/A Lição de Tércio

Palestra de Tercio Sampaio Ferraz Jr. apresentada na noite de 5 de julho de 2006, no Instituto da Psicanálise Lacaniana: O Debaate sobre a Inocência.

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Duas representações da Deusa da Justiça nos chamam a atenção quando olhamos para a antiguidade: uma grega, outra romana. A Justiça grega era representada por uma mulher de pé. Na mão esquerda, uma balança, de equilíbrio; na direita, uma espada. E ela tinha os olhos abertos: portanto, a idéia de que a justiça é cega vem da estátua romana, que também era representada por uma mulher, mas, ao contrário da grega, sentada, a balança nas duas mãos. Não tinha espada, e apresentava os olhos vedados. Vedados, mas não era cega. Quando as comparamos, obtemos resultados interessantes.

Poderíamos, por exemplo, imaginar que os olhos vedados da estátua romana simbolizam a acuidade máxima da atenção. E isso porque, para desempenhar sua função principal, ela tem dois ouvidos bem abertos. Ao contrário da estátua grega que julga vendo, a estátua romana mostra que a justiça romana julgava ouvindo.
Ao contrário da visão, a audição nos permite ouvir, às vezes, ao mesmo tempo, pessoas diferentes. E a justiça está num equilíbrio que se busca, temperando e pesando, o que se ouve de um lado e o que se ouve de outro. Acho que isso é importante para pensarmos, porque ouvimos o promotor, e agora ouviremos o advogado.

Nossa tradição é muito mais romana do que grega. Isso significa que o mais importante é aquilo que, ao ouvir um e outro, possamos pensar em termos do nosso juízo. O importante é o que se diz de um lado e o que se diz do outro, pois nunca saberemos o que realmente aconteceu. Não podemos, por exemplo, entrar dentro de alguém para saber o que está pensando, sentindo etc. Diante disso, temos que ter certo cuidado.

No que se refere ao caso de Suzane, é notável a importância que ganhou pela sua presença na mídia. As razões pelas quais a mídia o escolheu, em detrimento de outros, fazem parte, certamente, daquilo que leva a mídia a escolher os seus assuntos. Não rende notícia, por exemplo, publicar o caso de alguém ignóbil que matou pai e mãe.

Ora, isso apresenta, no modo de ouvir da justiça, uma porção de outros componentes que, na hora de pesar, têm que ser levados em consideração. Como é que se dá essa comunicação, que leva um julgamento, eventualmente, a uma absolvição ou a uma punição?

Nós ouvimos, na verdade, várias linguagens: testemunhos de gente sem nenhuma especialização na área jurídica, outros de gente com especializações em outras áreas, e outros, ainda, de pessoas sem nenhum estudo. Enfim, ouvimos uma linguagem que fala disso perante certas pessoas, como autoridades, um juiz, por exemplo, ou num interrogatório, perante um policial, numa relação comunicativa muito especial.

Além disso, ouvimos muita gente falar de um caso como esse fora de qualquer contexto oficial, como um entrevistado pela imprensa, por exemplo. É uma outra fala. Ouvimos, obviamente, o promotor, assim como o advogado; eles vão falar, o juiz também vai falar, e quem vai ouvir, durante muito tempo, serão pessoas escolhidas por eles, que comporão o júri, que representarão a sociedade, o povo. E o julgamento acabará sendo o resultado de todas essas falas.

O que saiu na imprensa, na forma de uma pressão, ou na forma de uma defesa, aquilo que correu na opinião pública também vai realizar o seu julgamento. Além disso, a sociedade também tem o direito de falar, e quem fala por ela é o promotor. Ao final nós vamos ter realmente condições de ter um retrato da figura do réu. Esse retrato vai surgir dessas diferentes falas. E o réu poderá, ou não, se identificar com elas.

Ocorrerá, no fundo, uma configuração, e a figura que surgirá dela é que será julgada, absolvida, ou, enfim, sofrerá uma pena. É essa figura que podemos julgar. Esse é um problema cruel para o direito contemporâneo: com toda sua tradição, afinal, quem é que nós julgamos? Não julgamos gente, pessoas? Julgamos o que, figuras? Eu diria que um pouco de cada coisa. Julgamos, efetivamente, alguém, digamos, de carne e osso, mas, acima de tudo julgamos uma pessoa.

Ora, como se sabe, a palavra pessoa vem de persona, do latim, que é a máscara, a máscara do teatro. É o que, no fundo, nós somos uns perante os outros: pessoas, máscaras, e o que o julgamento propõe é, em face da multiplicidade de máscaras, encontra uma persona. Não é fácil encontrá-la.

Mas ela vai surgir no fim, e vai ser condenada ou absolvida.

