/A “desinstitucionalização” do luxo

Hoje, o luxo está mais a serviço da promoção de uma imagem singular do que de uma imagem de classe

por Jorge Forbes

É bastante comum a percepção cotidiana do luxo como um assunto leviano, supérfluo, símbolo de ostentação e poder de uma sociedade perversa, em desvario e “desbussolada”. O que é bastante curioso é que, por muitos milênios, o luxo foi percebido de uma maneira bem diferente. Desde a era paleontológica até a Idade Moderna, o luxo tem servido de elemento para acalmar o homem. Existem registros da época do homem das cavernas que apontam o luxo como sinal de identidade, da relação do homem com algo maior do que ele, incompreensível e inapreensível, e que, mais tarde, muitos viriam a chamar de Deus.

Nas festas primitivas, a diminuição de riquezas de uma tribo em função de oferendas a Deus significava assegurar um novo ciclo de vida, um rejuvenescimento, uma recriação do mundo. No período medieval, quando uma cidade queria adquirir status, era edificada uma catedral a custo de muitas privações dos cidadãos. No início da Era Clássica, as classes privilegiadas doavam por testamento suas riquezas à Igreja, a fim de preparar a salvação eterna. Sacrifícios como esses eram feitos em louvor a Deus, pois o luxo era a marca da aliança, a maneira que o homem encontrou de não se perder. O luxo situava o homem em relação a Deus ou aos deuses.

O luxo carregou um significado sagrado até a Revolução Francesa, quando se degenerou em batalha pela hierarquia social. O luxo passou de Deus para o âmbito da pura exibição burguesa, algo necessário para o confronto com o outro em uma base do “quem pode mais”. No entanto, se é inegável que as condutas de luxo são indissociáveis dos afrontamentos simbólicos entre os homens, existem razões para acreditarmos que, diante de um mundo globalizado e da evaporação da hierarquia social em favor da multiplicação em pequenos mundos, estamos recuperando o antigo sentido divino do luxo.

Em um tempo de individualismo galopante, é inegável a necessidade que o indivíduo tem de se destacar da massa, de não ser como o outro, de se sentir exceção. Como dizia Nietzsche, em “Além do Bem e do Mal”, existe um prazer de se saber diferente. No entanto, a despeito da sobrevivência das motivações elitistas, tais motivações não são mais fundadas na ostentação social. Agora fundam-se no sentimento da distância em relação ao outro, na diferença que se busca por obtenção de coisas raras, singulares, que fazem um furo no comum e que definem uma pessoalidade singular, alheia às formas e aos padrões convencionais. Hoje, o luxo está mais a serviço da promoção de uma imagem singular do que de uma imagem de classe.

O luxo está em via de “desinstitucionalização”, paralelamente ao que está ocorrendo nas esferas da família, da sexualidade, da religião, da moda e da política. A emergência de uma relação mais afetiva, mais sensível, aos bens de luxo tem despertado novas formas de consumo dispendioso. Tais formas estão mais no regime das emoções e das sensações pessoais do que em estratégias distintivas de classe social. Hoje em dia, por exemplo, vendem-se mais cremes anti-rugas do que maquiagem. O luxo passou a ser outra coisa.

O luxo continua sendo uma raridade. O que é raro nos dias de hoje? Segundo o sociólogo Domenico de Masi, primeiro, o tempo. Nossa maior riqueza é o tempo. Segundo, a autonomia; terceiro, o silêncio; quarto, a beleza; e, quinto, o espaço. São esses os cinco elementos do luxo. Ele acrescenta dizendo que o grande luxo é gostar de comer pêssegos e damascos sabendo que pêssegos e damascos são originários da China -e da China quando o Japão a invade e os rouba, levando-os para a Pérsia, que os difunde por toda a Europa. Ao saber disso, a pessoa percebe um sabor inédito ao colocar um pêssego ou um damasco na boca.

Muito menos ligadas nas vias do olhar do outro, hoje em dia as práticas do luxo são muito mais dominadas pela busca de saúde, do experencial, do sensitivo, do bem-estar emocional. Teatro das aparências, o luxo se põe a serviço do indivíduo em sua vida íntima e em suas sensações subjetivas. Na nossa sociedade, o luxo é aquilo capaz de ressuscitar uma aura do sagrado e da tradição formal, que fornece tonalidade cerimonial ao universo das coisas e que reinscreve a ritualidade no mundo desencantado, “massimediatizado” da consumação.

Nossa relação com o luxo é nossa necessidade, nesse momento, de nos subtrair à inconsistência do efêmero e de tocar em solo firme, sedimentado, em que o presente esteja carregado de uma referência durável. Por aí há uma surda necessidade espiritual. Alguma coisa que paire sempre sobre os nossos desejos de gozar, como os deuses, das coisas mais raras e belas que existem.

Cada vez mais, haverá um luxo para cada um.

(artigo publicado na Folha de S. Paulo – Opinião, em 23 de fevereiro de 2004).