/De Célio Garcia: A vítima, sua vez, sua voz

Para chegar a esse título, conversando ao telefone, hesitei.
Ao adotá-lo, decidi-me a fazer valer efeitos que as palavras podem provocar. Consultando documentação disponível, fiquei sabendo existir a expressão ”idade de ouro” na história do tratamento dado à questão da vítima.

Fui surpreendido pela expressão. Fiquei sabendo que a expressão faz menção ao fato de que a vítima participava diretamente da iniciativa de buscar compensação, indenização, que nome tenha a vingança, ou justiça com as próprias mãos. Mas, minha atitude era de ir bem mais longe. Para isso não responderia alguma pergunta apressada que eu mesmo me fizesse. Fato é que alguns anos ou mesmo séculos se passaram, e já vai longe a idade de ouro. Tive que prosseguir na minha pesquisa. Na idade moderna, o Estado se atribuíra exclusividade do uso da força, por conseguinte, a justiça seria aplicada pelo Poder Judiciário num Estado de Direito. Tudo isso me foi dito em termos já consagrados; eu estava à procura dos temos (consagrados ou não) e seus eventuais efeitos. A palavra Vítima vem do latim “victima” animal oferecido em sacrifício aos deuses, em seguida, o que é sacrificado em sentido próprio ou figurado. Empregado com sentido de sacrifício, seu emprego é encontrado em teologia desde o século XVII ao falarmos de Cristo. Por extensão, o termo foi empregado no caso de sofrimento causado a uma pessoa por um agente, ou acontecimento nefasto, ou ainda em virtude de seus próprios atos (vítima de si mesmo). Desde o século XVII emprega-se para falar de uma pessoa morta ou ferida por força de cataclismo, acidente, ou violência. O ultimo sentido é dominante em nossos dias, mas o antigo valor se mantém quando uma decisão humana voluntária é suposta. Toda essa rede semântica serve de pano de fundo para nossa reflexão. A que tipo de exercício eu me dedico nesse exato momento? É que uma língua falada, uma língua de autores, tem sempre uma parte submersa a disposição do falante desde que este se dedique ao exercício ora em pauta. A língua dos formulários, a terminologia dos programas, dos planejadores, dos burocratas, é uma língua de serviço. Nós precisamos dessa língua de serviço, funcional, mas ela não é a única. Quando a língua funcional se implanta, algo é deixado de lado; por exemplo, ela exige que uma tradução seja pelo menos viável, senão perfeita, mesmo que um preço tenha que ser pago.

Vamos ao nosso tema.

Se a vingança foi institucionalizada, sendo substituída por montagens jurídicas e instrumentos de reparação, desapareceu o código de honra que presidia na sociedade feudal e aristocrática vingar uma afronta (ver as regras de um duelo). Se a sensibilidade de uma época leva à transformação da vingança, com a conseqüente condenação da vingança, há lugar para um discurso que vem substituir o anterior. Qual é esse novo discurso? Minha hipótese: É o discurso da vítima.
Se a vítima não está mais autorizada a falar em vingança contra quem a ofendeu, o discurso * vitimário surge como disponível. O poder da compaixão em nossa sociedade, em nossa cultura, é um * viés tomado em nossa época pela exigência democrática.
Por outro lado, o estatuto de vítima prevê um discurso e um relato plausível, crível, confiável, graças ao qual a pessoa apresenta o drama de uma vida ordinária.

Conseqüências do discurso vitimário.

