(O II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise realizou-se no Rio de Janeiro, entre 30 de outubro e 2 de novembro de 2003).
Convocamos os Encontros dos II Estados Gerais da Psicanálise, que estamos encerrando agora, sob uma dupla condição. Por um lado, e de modo muito claro, sentimo-nos continuando o I Encontro, realizado em Paris em 2.000. Ou seja, seguimos uma convocação iniciada ainda em 1997 e que foi posteriormente elaborada, durante um tempo “necessário”, por um grupo de pessoas, colegas brasileiros que estiveram ativos também no Encontro anterior. Dessa perspectiva, procuramos reunir psicanalistas de linhas teóricas e clínicas as mais distintas, sob a condição de nos colocarmos todos no regime teórico produtivo e considerando questões importantes da e para a Psicanálise. Em Paris, tal proposta foi bastante bem sucedida. Pois colegas de linhas e direções as mais distintas na Psicanálise, puderam se encontrar e produzir diferencialmente.
Desta perspectiva, fomos mais ou menos bem sucedidos. O pequeno número de psicanalistas estrangeiros participantes, as dificuldades em conseguir a presença de colegas com expressividade suficiente para que pudéssemos aumentar a importância do Encontro, nos ensinou que o modelo parisiense valeu especialmente para Paris. Nem os principais organizadores e expoentes do evento parisiense vieram para o Encontro do Rio de Janeiro. Continuidade!!
Chamar um Encontro de Estados Gerais não nos tornou tributários de evento meramente francês. Se existe alguma marca histórica em 1785 -17 de junho foi o dia escolhido pela direção francesa dos I Estados Gerais para o início das atividades- data da convocação de uma Assembléia reunindo o que se poderia chamar de “forças burguesas” na França, que depois iriam estar no comando do que se conhece hoje como Revolução Francesa, é na Grécia Antiga que emergiram a idéia e o chamado de juntar os “melhores” da cidade, para examinar suas crises em comum.
Reunidos na praça principal, o ágora, tais cidadãos, portadores de beleza e nobreza de nascimento, de kalokagathia, discutiam suas questões comuns e pertinentes. Mais ainda, era a participação de tais encontros no ágora que os tornava zoa politiká, animais políticos. Pois eram excluídos dali os não cidadãos e os escravos, bem como os estrangeiros (metecos) em geral.
Mas é assim, desde tais reuniões, que concebemos a idéia da emergência da democracia como evento. E os États Généraux da França pré-revolucionária também seguiram tal modo e estilo de reunião. E foram precedidos de outros Estados Gerais na própria França, desde o século XIII.
Dado um período de crise, chamam-se os próximos e mais interessados, os representativos, e se os consultam para decisões comuns. A diferença com a Grécia antiga, importante para nós, é de que se prescinde do nascimento, da relação e filiação familiares. Trata-se de “nascer” conjuntamente, do que sabemos que é uma emergência e não uma origem.
Mas trata-se de uma situação que re-presenta (vorstellt, de Vorstellung, ensinava Freud) a maioria e não de uma a-presentação geral e genérica (Darstellung, diria o mesmo). Não se trata de uma horda, diria o mestre vienense, mas de uma massa, com bordas discursivas e comportamentais delimitadas. Que, de modo afirmativo, experimenta e experimentou conter e contar com as pulsões, a horda dispersa, mas nunca dispensaria sua organização.
Pois bem, é neste sentido que continuamos e descontinuamos os I Estados Gerais. Continuamos, pois fomos nomeados ou indicados desde a Assembléia anterior. E descontinuamos, pois trocamos nosso nome, seguimos uma direção específica. Não seguimos alguma Dogmática que nos indicasse um único caminho possível, mas convocamos seus primeiros enunciadores e os nossos colegas (especialmente os psicanalistas brasileiros e sul-americanos) a nos ajudar na tarefa de produzir a multiplicidade psicanalítica provisória.
Diversamente de uma idéia idealizada de poder inteiramente descentrado – pois todo poder é relação de poder, tem sempre alguma espécie de marca diferencial, forças e interesses se distinguem permanentemente – performamo-nos como poder instituinte. Rompemos com uma pretensa homogeneidade de um espírito psicanalítico idealizado e nos instituímos como centro provisório mas afirmativo de um interesse comum. Desde tal perspectiva convidamos os psicanalistas e estudiosos afins: o convite teve uma indicação provisória de hospitalidade e amizade. Partimos de uma perlaboração anterior, mas marcamos e performamos nossa especificidade. Não nos pejamos de assumir o poder temporário, ainda mais na medida em que os acontecimentos nos indicaram que era necessária tal vetorização.
