/O retorno da filha mal amada

Dorothee Rüdger

… pois teu amor, tenho certeza, é mais profundo do que tua fala.

(Cordélia em Rei Lear de William Shakespeare)

A psicanálise é a filha mal amada da ciência. Embora Sigmund Freud tivesse plena convicção de ser um cientista em busca da verdade, a psicanálise sempre incomodou. Ousou pronunciar do que os poetas já desconfiavam. O amor é mais profundo que a fala, há algo mais no mundo do que compreende a vã filosofia. Procurando saber desse algo, o cientista Fausto , na peça de Johann Wolfgang Von Goethe, arrebenta si próprio e o mundo. A psicanálise afirma que existe, sim, algo que escapa, algo que foge da consciência, algo que obedece a pulsões, algo que se manifesta nos atos falhos, nos sonhos, nos chistes, nos sintomas das neuroses, das psicoses e da perversão. Ela nos mostra as frestas do saber sobre o mundo, frestas essas que nos fazem questionar , repensar, recriar. Como tudo que é desconhecido, é irracional e profundo, o algo além do conhecimento assusta, dá a sensação de que não há esse controle bíblico sobre tudo e todos, que nos foi prometido por Deus na porta da saída do paraíso.

Com sua incapacidade confessa de falar do amor, Cordélia fere o narcisismo do pai e é expulsa do reino. Tal qual a filha de Rei Lear, a psicanálise ficou fora da divisão do reino da verdade, disputado, palmo a palmo, entre as escolas do conhecimento. No entanto, marginalizada e isolada, a psicanálise continua a incomodar ao mesmo tempo em que é solicitada a encontrar soluções para um mundo em crise. Pois vivemos num mundo que escapa das explicações científicas, um mundo que não se comporta como quer a vã filosofia. A psicanálise é chamada para solucionar o que não tem solução, e, no entanto, a ciência não a leva a sério. Tal como Cordélia, não se presta ao discurso onisciente e onipotente das ciências. No entanto, só assim é capaz de apontar para seu papo furado, de mostrar que há algo podre no Reino da Dinamarca, que há, em outras palavras, incompletude.

Para restabelecer a ordem das coisas, isto é, o domínio da ciência sobre o saber, nada mais lógico do que chamar a filha mal amada de volta para a casa, nada mais óbvio do que domesticá-la pela neurociência. O preço desse pedaço do reino é seu enquadramento nos conceitos da anatomia, da fisiologia e da farmácia. Deixando de ser hermenêutica, filosofia e poesia, Cordélia poderia subir no trono que lhe está reservado pela ciência da mente.

Mas… o que é ciência? O que busca a ciência, ela que já foi filha rebelde do saber dominado pela doutrina da fé? A questão gira em torno de seus objetivos, da verdade e da realidade, gira em torno de como chegar a essa verdade, gira em torno da questão de como os cientistas se aproximam do seu objeto de estudo.

O conflito sobre a aproximação não atinge somente a ciência da mente. Está presente na ciência como um todo, principalmente, nas ciências sociais. Os debates, em outras palavras, só mudam de endereço. Empírica ou hermenêutica, eis a questão! Positivismo ou dialética? O debate comove as ciências sociais na Alemanha, desde os anos 60 do século passado. Qual é a causa da ciência? “Constatar os fatos, verificá-los e falsificá-los para encontrar soluções para os problemas sociais que pressupomos. O resto é perda de tempo!” diz Karl Popper. “De jeito nenhum! A teoria crítica desconfia tanto mais da fachada da sociedade, quanto mais perfeita ela se apresenta” – replica Theodor W. Adorno. A escola de Frankfurt concorda. “É preciso levantar a pedra que esconde a barbárie que está gerando as desgraças do mundo!”

Mapear o cérebro para prestar a prova neurológica do inconsciente, como querem Eric Kandel e os neurocientistas, ou, indagar “analogias, conexões e correlações” entre os fenômenos que revelam a existência das profundezas do inconsciente, como quer Sigmund Freud? Estamos, mais uma vez, diante de um impasse da compreensão da verdade, tal como é posto na sociologia, na economia, no direito.

No entanto, ela existe, a verdade? Ela pode ser dita? Não seria um jogo de linguagem usado pelas irmãs de Cordélia interessadas em dominar o mundo? Há algo que escapa da fala: amor, paixão, desejo. Há algo indizível, algo surpreendente, há o real que denuncia a falácia dos discursos da verdade, o paliativo da fala. Jacques Lacan ouve Cordélia, respeita sua falta de palavras, sua recusa de dizer o que quer que seja, sua recusa de disputar o falo do rei.

A partir da clínica do real de Jacques Lacan, toda uma geração de pensadores denuncia a prisão da mente na linguagem, na fala. Se o discurso é um paliativo, como então é possível, através do discurso levantar a pedra, arrancar a fachada lisa? Ver, descrever e compreender o monstro, a barbárie, e, assim, chegar à verdade, não é tudo. O que é a verdade? Convenção estabelecida entre os cientistas no poder nas universidades e nos institutos de pesquisa! A verdade é um jogo de palavras inventado por experts que determinam o tabuleiro, as figuras e as regras do jogo. Teoria positivista ou dialética, teoria crítica ou sistêmica? O que muda é a apenas a regra do jogo. Ao final das contas, como esse jogo é muito caro, quem financia o jogo científico escolhe o tabuleiro, como diz Jean François Lyotard. Com isso, a verdade se rende ao pragmatismo. Presta-se a fornecer o band-aid que se coloca em cima da ferida exposta, na melhor das hipóteses. Na pior das hipóteses torna-se discurso único que alega que seu mapa é o terreno, como denuncia Jean Baudrillard.

Feita Cordélia que se preza, a psicanálise sustenta seu discurso diferente de todos os outros. Responsabiliza-se pela denúncia da ferida exposta. Não cai nas armadilhas da chamada de volta para a casa da ciência, interessada em tornar-se, definitivamente, único discurso possível. A psicanálise atravessa os discursos, mostra seus furos e limites. Prepara para um mundo cheio de surpresas que constantemente subvertem o conhecimento estabelecido. Embora reconhecendo que sem o mapa estaríamos perdidos no terreno, que sem a fala não seríamos humanos, como diria Jacques Lacan, nos alerta que a verdade é sempre incompleta.

Qual é o lugar que cabe à psicanálise? Afinal, o Rei está morto! Seu trono permanece vazio, em meio a discursos esvaziados pela globalização. A lei paterna não pode mais ser invocada para reger um mundo, no qual a velha ordem está se desfazendo diante de nossos olhos. No vácuo do poder, aparece a violência do Estado, da sociedade, e até das cabeças pensantes. Aparecem as crenças, as superstições. Aparece o vale-tudo. A psicanálise, tal qual Cordélia viva, apesar de declarada morta, rejeita o trono, já que não há mais trono. Mas, ainda, cabe-lhe o lugar da rainha, o privilégio de, participando da vida cultural, não só ouvir os sinais dos tempos, como apontar para as os trincos no espelho que reflete o mundo. Em nome do amor mais profundo que a fala, cabe-lhe manter o desejo vivo em cada indivíduo, em cada comunidade. Cabe-lhe dar sua contribuição para que a humanidade encontre, pelas rachaduras da verdade, caminhos abertos para constantemente inventar um mundo novo.