Na época moderna, acima examinada, caracterizada pelo Estado de Direito, à vítima se concedia escassa presença na cena do Tribunal. Ela nem era citada. Só em caso de indenização, e assim mesmo só para compensação material.
Constituído o Estado moderno, suas instituições, como toda instituição histórica, eventualmente estão submetidas a um processo de desgaste, de evolução, de adaptação aos novos costumes. Imaginem o esforço e criatividade de que fazem prova os constitucionalistas nesse exato momento ao tentarem chegar a uma constituição para a Europa dos vinte paises membros da União Européia. Imaginem só um instante o que terá sido a liberação dos escravos (para manter-nos próximo ao nosso tema) aqui em nosso Brasil em 1888 (apesar de ser o último país a tomar essa decisão, alguma coisa foi preciso estabelecer, adaptar no que diz respeito ao estatuto dos liberados da condição de escravo).
Alba Zaluar constata no episódio a origem dos modos de sobrevivência adotados pelos negros nas praças e ruas do Rio de Janeiro, já que não tinham nem sempre ofício, ou salário, que lhes garantisse o mínimo. Alguns desses expedientes eram no limite, na fronteira entre o lícito e o ilícito. Enfim, o vocabulário muda. A sensibilidade das gentes não é a mesma com o passar dos tempos. Agora, em nossos dias, fiquei sabendo, é a vez da vítima. Jamais a vítima poderia sustentar uma pretensão plausível no Tribunal se ela não dispusesse de um discurso identificado por garantias semântico-políticas, sua regras de retórica. Do outro lado, que língua empregar quando o Tribunal pretende se dirigir à vítima, avaliar seu sofrimento, atender suas queixas? Esse é um outro problema, também com seus aspectos discursivos. Examinemos o caso do assédio sexual.

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Volto ao tema de nossa conversa. No Brasil, como em outros países, crescem manifestações de sensibilidade a situações consideradas de “assédio sexual”. A campanha contra a violência e o abuso por ocasião do “assédio sexual” foi ocasião de iniciativas por parte de grupos e pessoas que se sentem molestadas. Nos Estados Unidos, membros da comunidade universitária e mulheres tendo vivido cenas de “assédio sexual” no campus de algumas universidades norte-americanas se viram envolvidas em episódios dessa natureza. A vítima, ao acusar o parceiro indesejável, declarava diante da justiça absoluta isenção assim como certeza quanto ao comportamento execrado. Na avaliação de alguns casos amplamente documentados na imprensa, logo se constata que vem a ser difícil definir o que seria “sexual harassement”. A “National Association of Scholars”, destacada entidade no seio da comunidade universitária, reunindo eminentes professores e pesquisadores, mandou publicar longa manifestação apontando desacertos na campanha contra “abuso sexual”. Em certo momento diz – “The NAS urges institutions of higher education to define sexual harassement precisely…”. Difícil pensar como vamos definir “sexual harassement” sem fazer apelo à Psicanálise, limitando a abordagem da questão a meros procedimentos jurídicos ou ainda qualificando o dito assédio como “behavior”. Vamos examinar a situação onde amor/sexo se produzem, sem esquecer de mencionar as eventuais dificuldades atravessadas pela Psicanálise, assim como por nossos padrões morais ao abordar a questão.
Vamos, nós, homens e mulheres, jovens e menos jovens, um dia tirar a limpo o que entendemos por “assédio sexual”.

Vítima e indiciado.

Ministério da Justiça na França criou Tribunal Especial para que fossem reunidos vítima e indiciado em caso de crime praticado por portador de sofrimento mental. A lei é pronunciada diante dos interessados. Como dizemos no Brasil, inimputabilidade não equivale à impronúncia. Por conseguinte, a co-presença ou a comparution (termo tomado de Lévinas) voltam a ser considerados importantes no ritual jurídico. No antigo Código Penal não havia lugar para se dizer que tipo de afecção mental acometia o portador de sofrimento mental, tal era rapidez com que se resolvia o caso. Não havendo crime, nem delito, dizia o Código Penal francês de 1810. Podemos dizer que diante do réu que não tinha condições de responder pelo seu ato, o Juiz fazia confiança à Psicologia; o processo tinha fim no momento em que a Psicologia se pronunciasse. Já não é o que acontece. As instruções atuais trazem de volta o Juiz, comenta Zagoury, ele mesmo psiquiatra perito junto ao Tribunal de Paris; com isso, o processo tem seu curso. O cerimonial põe em confronto vitima e réu, esperando-se que algum efeito terapêutico se produza. Não por intervenção do psicólogo, mas pelo ato político de julgar, pela satisfação dada à vítima. A intervenção da Psiquiatria quando solicitada pelo Judiciário por volta do final do século XIX fez com que houvesse durante cento e cinqüenta anos casamento harmonioso. Foi nessa época que a entidade nosológica monomania criada para explicar um crime que era loucura, ou uma loucura que era um crime, constituiu-se em contribuição logo abraçada pelo Judiciário.
Melhor seria, dizem os comentários atuais, reconhecer quando for o caso, antagonismo entre Prática Jurídica e Psiquiatria.

