/Comentário do texto de Jacques Lacan: O Lugar da Psicanálise na Medicina

Em 1966, Jacques Lacan é convidado para um debate no Collège de Médecine, na La Salpetrière, em Paris, sobre “O lugar da psicanálise na medicina”. Preside a mesa Jenny Aubry (mãe de Elisabeth Roudinesco) e dela também participam a psicanalista Ginette Raimbaut, o endocrinologista Henri-Pierre Klotz e o pediatra Pierre Royer.

O debate se inicia com as provocações de Henri-Pierre Klotz, o qual coloca as habituais questões que médicos fazem a analistas, baseados em um discutível princípio científico das evidências. Pierre Royer, mais docilmente, acompanha seu colega em seu interrogatório inicial. Jacques Lacan lhes dá uma longa resposta na qual sintetiza com clareza incomum os principais pontos de seu ensino. A sua conclusão é surpreendente. Poderia quase assim ser enunciada: – a verdadeira medicina é a psicanálise.

Desnecessário dizer que essa demonstração não agradou muito aos que se achavam filhos legítimos de Hipócrates. O dócil pediatra do início do debate se transformou em verdadeiro Herodes querendo matar todos os filhos de Jacques Lacan e, se possível, o próprio.

As questões levantadas nesse texto surpreendem por sua atualidade. As respostas continuam a aguardar quem delas possa fazer suporte, pois, como ali afirma Lacan: “Este lugar (da psicanálise na medicina) atualmente é marginal e, como já escrevi em várias ocasiões, extraterritorial. Ele é marginal por causa da posição da medicina em relação à psicanálise – ela admite-a como uma espécie de ajuda exterior, comparável àquela dos psicólogos e dos outros distintos assistentes terapêuticos Ele é extraterritorial por conta dos psicanalistas, que provavelmente têm suas razões para querer conservar essa extraterritorialidade. Não são minhas estas razões, mas não creio que minha vontade baste para modificar as coisas.”

Leia em seguida algumas frases extraídas do texto:

“Um corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo”.

“Eis então duas balizas, primeiramente a demanda do doente, em segundo lugar o gozo do corpo.”

“A dimensão ética é aquela que se estende em direção ao gozo.”

“O desejo é de alguma maneira o ponto de compromisso, a escala da dimensão do gozo, na medida em que, de certa forma, permite levar adiante o nível da barreira do prazer.”

“Prazer é a excitação mínima, aquilo que faz desaparecer a tensão, tempera-a ao máximo; é aquilo que nos pára necessariamente a um ponto de distanciamento do gozo. É uma barreira ao gozo.”

“Há um ponto fantasmático, de dimensão imaginária, que faz com que o desejo seja suspenso a alguma coisa da qual não é de sua natureza exigir verdadeiramente a realização.”

“É no registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica.”

“A demanda não é absolutamente idêntica ao desejo; é por vezes, diametralmente oposta àquilo que se deseja.”

“Existe um desejo porque existe algo de inconsciente, algo da linguagem que escapa ao sujeito em sua estrutura e seus efeitos; há sempre no nível da linguagem alguma coisa que está além da consciência. É aí que pode se situar a função do desejo.”

“O saber permanece para o sujeito marcado de um valor nodal pelo fato que o desejo sexual na psicanálise não é a imagem que devemos conceber a partir de um mito da tendência orgânica. Ele é algo infinitamente mais elevado e ligado, antes de mais nada, precisamente à linguagem, na medida em que é a linguagem que lhe dá inicialmente seu lugar e que sua primeira aparição no desenvolvimento do indivíduo se manifesta no nível do desejo de saber.”

“O que indico ao falar da posição que pode ocupar o psicanalista, é que atualmente ela é a única de onde o médico pode manter a originalidade de sempre de sua posição, qual seja, daquela de alguém que tem que responder a uma demanda de saber, ainda que isso possa ser feito conduzindo-se o sujeito a voltar-se para o lado oposto das idéias que emite para apresentar esta demanda.”

“Se o inconsciente não é uma coisa monótona, mas, ao contrário, uma fechadura tão precisa quanto possível e cujo manejo não há nada além de não abrir aquilo que está além de uma cifra da maneira inversa de uma chave, esta abertura só pode servir ao sujeito em sua demanda de saber. O inesperado é que o próprio sujeito confesse sua verdade e a confesse sem sabê-lo.”

“Na medida em que mais do que nunca a ciência está com a palavra, mais do que nunca se suporta este mito do sujeito-suposto-saber, e é isto que permite a existência do fenômeno da transferência enquanto remete ao mais primitivo, ao mais enraizado do desejo de saber.”