/Sigmund Freud do Brasil

Jorge Forbes

O brasileiro ama o inconsciente. Há povos que detestam. O brasileiro sabe que no fundo as coisas não são bem como se apresentam, que há sempre uma outra janela, um outro enfoque, e que com o desejo não se faz ortopedia. A régua e o compasso da vida brasileira vem de sua música e não da engenharia. Um acerto, um jeitinho, são sempre possíveis e se declara que quem não gosta de samba, bom sujeito não é. O brasileiro é sério demais, para se tomar muito a sério. O Brasil é um país propício à psicanálise pois esta só se desenvolve em comunidades que suportam questionar as soluções para o desejo humano, pondo em dúvida qualquer modelo padronizado. A psicanálise se dá muito mal em países totalitários – militar, política ou moralmente – que estabelecem padrões coletivos de comportamento, onde todos gostam do mesmo sanduíche e vaiam o mesmo filme.

Freud está presente em vários segmentos da vida intelectual, científica e artística do Brasil. Podemos medir esta presença através de dois aspectos distintos, embora complementares, de sua obra, a saber : as determinações de pensamentos inconscientes em qualquer produção humana e a impossibilidade de se obter uma garantia nas escolhas, devendo se incluir o risco em qualquer cálculo, mesmo no mais bem planejado. São dois aspectos fundamentais e distintos, uma vez que o primeiro – os pensamentos inconscientes – diz respeito à significação a mais que se obtém nas vias do inconsciente; e o segundo – o cálculo incompleto – aponta ao que se chama Real, o limite da significação, a pedra no meio do caminho de Drummond, frente a qual deve-se inventar uma solução criativa, pois não dá para atirá-la, sem o risco de se ir junto.

Na literatura, dos modernistas Mário de Andrade e Oswald de Andrade, passando por Clarice Lispector, destacando Raduan Nassar e chegando a novos talentos como José Roberto Torero e Patrícia Mello, encontramos personagens tropeçando em suas identificações imaginárias embaraçantes, como na “Hora da Estrela”, de Clarice, ou em “Lavoura Arcaica”, de Raduan.

Na música, aí então é quase uma enciclopédia analítica que escutamos, desde o moço de Adoniran Barbosa, que não quer perder o trem das onze por causa de sua mãe : “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”, até inúmeros Chicos, Miltons – “O que será que será, que nunca tem nome ou nunca terá ?”, tudo sintetizado na declaração de Caetano: “De perto, ninguém é normal”, que bem poderia ter sido feita por Freud.

No cinema, para citar um exemplo recente de grande repercussão, assistimos ao filme – Central do Brasil – de Walter Moreira Salles Jr, tratar um tema primordial da experiência humana, aos olhos de Freud: o pai.

Na política, há muito que se reconhece que nenhuma ação vingará sem o que os romanos chamavam de “affectio-societatis” – a afeição entre os cidadãos, na falta da qual nenhuma lei ou o melhor plano econômico têm a mínima chance de vingarem. Encontramos nesses agentes sociais um vocabulário carregado do jargão psicanalítico.

Na ciência, e nas mais duras, como a lógica, temos Newton da Costa, que no Brasil, anos depois de Freud, pôs em fórmula científica – a lógica paraconsistente – o que o psicanalista havia intuído a existência: um sistema lógico onde a contradição é possível, sem prejuízo da efetividade.

Enfim, Sigmund Freud, cidadão do mundo, é amplamente brasileiro, também.

Concluímos sobre a clínica psicanalítica, essência da psicanálise, matriz de seus conceitos. Há algo novo na clínica, uma segunda clínica, se nos basearmos na continuação que fez Lacan, do caminho de Freud. O que ficou consagrado da prática analítica, foi o se conhecer mais e melhor, o que é coerente à vertente das significações inconscientes, já comentada. Estamos hoje, entretanto, desenvolvendo a segunda clínica, a do limite da significação, onde o objetivo é, além de se conhecer mais, se responsabilizar pelo limite do conhecimento e, em conseqüência, sustentar o risco e a aposta. É uma questão fundamental ao analista de hoje: possibilitar ao seu analisando querer o que deseja, quando, normalmente, é mais protetor para as pessoas quererem o que não desejam, assim se protegendo das perdas. “De nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis” é um aforisma de Lacan. Esta segunda clínica, também chamada clínica do ato, ou clínica do gozo, é a que melhor responde às novas formas de sintomas gerados pela globalização. Também aí, nesses novos tempos da globalização, o problema não é mais o acúmulo do saber mas o que fazer, o que escolher, em um mundo de tantas possibilidades, que chega a deprimir muitos.

O Sigmund Freud do Brasil continua menino nesse novo século, e cheio de futuro.

(Publicado em O Estado de São Paulo, 29 de setembro de 2000).