Aqui temos que registrar restrições que já se fazem quanto ao que pode esperar a vítima, ou terá sido prometido à vítima, quando sabemos que nenhuma certeza quanto ao luto pode estar assegurada. No máximo a indenização material pode representar algo de certo. Inicialmente, temos que deixar claro que não há um perfil único de vítima.
Cada um reage de uma maneira. Alguns se prestam a uma atitude mais humana, atentos à singularidade do caso, outros se prestam à vingança. Um famoso caso de serial killer deu margem a observações dessa natureza. Enfim, o que deixo aqui assinalado e trazido à nossa atenção seria uma despsicologização da cena no Tribunal. Ao mesmo tempo, coincidentemente, houve reaparecimento da vítima na cena do Tribunal. É a história da questão da vítima em mais um cenário, ou mais um capítulo. Esse é capitulo atual, nós o escrevemos, nem sempre de maneira clara.

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A voz da vítima, para não esquecer a contrapartida do meu título, me pareceu de imediato, muito mais complicado. Sussurros, murmúrios, gemidos, quem está disposto a ouvir? Como ouvi-los? E o silêncio da vítima, conseguimos ouvir? E o silêncio que a vítima se impõe, vocês sabem ouvir? Ou vamos obrigá-las a passar à denúncia?
E o filme “silent lambs”? E os testemunhos trazidos por outros companheiros das vítimas? Quero lembrar dois.

Nas ruínas do gueto de Varsóvia, entre pedras carbonizadas e restos de corpos humanos, foi encontrada uma pequena garrafa. Ela continha o testamento de Yossel Rakover, escrito nas ultimas horas que precederam a destruição total do gueto. Yossel certa vez teve que se refugiar nas montanhas onde ele deixaria sua mulher e dois filhos assassinados pelos invasores nazistas; um terceiro filho morreu ao tentar, à noite, sair do gueto a procura de alimento. Teria restado um filho. Mas, onde andaria ele? Não dou aqui os detalhes do depoimento de Yossel, mas retiro de seu escrito algumas passagens.

“Deus escondeu sua face. Deus retirou-se escondendo sua face e deixou os homens entregues a ferocidade dos seus instintos. Dizer que nós merecemos os golpes que nos são infligidos equivale a difamar a nós mesmos. As coisas sendo o que elas são, não espero milagre nem peço a Deus para que tenha piedade de mim; que ele se comporte para comigo com a mesma indiferença que ele demonstra para com milhões de outros filhos seus. No último instante, penso em facilitar as coisas ateando fogo no que restar de minhas vestes. Sim, pensei em vingança. Raramente conhecemos a verdadeira vingança. Mas quando ela acontecer, será reconfortante; ela me encherá de profunda satisfação, de uma tal alegria que vou nascer de novo. Nunca poderia imaginar que a morte de seres humanos pudesse me alegrar a ponto de me fazer rir como acontece nesse momento. A vingança é e será a última arma e satisfação dos oprimidos. “O Senhor é deus de vingança”. Agora compreendo o dito El Nekome Adonoj.
O gueto de Varsóvia morre combatendo. Ele luta, atira seus últimos cartuchos, queima e morre sem um grito. Se algum dia alguém encontrar esses escritos haverá de compreender os sentimentos de um judeu em sua resistência; fomos para a morte abandonados por Deus em quem acreditamos tão firmemente. O judeu é um testemunho, um militante. Estou feliz por pertencer ao povo mais infeliz da terra, sua Torah representa a mais elevada e bela das leis. Eu acredito no Deus de Israel mesmo que ele tenha feito tudo para que eu deixasse de acreditar nele; acredito em suas leis mesmo que eu não encontre justificativa em seus atos. Inclino a cabeça diante da sua grandeza, mas não me rebaixo diante dos golpes que me são infligidos. Eu morro calmamente, mas não pacificado, vencido, abatido, mas não escravo, amargurado, mas não decepcionado. Morro conservando minha crença, meus créditos; morro sem dívida, nem pedidos, nem súplicas, cheio de amor a Deus mas longe de mim dizer “amem” a tudo que ele faz”.

