/Lição 3 – Seminário XVIII de Lacan

DE UM DISCURSO QUE NÃO SERIA DO SEMBLANTE – JACQUES LACAN CONTRA OS LINGÜISTAS

LIÇÃO 3 – 10 de fevereiro de 1971 – itens 1 e 2.

Sinopse de Maria Helena Barbosa Bogochvol

Apesar da greve, o auditório estava repleto neste dia.
Lacan, que estava inclinado a fazer greve, tendo a presença das pessoas, inicia afirmando que se vê forçado, por cortesia, para fazer jus a esta presença, a dar seu seminário. No entanto, levando em conta a greve, alterará seu plano de exposição do que havia preparado, para abordar alguns pontos, que já algum tempo fazem equívoco, do que é sua relação à dita universidade.

1

Aponta que sua posição é marginal à universidade.
Ele dá seus seminários dentro do ambiente universitário porém sem nenhuma espécie de vínculo.
Esta sua inserção singular, seu ensino, provoca alguns movimentos por parte de setores dentro da universidade.
A conduta adotada por Lacan, frente a isto, é de desdém. E ele reafirma este desdém enquanto uma conduta e não um sentimento. Isto merece desprezo. É uma lógica.
Hoje, no entanto, responderá a um destes movimentos, que vem de dentro de um campo que é definido como universitário, que é a lingüística.

Cita o artigo EXERCÍCIOS DE ESTILO DE JACQUES LACAN, publicado dois anos antes, em LA NOUVELLE REVUE FRANÇAISE que, como um sino, pré-anunciava a saída de seu seminário de dentro d’ Écolle Normale. Neste artigo ele foi acusado, com palavras rudes, de estar promovendo a injúria contra a lingüística, no seio da escola. E ele nem era encarregado de nenhum ensino lá.

Agora este tema estaria sendo retomado, de modo mais ou menos leviano, em entrevistas, como a do lingüista André Martinet no Le Monde, em 5 de janeiro deste ano.
Lacan se propõe a abordar a questão das relações da linguística e do seu ensino como forma de dissipar, definitivamente, um certo equívoco.
Aponta que os lingüistas universitários gostariam de se reservar o privilégio de falar da linguagem. Criticam-no de abuso, de “uso metafórico” da lingüística em seu ensino.

E, se é fato que é em torno do desenvolvimento lingüístico que se mantém o eixo do seu ensino, é também fato provado que, como ele diz: “EU SEI A QUE ME ATER”, isto é, a manutenção do lugar do analista.
E ele vai mais fundo, desde sua posição, já trabalhando a linguagem e seus recursos, quando contrapõe esta sua enunciação com outra: “EU SEI AONDE EU ME MANTENHO”, que colocando ênfase no “AONDE” pressupõe a posse do mapa da coisa, quem tem a receita.
Com este contraponto de enunciações mostra a diferença dos discursos a partir de onde estão, a psicanálise e a lingüística.

Lacan cita a ciência newtoniana, o princípio da ciência tal como o processo pelo qual se engaja a psicanálise e que introduz um campo onde, em nenhum domínio da ciência, há esse mapa para nos dizer onde estar; a ciência repudia este aonde estamos; não é com isto que ela opera. Ela opera com a hipótese e a hipótese participa antes de tudo, da lógica. Se “x”, então “y”. Aqui há um “se”, o condicional da verdade que está articulada a um conseqüente que deve ser verificável. A verdade se verifica pela sua conseqüência. Uma lógica onde uma conclusão verdadeira pode ser tirada de uma premissa falsa.

Por outro lado, quem tem o mapa, quem sabe onde está, esta no campo do discurso universitário, do saber consagrado. Aí a verdade da hipótese é definida pelo consentimento de todas autoridades deste campo. É desta forma que o estatuto do campo científico é assim conferido pelo universitário. Para Lacan, não é à toa que o Discurso Universitário só poderia se articular a partir do Discurso do Mestre.

Então, Lacan pergunta se seria possível que se intitule um discurso diferentemente aí, neste domínio, cujo estatuto é universitário. E retoma o ponto original que gera essa pergunta – a propósito das objeções feitas a ele de que faria uso metafórico da lingüística.

2

Lacan lança-se a responder às objeções, lança-se neste domínio cujo estatuto é universitário com um propósito de intitular sua relação com a lingüística.
De início introduz Mencius, que já havia citado anteriormente, um dos livros fundamentais do pensamento chinês. Será sua referência para ajudá-lo a definir seu lugar, enquanto analista. Certamente, uma referência bastante estranha e inusual no meio universitário francês.

