos – ingenuamente poderíamos contestar – um analisando pensa que está feliz na vida. É mesmo a razão de muita discussão no Campo Freudiano dos efeitos terapêuticos rápidos de uma análise. Seria isso o final de uma análise, um efeito terapêutico rápido, que tão bem conhecemos? Seguramente, não. “Pensar estar feliz na vida” necessita ser precisado.

Podemos depreender, sempre da conferência americana, e concordando com Deffieux, que uma análise iria de um sintoma, neurótico, no caso, que “permite viver”, cito Lacan, a pensar estar “feliz na vida”. Proponho que devemos entender essa vida, como o faz Jacques-Alain Miller (4) em seu curso de 1998/1999, “A experiência do Real no tratamento psicanalítico”, aula do dia 19 de maio: “Só me interesso pela vida (em psicanálise), na sua conexão ao gozo e enquanto ele possa merecer ser qualificado de Real” (p. 319). Logo, não se trata de alcançar nenhuma felicidade moral ou filosoficamente determinada, pois “Felicidade não é bem que se mereça”, mas de se obter em uma análise um remanejo do analisando com o seu gozo, que ele encontre um certo acordo com o seu modo de gozar (JPD).

Como, então, passa-se em uma análise, da aflição causada pela linguagem, para uma certa felicidade? Como enfrentar o ratear intrínseco ao sexual, que não encontra paz na linguagem, que é um buraco do Real, que não tem nome, nem nunca terá, como o cantam Chico e Milton? Se tomarmos a felicidade como o bom encontro, o que é necessário para um bom encontro com o Real, com o Real do Outro, como o diz Lacan?

Busquei exemplos em dois autores muito diferentes: um, já falecido, o escritor e grande estilista da língua francesa, amigo de Jacques Lacan, Michel Leiris; outro, o filósofo e jurista italiano, nosso contemporâneo, Giorgio Agamben.

Tomo de Leiris (5) um capítulo de seu livro “Biffures”, capítulo chamado “…Reusement!”, “…Indabem”(6) , na tradução de Alain Mouzat. Um menino, o próprio autor, está muito angustiado por ter derrubado seu soldadinho no chão.

Rapidamente, me abaixei, apanhei o soldado jazido, apalpei, e olhei. Ele não estava quebrado, e viva foi minha alegria. O que expressei exclamando: “ …Indabem!”

Nesse cômodo mal definido – sala de visita ou de jantar, salão nobre ou sala comum -, nesse lugar que não era senão o lugar da minha brincadeira, alguém com mais idade – mãe, irmã ou irmão mais velho – estava comigo. Alguém mais avisado, menos ignorante do que eu era, e que me fez observar, ao ouvir minha exclamação, que o que se deve dizer é “ainda bem” e não, assim como eu o tinha feito : “ Indabem!”.

A observação cortou minha alegria ou, melhor – me deixando um breve instante pasmado – não demorou em substituir a alegria, pela qual meu pensamento tinha sido inicialmente preenchido por inteiro, por um sentimento curioso, do qual mal consigo, hoje, desvelar a estranheza.

Não se diz “…indabem”, e sim “ ainda bem” .

Essa palavra, empregada por mim até então sem nenhuma consciência de seu sentido real, como uma interjeição pura, está ligada a “ ainda” e, pela virtude mágica de tal aproximação, se viu inserida de repente em toda uma seqüência de significações precisas. Apreender de uma vez na sua integridade essas palavras que antes eu sempre tinha arranhado tomou uma feição de descoberta, como o rasgar brutal de um véu ou o ofuscar de alguma verdade. Eis que esse vago vocábulo – que até o presente me tinha sido totalmente pessoal e permanecia como fechado- ficou, por um acaso, promovido ao papel de elo de um ciclo semântico.

Ele não é mais agora coisa minha: participa desta realidade que é a linguagem de meus irmãos, de minha irmã, e a de meus pais. De coisa própria a mim, tornou-se coisa comum e aberta.

…………..

No chão da sala de jantar ou de visita, o soldado de chumbo ou de papel machê, acaba de cair. Eu exclamei: “…Indabem!” Me corrigiram. E, por um instante, permaneço pasmado, entregue a uma espécie de vertigem.

Leiris se viu roubado em sua palavra íntima que nomeava tão bem o seu gozo, viu-a, angustiado, desaparecer na trama da linguagem: “tênue tecido de minhas relações com os outros, me ultrapassa, estendendo para todo lado suas antenas misteriosas”. Assim ele conclui o texto.

Tal como o cidadão Kane (7), todos nós temos uma “Rosebud” (a jamais ser traduzida por botão de rosa) perdida em algum lugar da infância, não no sentido de quando éramos pequenos, mas, lembrando da etimologia da palavra, do lugar em que a fala falta, in-fans.

É o que nos faz ir a Agamben (8), em texto recente publicado no livro Profanações: “Magia e Felicidade”.

Ele se delicia com o tema afirmando: “O que podemos alcançar por nossos méritos e esforços não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo”. É de levar Kant a se revirar em seu descanso, pois para esse pai do Iluminismo, ali citado, a felicidade é algo destinada aos dignos de merecimento, assim: “O que em ti tende ardorosamente para a felicidade é a inclinação; o que depois submete tal inclinação à condição de que deves primeiro ser digno da felicidade é a tua razão”.