Yossel Rakover aquele que se dirigia Deus de maneira tão inapelável não estava em Varsóvia nos últimos dias que precederam a destruição do ghetto. Ele escreveu o que foi tido como um documento encontrado em uma garrafa em meio a pedras calcinadas após a destruição, ele escreveu o documento a que nos referimos ( ), em um hotel em Buenos Aires onde se encontrava naquele momento após deixar a Europa. Ele o escreveu para um jornal o Yiddische Zeitung e foi publicado no dia 25 de Setembro de 1946. Ele, sozinho, de sua própria iniciativa, disse-nos o que teria sido a resistência no gueto, ele nos falou da resistência como se ele a tivesse vivido. Ele a viveu, essa resistência, durante as horas, dias em que ele bateu a máquina enchendo as laudas que compõem o documento testemunho. Seu testemunho perde, portanto, em autenticidade, pensaram alguns. Trata-se de uma ficção. Ou então seu relato se alimenta de uma longa experiência proveniente não das últimas horas do gueto em Varsóvia, mas do combate milenar do povo judeu. Não me sentiria tranqüilo com essa última leitura que encontro na edição que tanto me serviu para adentrar a questão daquele que se dirigia a Deus, que resistia a Deus, se me permitem. Sem fazer apelo ao combate milenar, Yossel, o personagem criado por Kolitz, viu a luz naquela noite em Buenos Aires, num quarto mal iluminado, em um momento de dor sentida por Yossel, vivida por Kolitz. A resistência de Yossel é de Kolitz, não há dúvida. No entanto, ele não é uma vítima.

Job, se alguma coisa lhe restou.

Era uma vez, uma vítima. Ele se chamava Jó. Sobre ele se abateram todos os desastres.
Perdeu seus bens, sua casa, membros de sua família. Contudo, ele continuava firme.
Ele não é uma vítima: na análise do sofrimento há uma chave para a resistência.
Da incomensurabilidade do sofrimento pode nascer a paixão da criação, a experiência ética do sofrimento abre uma visão para o verdadeiro. Foi uma das raras vezes em que se ouviu a voz da vítima. Jó disse: “Eu reconheço que o Senhor tudo pode, nada é inacessível a tua sabedoria; mas, já não é preciso tanta demonstração. Aceitei plenamente seu poder. Eu vi o Senhor”. Que quer dizer ver o Senhor? Certamente estamos diante de depoimento de alguém que não pode ser considerado uma vítima.

A vítima não tem voz.

Primo Levi descreveu uma figura encontrada nos campos de concentração do nazismo conhecida pela denominação de “muçulmano”. Trata-se de prisioneiro em quem a humilhação, o horror e o medo tinham dado cabo de qualquer manifestação de consciência ou personalidade levando à apatia a mais absoluta. Excluído do contexto político e social ao qual ele havia pertencido, ele se tornara um representante de uma vida que não merece ser vivida, aliás destinado à morte em breve; antes mesmo, já não fazia parte do mundo ameaçador e precário do campo de extermínio (Auschwitz, Dachau, outros) que definitivamente o havia esquecido. Mudo e absolutamente sozinho, ele havia passado para outro mundo sem memória e sem compaixão. Nada há nele em comum com os outros prisioneiros; esvaziado de instintos, nele nada há de natural. A polícia do campo não sabendo como reagir mostrava-se por vezes impotente como se o mulçumano encarnasse uma forma inédita de resistência. Sabemos que Primo Levi dedicou a vida que lhe restava após a passagem pelo campo onde ele esteve preso a divulgar depoimentos e livros de denúncia daquela situação que ele havia conhecido nos campos. Sabemos que ao final dessa trajetória ele preferiu suicidar-se após declarar que somente ao mulçumano caberia dar testemunho, somente o mulçumano se jamais um dia ele se dispusesse a falar.

Vítimas na cidade onde vivemos e clínica do território.

