/Entrevista com Dorothee Susanne Rüdiger para o Projeto Análise

PA: Ficamos sabendo no Projeto Análise de uma aventura que você planeja. Gostaríamos de saber um pouco do seu percurso até este momento.

D: Começo pela minha tese de doutorado. Defendida em 1996, ela ainda pertence à lógica do direito moderno, no sentido da obrigação do Estado de proteção dos trabalhadores, dos consumidores e de outros hipo-suficientes.
A primeira virada nesse percurso acadêmico como jurista do século XX foi em 1998 quando participei de um seminário sobre os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde conheci José Augusto Lindgren Alves, que atua como diplomata. Ele tratava dos direitos humanos como “as últimas grandes narrativas da humanidade” na globalização. Provocada por José Augusto, fui estudar os fenômenos da globalização e da pós-modernidade, e todas as conseqüências disso para o Direito, sobretudo o desmanche dos grandes paradigmas da modernidade. O grande paradigma do direito é o da Justiça, que é posto em cheque pela globalização. Diante de tantas culturas no globo, podemos afirmar que o que é justo para mim não é justo para você.

Meu segundo momento de virada foi a participação num debate, em São Paulo, na Fundação Getúlio Vargas, com o jurista alemão Gunther Teubner, sobre os “Paradoxos do Direito”, em 2005. Naquela ocasião eu ainda fui tentar defender a dialética, mesmo sem estar muito convencida que pelo direito há possibilidade de sínteses nos conflitos sociais, o que, aliás eu tinha dito em minha tese de doutorado.

Nesse momento me lembrei de algo que experimentei na psicanálise. Lembrei que não há uma solução, uma possibilidade de remover o sintoma. Serve de ponto de partida para algo novo a ser criado. Intrigada com o paradoxo, disse a Teubner, que, além de não haver síntese, por Lacan, havia um campo onde a lógica não pega, ou seja, há algo sempre desprovido de sentido, algo que não pode ser dito.

Teubner me disse: “Eu não entendo nada de psicanálise , mas pelo jeito você tem alguma experiência nisso. Seria interessante buscar em Lacan algo para o direito.”

Daí, tentei ler Lacan e não consegui. E fui atrás de Jorge Forbes, para me ensinar a ler Lacan. Acabei me entusiasmando com a psicanálise, a ponto de me tornar uma jurista psicanalista. Descobri que Lacan não se lê simplesmente, a partir de Lacan se inventa … inventa-se até o direito como utopia. Por que não?

PA: Agora você poderia nos situar em relação à Universidade, como anda a formação do jurista… e como isso se junta com o que você está inventando.

D: O mestrado, onde trabalho, existe há quase 15 anos. Para se manter enquanto mestrado numa situação de crise das universidades, tem que dar um passo além: criar um Doutorado em Direito. Já que nas universidades estamos diante de uma crise, esta crise provoca crítica e, consequentemente, chama para a criação.

PA:Frente à constatação da crise…

D: Pelos currículos dos cursos de direito, da graduação até a pós-graduação, os alunos de direito são estimulados a defender a cidadania, por exemplo, as causas nobres da humanidade, os interesses que estão acima dos interesses particulares, o bem comum. Mas, na maior parte de sua formação de fato aprendem a deixar tudo como está, estudando um direito que remonta ao século XVIII.

PA: O problema que se coloca então…

D: A maioria das pessoas sabe que o mundo mudou, tornou-se globalizado, só que o direito é muito centrado ainda a um contexto nacional. Há de se inventar um direito que dá conta das mudanças culturais trazidas pela globalização.

PA: Você poderia nos dar algumas referências teóricas que fundamentam seu projeto?

D: A psicanálise, pela qual aprendi , em primeiro lugar com Freud , que o ser humano não é tão racional como o direito alega. Com Lacan aprendi que as relações pai-orientado (Estado, família e outras instituições) não são mais absolutas, mas relativas. Jorge Forbes observa muito bem a existência do homem desbussolado, cujas referências não se encontram mais no dever da lei. Posso citar Hans Jonas, que toca a questão da responsabilidade pelo imprevisível , pelos efeitos desconhecidos dos avanças tecnológicos sobre a natureza.

PA: Como você exemplificaria isso?

D: As instituições sociais baseadas na idéia da autoridade, como Estado, família, empresa, estão em crise, e isso tem conseqüências jurídicas ou, pelo menos, deveria ter. No entanto, tenta-se sempre re-afirmar estas instituições que já perderam suas feições. Por exemplo, dizendo que o desemprego é um grande mal. Que vida boa é ser empregado de alguém. São tentativas de enquadrar novamente os trabalhadores no padrão tradicional de trabalho, apesar das mudanças que se processaram neste campo. O modelo de gigantescas fábricas mudou para redes de fornecedores de serviços. E vemos o direito ainda partindo do pressuposto das fábricas gigantescas, não dando conta de dar normas, por exemplo, a respeito de redes empresariais. Por isso, essas redes são capazes de exercer um verdadeiro controle social, em escala mundial.

Outra mudança que não é considerada é a que ocorre na família, onde novas relações se apresentam. Juntando meus filhos, aos filhos do meu segundo ou terceiro marido, convivem, hoje, pessoas que, pela lei não têm parentesco algum. São situações familiares mais complexas das quais os juízes têm que dar conta sem ter normas às quais se referir. Concluindo: o mundo , hoje, é muito mais complexo do que o direito moderno dá conta de regulamentar.

PA: Dorothee, você resolveu se candidatar para a coordenação desse Mestrado para criar um curso de excelência em Direito ?

D: Candidatei-me, porque vislumbro uma chance de transformação, de invenção. Como já mencionei, o direito não consegue acompanhar as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais trazidas pela globalização. A crise das instituições e os novos desafios colocados pela ciência e tecnologia, desde a informática até a biociência e a biotecnologia não são levados em conta no ensino jurídico, ou pelo menos não têm o espaço que mereceriam.

A idéia da reformulação do Mestrado e da criação do Doutorado na universidade , na qual trabalho, é deixar o direito gravitar em torno da questão dos Direitos Humanos, que se colocam no horizonte do direito, independentemente da ação estatal. Pelo estudo dos Direitos humanos conseguimos não somente contribuir para um novo direito global, mas dialogar com profissionais de outros campos do saber, fora do direito. Os direitos humanos são direitos reconhecidos por toda a humanidade, são a base de um novo direito global.

PA: Qual a sua idéia para dar início ao projeto?

D: A idéia é, realizar um amplo debate sobre os direitos humanos, debate com a participação de juristas e profissionais de outros campos do saber, tais como a filosofia, a medicina, a história, a psicanálise, para citar alguns.

PA: E o projeto…

D: O projeto deve, a partir desse debate, montar linhas e projetos de pesquisa que dão conta dessas novas questões que surgem não só no campo ético, mas também no campo jurídico. Destaco entre elas:a natureza como sujeito de direito, relevante para o direito ambiental e que pede normas internacionais; questões jurídicas ligadas ao avanço da genética; crimes cometidos aparentemente sem sentido, por exemplo, a queima de ônibus de linha; o sujeito de direito desorientado, capaz de matar pai e mãe e não se responsabilizar por isso; o papel do Estado e dos novos atores globais; a responsabilidade não mais pelo ato mas pelas conseqüências imprevisíveis deste.

A partir dessas e outras questões que nos afetam neste século, torna-se absolutamente necessário não apenas inventar um novo curso de direito, mas inventar também um novo mundo. Com essa perspectiva o direito tem a chance de deixar de ser conservador e tornar-se utópico.

Entrevistadora: Elisabeth Almeida