Por que magia? Continuando nas Profanações, lemos: “Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!”. (p. 24)

Faz-se necessário entender tamanho ataque ao senso comum, que questiona os princípios elementares da educação das crianças e a boa postura dos adultos. A resposta está no fato de que: “Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor”. (p. 24) Dois aspectos são aqui relevantes: primeiro é que felicidade não progride, nem se acumula, pois se assim fosse acabaríamos estourando em sua plenitude. Pensar então que hoje somos mais felizes que nossos antepassados é tão falso quanto o contrário, que ontem é que era bom, como insistem os saudosistas. Segundo, a felicidade se dá no acaso, no encontro, na surpresa, daí dizer que ela foge à consciência, que ela é uma magia. Magia poderia ser, quando o significante recupera o seu poder Real, tal como almeja Lacan (9) em 17 de maio de 1977: “ Por que não inventaríamos um significante novo? Um significante, por exemplo que, não teria, como o Real, nenhuma espécie de sentido?”

Volto a Agamben: “Cada coisa, cada ser, tem, além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome”… “O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden, e, ao pronunciá-lo, os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram aos pedaços” … “A magia não é conhecimento dos nomes, mas gesto, desvio em relação ao nome” … “Logo que inventa um novo nome, ela, a pessoa, ostentará um passaporte que a encaminha à felicidade. E então podemos entender a frase de Kafka: “Se chamarmos a vida pelo nome justo ela vem, porque esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”.

O curioso é que para ser feliz, para um momento feliz, pois são sempre momentos e não essências, há que se suportar a sensação de quebra de identidade que fatalmente ocorre. Razão que explica que para alcançar a felicidade é necessária uma boa dose de ousadia e coragem, e não se medir pela expectativa do que esperam de você. Em uma análise, felicidade é suportar o inesperado.

Concluo com um exemplo da clínica de Lacan relatado por seu analisando Alain-Didier Weill (10), quando mostra que se chamarmos a vida pelo nome justo ela vem.

“Eu lhe dizia, em uma sessão, meu desespero frente ao fato do Conselho de Estado ter acabado de me recusar – pela terceira vez, em quinze anos – meu pedido de retomar o patronímico “Weill”. Eu o havia perdido depois que meu pai e certo número de judeus traumatizados pela guerra tinham acreditado que deviam abandonar o patronímico para proteger seus descendentes de medidas anti-semitas.

“Nesse dia, abandonado pelo Estado e por seu Conselho, ao qual eu não poderia mais recorrer, eu me vi dizendo sobre o divã que não me restava outro recurso que de decidir, sozinho, de me chamar “Didier-Weill”. – “Trata-se de dizer!”, assim Lacan concluiu a sessão. Sim, tratava-se de dizer. Mas como e para quem?

“Três dias mais tarde, colóquio da Escola Freudiana de Paris, eu devia intervir. Nesse dia, Lacan, presidente da mesa, me convida a subir à tribuna, na minha vez de falar: “Didier-Weill, é com você!”. Como ele havia dito três dias antes, tratava-se de dizer, e ele acabava de fazê-lo. Ele acabava de nomear um nome que estava em desuso e que deixava, dessa maneira, de estar em desuso.” (p.38)

Enfim, se soubermos chamar a vida pelo nome, e não por qualquer disciplina de adaptação, ela vem. E isso porque felicidade não é bem que se mereça, indabem.

Jorge Forbes
São Paulo, 20 de novembro de 2008

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(1)Trabalho apresentado no XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Rio de Janeiro, 21 a 23 nov. 2008.
(2) Lacan, J. “Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines – Yale University, Kanzer Seminar”, 24 nov. 1975, Scilicet, n. 6/7, Paris: Éditions du Seuil, 1976, 5-37.
(3) Deffieux, J.-P. “Reflexões sobre um dito de Lacan em Yale, em 1975”. Publicado em 5 de nov. 2005 na lista eletrônica da ECF.
(4) Miller, J.-A. O autor se valeu da transcrição original, em francês, que não está publicada oficialmente. Existe, todavia, uma versão em espanhol, em livro: A experiência de lo real en la cura psicoanalítica, 1998-1999, Buenos Aires, Paidós, 2008.
(5) Leiris, M. “… Reusement!”. In: Biffures, Paris: Gallimard, 1948/1975, 9-12.
(6) Leiris, M. Biffures. “Indabem”. Tradução de Alain Mouzat. Disponível aqui.
(7) Cidadão Kane , filme dirigido por Orson Welles, 1941.
(8) Agamben, G. “Magia e felicidade”. In: Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, 23-25.
(9) Lacan, J. Seminário 24 – L´insu que sait de l´une bévue s´aile a mourre, 1976-1977. (Transcrição)
(10) Didier-Weil , A. & Safouan, M. “Lacan l´étonnant. In: Travailler avec Lacan, Paris: Flammarion, 2007.

Jorge Forbes é AME – Analista Membro das Escolas Brasileira e Européia de Psicanálise. Preside o Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA – e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano – USP. Coordena o www.projetoanalise.com.br