Nossa leitura agora enfatiza a divisão povo / Povo (encontrada igualmente em G. Agamben) considerando-a mais original que a separação incluído / excluído, a divisão amigo / inimigo, a qual como sabemos, devemos a Schmitt, ideólogo cujas idéias serviram ao nazismo. Por força de expressão desse tipo foi possível ao nazismo manejar a situação administrando o que eles consideravam necessidades fundamentais.
Acresce que a vida nua e crua parece habitar o povo esse mesmo cuja existência é uma exceção já que em nada garantido; em nossa época só conhecemos a vida nua e crua graças à exceção. O povo portador da fratura fundamental é alguma coisa que não pode ser simplesmente incluída, absorvida.
O povo de que estou falando não é a abstrata figura habitual encontrada nos teóricos da política ou do direito; para dar um exemplo, penso no jovem em conflito com a lei, ou o jovem infrator, como preferirem chamar.
R. menor de idade, está internado em instituição de recuperação. Declara haver cometido 11 assassinatos. A  instituição só tem conhecimento de cinco. “É matar ou morrer” acrescenta anunciando o que lhe espera lá fora.  Entendo que, bem ou mal, R. sabe que é uma pessoa sacrificada; qualquer dia, qualquer hora, poderá encontrar a morte. Não haverá processo, nem tampouco recursos protelatórios perante tribunais de instância superior. Tudo se passa como se R. devesse ser sacrificado, sem panegírico, sem culpa por parte dos que se declaram dispostos a resgatar dívida social. Atenção: ele não é vítima.
Se o fosse declararia que sofreu muito e que os outros são culpados. R. é figura viva de antiga personagem no Direito Romano mencionado como “homo sacer”, assim ele poderá ser morto sem que sua eliminação física seja ocasião para inculpação, nem rituais. Ele disse que havia eliminado 11, deixando claro que o “homo sacer” não tem recuperação, nem será incluído, sendo ele a vida nua e crua vivida na periferia de nossas grandes cidades.
Como lidar com essa figura enigmática? Os operadores do antigo Direito Romano, ao incluírem essa vida humana, marcada pela forma da exclusão, na ordem jurídica. Por seu turno, a enigmática figura revelava a chave dos direitos, das liberdades formais e da soberania assim como dos códigos do poder político. Com isso, queriam significar os romanos o que havia por trás do processo semeado de conflitos através do qual os direitos e liberdades formais foram estabelecidos; o “homo sacer” poderá ser morto sem que sua eliminação física seja ocasião para inculpação, nem rituais.

O jovem infrator ou em conflito com lei.

Trabalhando com material proveniente de sessões de supervisão com colegas psicólogos, jovens psicanalistas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, em suma, pessoal técnico atendendo sócio-educandos em centro de internação para jovens em conflito com lei cumprindo medida sócio-educativas, descobrimos que o espaço urbano de nossas grandes cidades é a planta baixa do “espaço público” no Brasil. Há marcas de um dissenso entre os protagonistas, atestado nessa planta baixa.

O jovem infrator em conflito com a lei é alguém que chamei povo cuja vida nua e crua nos aponta para o futuro. Não há tom profético, nem ufanismo, evidentemente, nas minhas palavras. Mas, enquanto não decidirmos olhar para a questão trazida pelo jovem infrator em conflito com a lei, ele vai permanecer com armas na mão, como no filme “Cidade de Deus”, nos morros das periferias e favelas. Como disse em parágrafo acima, povo, ele traz in nux respostas confusas que anunciam as questões que enfrentaremos, já que sofre na carne o enfraquecimento do Estado, o desaparecimento do trabalho como meio de sobrevivência tradicional.
Quais seriam suas necessidades, tendo em vista a passagem de povo para Povo, para alguém que, em conflito com a lei, não a reconhece, nem a ela aderiu, já que situado no dissenso brasileiro, para alguém que vive em liberdade quando não está em “acautelamento provisório”?