Nesse processo de encontro da persona, ela vai sofrer uma pena. Quando a gente ouve falar em pena, sobretudo do lado criminal, pensamos em algo como castigo. Mas na verdade a palavra pena, em português, e pela sua origem latina, abarca muitos sentidos. Aí os gregos foram sagazes: eles têm várias palavras para pena. Uma delas era parecida com a pena latina, que é a palavra poinê. Mas havia outras, como a kolasie, que significa podar, cortar fora. É diferente de poinê, que talvez possamos traduzir no direito moderno por pena compensatória, que é aquilo que se decide na balança: “é tanto que tem que ser compensado pelo que aconteceu”. Havia ainda outras formas parecidas com a kolasie, como a tisis, por exemplo, que era uma espécie de poda pública, que se fazia em nome de toda a comunidade. E quando percebemos que havia várias penas, perguntamos: “por que eram diferentes, e será que os romanos não percebiam isso?” Os romanos percebiam, só que usavam uma palavra só para dizer tudo isso. E percebiam o quê? Percebiam que, na hora de você apenar alguém, na poinê, na relação de compensação, você lida com um julgamento em que há uma simetria, em que há um de um lado e outro de outro lado. É isso o que produz a maior parte daquelas questões que chamamos de civis. Mas quando você usa a outra, a kolasie, quando é a poda, ou a poda pública, a tisis, você não lida com essa relação horizontal, mas você lida com outro tipo de relação, dita vertical. O equilíbrio da balança é complicado de ser obtido. É onde a retribuição, o movimento de retribuição (dado isso, então aquilo), sofre um viés diferente, porque aproxima a retribuição, muitas vezes, daquilo que a gente chama de retaliação. São palavras diferentes, mas que, na kolasie, nesse outro tipo de retribuição, é a palavra mais correta, e que põe a pena e o direito numa fronteira muito complicada, entre a retribuição, no sentido do direito, e a vingança. Não é muito fácil separar essas duas coisas. Aliás, uma lembrança curiosa é que o verbo latino vindìcáre deu dois verbos conhecidos em português: um é vindicar, ou reivindicar, e o outro é vingar, vêm da mesma raiz.

Na kolasie, isto é, nessa relação chamada vertical, a pena é parecida com uma retaliação, em que a fronteira com a vingança é difícil de ser percebida, é aí que provavelmente nasceu aquilo que depois veio a ser chamado de direito penal.

Esse terreno exige qualidades muito específicas, tanto do promotor, como do advogado, na forma de construir a figura, a persona, e depois lidar com a pena. Pois a linha divisória entre, de um lado, a vingança, e, de outro, a retaliação, suscita uma quantidade de emoções muito maior, e, por isso, as retóricas são diferentes. Nessa área, a fala emocional é, sem dúvida, muito importante.

Diante de tudo isso, afinal, talvez a grande pergunta que façamos seja: “o que eu quero para esse caso?” Se, depois de toda essa construção da persona, do julgamento, da penação, que está naquela linha da retaliação, como é que se faz justiça? Essa será a grande pergunta. A grande pergunta que ficará. Será que, se for absolvida, dirão, para o resto da vida, que foi uma injustiça, ou vice-versa? Enfim, como é que se faz justiça?

Nós temos, primeiro, na palavra justiça, dois sentidos básicos: um, é aquilo que chamamos de justeza, e que tem por parâmetro a igualdade proporcional, ou a igualdade, se quiserem. Portanto, a balança e a medida. Mas na palavra justiça se esconde alguma outra coisa, dentro da qual os gregos já falavam: eles diziam que a justiça era responsável pela ordem, não apenas pela ordem da cidade, mas também pela do cosmos. Nesse sentido, a justiça era uma coisa profundamente enraizada no ser humano, e tinha a ver com o próprio sentido de humanidade: saber ter senso de julgar, esse é o outro lado da justiça. Os dois lados nem sempre coincidem, nem sempre você obtém justeza e, ao mesmo tempo, justiça. E, às vezes, você consegue justiça, mas não obtém justeza. Muitas vezes, nosso senso, olhando para o que aconteceu, não coincidiu com aquilo que foi obtido em termos de justeza, e aí protestamos. Ou vice-versa. Isso provavelmente vai acontecer, num caso em que tantas falas existem na construção da persona, e nós vamos sentir isso.

Por fim, tanto na tradição romana quanto na tradição grega, e também em muitas outras tradições, míticas, a representação da Justiça é uma mulher. Há pesquisas muito interessantes a respeito disso. Olhando essas pesquisas, ficamos sabendo que as duas deusas da justiça, que eram mãe e filha, não viviam no Olimpo, como Afrodite ou Hera, por exemplo. Têmis não. Têmis é uma deusa, cujo nome, às vezes, nos mitos, aparece como filha de Géia, a Terra, e, às vezes, ela é a própria Terra. Mas uma coisa é certa: a justiça não é olímpica, ela é telúrica, pertence à terra. Como ela pertence à terra, podemos entender por que os leigos disseram que a justiça era afinal responsável pela ordem cósmica. Talvez por aí possamos entender por que uma mulher. A justiça tem um sentido seminal, ela está dentro da gente, e só pode estar dentro da gente por essa via, que é a via feminina, produtora da vida.

Suzane é uma moça, os dois rapazes são homens, e a justiça que vai julgá-los, homens e mulheres, o nosso senso de justiça, e a nossa percepção da justeza, em algum momento serão dominados por esse feminino que vive dentro de nós e que vai dizer se morre ou vive.

Texto estabelecido por Teresa Genesini e Rodrigo Abrantes

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