E se, no domínio universitário, pressupõe-se dizer qual é o mapa, onde se está, o que se sabe, Lacan vai dizer que, se ele sabe a que se ater, ao mesmo tempo, ele não sabe o que diz.
E isto está datado, ressalta, com a hipótese do inconsciente introduzida por Freud que situa todo e qualquer discurso como articulado de uma estrutura, que nada quer dizer, onde ele se acha alienado de forma irredutível (cap.1).
Acrescenta, dando precisão, que nenhum dos discursos proferidos sobre o fundamento da psicanálise, os quatro discursos, DM,DU,DH,DA, permitem esperar, seja de que modo for, saber o que diz. E, mesmo se ele não sabe o que diz; somente sabe que não sabe. A causa disto é a própria natureza da linguagem. Se Freud demonstrou que a matéria do inconsciente é a linguagem, Lacan acrescentou: o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

Anuncia que vai introduzir a própria língua chinesa para sustentar sua argumentação. Isto, ele diz, vai tornar azeda sua fala; especialmente para os lingüistas. É rechaçado por eles, os lingüistas, dentro do domínio universitário. Ele não é discutido. (Isto me faz lembrar de uma ocasião, em um jantar que compareci, num dos redutos dos expoentes do saber médico intelectual em SP. Uma destas personalidades teve a manha de dizer que não havia lido Lacan mas, era contra!- realmente bizarro!).

Em contrapartida, graças a ele, e a outros como Levi-Straus e Roland Barthes, a lingüística é divulgada.
Com Lacan a lingüística ganhou interesse, passou até mesmo a ser estudada por parte de alguns dos que seguem seus seminários. De sua parte, Lacan diz que estudar lingüística não é sua finalidade; está pouco se “lixando” para a lingüística. O que lhe interessa é diretamente a linguagem. É isto que é da competência no campo da psicanálise.
E Lacan aponta que, para os lingüistas, desde a definição de seu objeto de estudo que é a linguagem, o referente utilizado, a própria linguagem, jamais será suficiente, jamais será bom. Todo uso que se faça da linguagem se desloca na metáfora. É inapreensível uma definição de uma linguagem-objeto. Não há metalinguagem. É a natureza da linguagem; é isto que faz uma linguagem. E acha como curioso o fato dos lingüistas não verem isto.
Toda designação é metafórica; só pode se fazer algo por intermédio de outra coisa. Para exemplificar esta afirmação, ele diz – “isto!” – para designar um charuto que está em sua mão.

Lacan nos mostra que isto implica, de imediato, que ele escolheu fazer só isto. Poderia ter dito fumo, objeto fálico, bastão produtor de câncer ou qualquer outra coisa como exemplo. Escolheu “isto”. Desenvolvendo este exemplo, diz que quando iluminamos um pouco mais esse charuto e o fato de dizer “isto” já vemos que este “isto” não é bem isto. Podemos dizer que “isto” é um fato de linguagem. E que isto que ele acabou de designar como “isto”, não é um charuto pois é um charuto quando ele o fuma e que, quando o fuma, ele não fala, e sim, fuma. E, o significante (isto) ao qual se refere o discurso proferido (é um fato de discurso, não tem jeito de escaparmos disto), ele é o único suporte e que evoca, em sua natureza, um referente. Um referente que nunca é bom, que nunca é suficiente, escapa.

É por isto que o referente é sempre o real. É real, à medida em que é impossível de designar. E, mediante a isto, só resta construí-lo. Desta forma, a lingüística (suas leis) só pode ser uma metáfora que se fabrica para não funcionar.
Retoma a língua chinesa. Avisa que não vai tomá-la como o fazem os ocultistas. Que tomam o yang e o yin, como todos sabem, como o macho e a fêmea. Não vai falar dos caracteres como todo mundo.
Comenta como os caracteres chineses são pouco familiares para a maioria dos presentes. Vai contudo, se servir deles. E, se fala deles, explica que é porque são bons exemplos de referentes inencontráveis.
Coloca no quadro um caractere chinês e diz que se lê WEI. WEI pode ser empregado com AGIR, como NÃO-AGIR, como COMO, que serve de conjunção para fazer metáfora, como ENQUANTO ISTO SE REFERE A TAL COISA e que por isso, justamente, não é forçoso se referir a isso. A maior flexibilidade é dada a este caractere WEI, como verbo AGIR e como conjunção da metáfora.

É a língua chinesa, uma língua na qual os verbos se transformam em tênues conjunções. Isto ajudou a Lacan a generalizar a função do significante (o significante representa o sujeito para outro significante).
A língua chinesa rompe a sustentação da dupla articulação definida pelos lingüistas como característica geral da linguagem (desenvolvida por A. Martinet em ÉLÉMENTS DE LINGUISTIQUE GÉNÉRALE). Essa dupla articulação sustenta que existem os fonemas que não querem dizer nada e, as palavras (monemas) que querem dizer algo. O exemplo WEI, que Lacan utiliza, mostra que, mesmo no nível do fonema, isto já quer dizer alguma coisa. (Um exemplo, guardadas as devidas proporções, em nossa língua talvez possa ser: quando digo a casa, apreendemos um certo sentido, moradia; se digo Casa Verde, um bairro em SP; e se digo casa verde de Llosa, um livro). Um sentido que não tem nenhuma relação com o que quer dizer cada um por si, separadamente.
Da língua chinesa, Lacan escorrega para a alemã, desembocando no grego, para apontar que com a metáfora se vai longe, é um descaminho.

Aponta que, além do aspecto metafórico implicado na uso da linguagem, há também a metonímia. Esta por sua vez está diretamente ligada a performance, como diriam os lingüistas. É a performance associada à noção de competência. Para Lacan a língua é a própria competência. O ato mesmo de falá-la já implica numa produção de algo que ele define como o mais-de-gozar.