Há, portanto, um dissenso. Nesse caso, vamos criar uma montagem para pensar o papel, a ação da polícia. A palavra chave será “mediador”. A Polícia, assim como a Ouvidoria serão os mediadores com vistas ao dissenso entre os protagonistas presentes na nossa cena atual. Exige-se com isso uma mudança radical? Acredito que sim.
Mas, vejam bem: a cena na praia do Leblon no Rio de Janeiro quando um grupo de turistas banhistas foi incomodado não me sai da cabeça. Como analisar aquela situação?
Em vez de simplesmente impor a ordem alterada, os agentes de segurança bem que podiam ser os mediadores entre os protagonistas.
Aliás, os gestos e movimentos que detectei nos passos dos dois policiais ao se afastarem do local me levam a pensar que eles se preparavam para iniciar uma mediação.
Faltaram as seqüências e o discurso da mediação. Os agentes foram embora, se afastaram.
Acredito que os homens e mulheres da polícia, assim como Sr. Ouvidor, terão descoberto de uma maneira espontânea o que tenho em mente.
Eles não tiveram o tempo e as condições para ficar horas a fio sentados, redigindo essas notas que trago, ou seja uma formalização do que já sabemos.
O estrago provocado nos ônibus em dias de jogo no Mineirão me faz pensar novamente em mediação a ser efetuada em meios de transportes. Reaprender o que é o serviço, e reaprender o que é o público.
A famosa frase “você sabe com quem está falando” não deveria ser ignorada pelo agente de segurança. Nesse novo registro, ela aponta para o fato de que o agente não se deu ao trabalho de perceber quais os protagonistas em cena, como cada um se comporta, quais os códigos e sistemas cognitivos adotados por cada protagonista.
Jamais uma fase como “aqui eu sou a lei” poderia ser pronunciada pelo agente de segurança.

Quais os primeiros capítulos dessa teorização?

Fronteira entre o humano e o desumano?
Sabemos que a angústia vem a ser uma tortura para o homem; ao mesmo tempo, ao refletirmos sobre o estatuto teórico e o valor atribuído na prática ao conceito de angústia, podemos pensar que ela é uma função do humano; sem ela o humano em questão não faria a experiência do real em toda sua dimensão, nem tampouco sua travessia. Se, de um lado, é difícil definir o que é propriamente humano, pois a humanidade se inventa a cada travessia do real, por outro lado, o desumano é imediatamente reconhecido.
Conclusão – os princípios éticos inspiradores de movimentos de “defesa do cidadão”, Direitos Humanos, Defesa do Consumidor, Comissão de Ética, certamente movimentos responsáveis, seriam necessariamente negativos, pois que seu fundamento é capaz de discernir o que é desumano, mas teríamos que nos confessar incapazes de definir o que seja o humano. Aliás, a língua desses comitês vem a ser frequentemente a língua de serviço, funcional, a que aludimos acima.
Se assim é, o mal acaba sendo a grande preocupação da Ética; o imperativo ético se exerceria cada vez que o mal despontasse no horizonte da experiência humana.
Pergunta – bastaria identificar o homem, de maneira essencialmente negativa, e contabilizarmos os males que lhe são infligidos? O problema é o seguinte: se o desumano é o argumento de peso inspirador da ética, se o humano é a negação do desumano, a loucura, o desespero, a exclusão, (e outros aspectos da experiência humana) estariam restritos a uma região para a qual o humano admitiria o resgate, a recuperação, a reeducação, mas recusa-se a reconhecer-se aí como um igual. Em outras palavras, para formular uma nova questão que nos fará progredir em nossa reflexão, que relação vamos admitir entre o humano e a experiência do desumano?
Que limite fixar no tratamento dessa não-humanidade?

Vamos propor um outro esquema onde se trabalham questões éticas a partir de uma definição positiva do homem.
Essa definição vai incluir o não-humano; para tanto, temos que romper com a concepção cada vez mais aceita na atualidade e que consiste em ver na maioria das vezes o homem como uma vítima; os direitos desse homem-vítima serão conseqüentemente, os direitos de uma vítima, e o tratamento a ele reservado será um tratamento reservado a uma vítima. O estado de vítima, de desamparado, de infeliz, de humilhado, reduz o homem a sua condição animal. Certamente que a humanidade é uma espécie animal, mortal e cruel.
Mas nem a mortalidade, nem a crueldade definem a singularidade humana.
Lembremos Hannah Arendt enviada a Jerusalém para assistir ao julgamento do carrasco nazista Eichman:
– “o mal é banal”, disse Arendt após longas jornadas passadas no tribunal.
O carrasco é uma abjeção animal, continua Arendt, mas, a vítima não vale mais que o carrasco. Se o carrasco trata a vítima como animal, é porque a vítima chegou a ponto de se tornar um animal. Alguns que passaram pela prova dão testemunho do esforço para não se deixarem assemelhar a um animal; os relatos dos campos de extermínio sob o regime nazista (Auschwitz e outros campos da morte) são nesse sentido contundentes.
Assim, naquele que resiste, a resistência não coincide com a identidade de vítima (Yossef, Jó, o jovem infrator).
Eis o homem, ele se obstina em permanecer o que ele é! Isto é, outra coisa que não uma vítima, outra coisa que não um ser para a morte. Outra coisa que um mortal; um imortal, portanto!
Há, por conseguinte, uma identidade do homem como imortal, a partir do instante em que ele se afirma contra o querer-ser-um-animal, estado a que as circunstâncias (carência, pobreza total) o expõem. A subjetivação é imortal, e faz o homem! Fora disso existe uma espécie biológica sem singularidade.
Imperativamente temos que contar com uma subjetivação sempre possível. A Ética deve avaliar o que pode um sujeito e o que desse poder ele é capaz de querer. Necessário se faz não ceder, em nome da impotência da vontade, sobre a possibilidade do impossível.
Evitar a todo custo a idéia do pobre homem, do incurável a ser mantido sob proteção do sistema. Lidar com alguém inapto à subjetivação seria sustentar até o último instante, em condições desfavoráveis, a possibilidade de que algo aconteça, ínfimo movimento faça surgir o sujeito, raro, pontual, sujeito enfim marcado pela imortalidade, capaz de denunciar qualquer tentativa de referência única a um Senhor tirânico, e unificador.

Construção da cidadania. Cidadão-Sujeito? Sujeito-Cidadão? Tensão entre os dois.
As noções “sujeito”, “cidadão”, “comunidade”, organizam habitualmente um espaço político que vamos chamar anexado. Tentaremos pensar o laço social sem necessariamente passá-lo pelo espaço anexado.
O sujeito não é o cidadão. Um e outro representam duas posturas, emergência ou constituição de um sentido. O cidadão é, de início, qualquer um num grupo, num bairro, numa seção eleitoral, alguém munido da carteira de identidade.
O sujeito é singularidade que se afirma por ocasião de um acontecimento a que ele passa a dever fidelidade. Não pode ser incomodado por não portar carteira de identidade.
O em-comum da cidade teria que ser um espaço onde os cidadãos se cruzam, sem outro critério de unificação a não ser a exterioridade de suas relações. De certa maneira, a cidadania seria mundial. O cidadão terá dimensão internacional, cosmopolita.
O sujeito político ou a política segundo o Sujeito consiste na apropriação da exterioridade constitutiva da cidade. O cidadão se faz sujeito no momento exato em que há apresentação de um acontecimento, e não representação. A soberania do sujeito surge, e não se contenta em residir no contrato ou no aspecto jurídico-formal.
Por sua vez, o sujeito se faz cidadão quando o espaço cívico desdobra e expande as particularidades subjetivas. A idéia de “república” representa esse ponto de reciprocidade. Soberania e comunidade são os dois termos que tradicionalmente enfeixam as questões que tentamos pontuar. Fraternidade igualmente seria um termo que pretende resolver as mesmas questões.
Poderíamos nos contentar com o cidadão, abandonando a questão do sujeito, desistindo de fazer do cidadão um sujeito?
Um programa de defesa do cidadão-consumidor-usuário-de-serviços parece estar sendo bem aceito pela democracia de mercado, pelo capitalismo de investimento em massa, controle de qualidade, que adotasse a “qualidade total” em nossos dias propugnada e já com numerosos adeptos.

Vamos admitir que há tensão entre cidadão e sujeito. No fundo, seria essa tensão que daria um novo laço, a ser pensado longe da dependência do espaço anexado a que aludimos no início do presente parágrafo. “Laço social” proveniente da própria tensão, “laço social” marcado pela soberania do sujeito e pelo dissenso.