A outra faceta, da descontinuidade por relação aos I Estados Gerais, também nos marca sob vários aspectos. Na reunião final de Paris, resolveu-se que o Brasil seria a sede apropriada para esse II Encontro. Brasil e Rio de Janeiro. Não apenas pelo grande número de participantes brasileiros, que até obrigou a direção a adotar o português como língua oficial, mas pela mudança de eixo da importância psicanalítica. Ou seja, ume espécie de centro que foi dominado pelos europeus e posteriormente pelos norte-americanos, tem hoje uma dominância latino-americana, onde alguns psicanalistas franceses até instalaram um nicho de mercado discursivo e clínico. Enquanto a atividade psicanalítica está em declínio na Europa (que dirá nos Estados Unidos!), entre nós se escutam a potência do saber freudiano e a busca de pessoas “em sofrimento” por nossa ajuda.
Sofrimento, na época de dominância estruturalista?
No seu importante escrito sobre Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud pensou: “Na vida anímica do indivíduo (Einzelnen, o singular) o outro vem regularmente como modelo, como objeto, como ajudador (Helfer, o que ajuda) e opositor (Gegner)” (Freud, 1921c, GW, XIII, p. 73). Portanto, além da tarefa de tornar todos os humanos ou assujeitados psicanalistas, crucial e até mesmo única para alguns colegas, sabemos que, desde o que entendemos e fazemos como Psicanálise, é preciso ajudar aos que nos procuram a sofrer menos, a possibilitar que seus psiquismos se tornem mais expansivos.
Por isto também, sem recusá-los, diferenciamo-nos dos propósitos dos organizadores dos Estados Gerais anteriores. Ao invés de simplesmente examinar as relações com outros saberes, aceitamos pensar o regime político específico da Psicanálise, inclusive considerando especialmente a questão do que é curar na atualidade. Perguntamo-nos acerca do que é ser psicanalista hoje, no mundo tão complexificado e que, apesar disto, se organiza sob a égide de um processo de unificação geral, o que se denomina de “globalização”. E onde as questões do mal-estar excessivo têm um peso extraordinário, pedindo permanente consideração.
Nosso temário foi bastante marcado pelas questões da relação da Psicanálise com o Estado e a Política em geral, mas também acerca do questionamento das políticas (ou de “o político”) da Psicanálise, daquilo que constitui o movimento da Psicanálise na sua atualidade. Por exemplo, interessamo-nos especialmente sobre a regulamentação da atividade psicanalítica, no Brasil de hoje reclamada por grupos de pastores evangélicos, que propugnam e (im)produzem uma psicanálise estéril, sem inconsciente e sem sexualidade, constituída apenas de sugestão e transferência, com o fito de se apossar do significante e mercado freudianos. Proposta para uma “realização” em cursos de fins de semana, sem nenhum rigor teórico ou clínico, tal psicanálise evangelizante, fundada em mecanismos politicamente poderosos e psicanaliticamente vazios, tornou-se um alvo direto e fácil de ser combatido teoricamente.
Mas, basta-nos recusar a institucionalização da atividade psicanalítica tal como eles – que estão bem próximos do poder de Estado atual – a propõem ou também temos que cuidar de positivar um estatuto que “garantisse” as chamadas formação e transmissão psicanalíticas?
Perguntamo-nos sobre os novos e diferenciados modos de exercício da psicanálise, na medida em que a chamada clínica liberal, o atendimento a dois, se encontra em declínio em todas as atividades ditas médicas e psicológicas, substituída ou deslocada pelos atendimento coletivos, de convênios ou dos planos de saúde. Se assim fosse – e é – interessamo-nos em questionar não apenas acerca de como atende um psicanalista hoje, mas se os modos de subjetivação, os processos inconscientes permanecem “os mesmos”, diante de tais e tantas mudanças. Desde logo, postulo que não.
Também pensamos acerca das modificações da geografia do atendimento, o chamado setting analítico. Não apenas os psicanalistas tiveram suas relação e transferência com os analisandos modificadas, mas cambiaram os locais e modos de atendimento. Chamados à clínica nas creches, asilos, orfanatos e hospitais, ONGs e locais de trabalho, juizados e juntas de conciliação, diante de organizações estatais, nas falas aos meios massivos de comunicação e nas Universidades, como ficam a clínica e o pensamento psicanalíticos diante da formatação de novos settings? Quem “si” autoriza a ser psicanalista diante de uma demanda que é produzida por novos e importantes estares nas relações sociais, institucionais e estatais?
Estamos, portanto, diante de uma outra postura da Psicanálise e dos psicanalistas por relação ao Estado e suas instituições; ou das ONGs, ditas não estatais. Certamente nossas questões atuais são bem distintas das da psicanálise na segunda década do século XX, quando se forjou o primeiro Instituto de Formação psicanalítica. Mas, o que “garantiria” a transmissão psicanalítica, além de um suposto “desejo do psicanalista”? Falar em nome de um líder importante ou de uma teorização única e unitária?
Fomos aprendendo ou constatando que os chamados “Direitos do Homem” são um capítulo de difícil ou impossível exercício, para os psicanalistas e para todos cidadãos. Ainda assim, precisamos considerá-los adequadamente, dar-lhes um estatuto psicanalítico. Pois a cidadania se dispõe desde inúmeros lugares e desde seu estatuto se questiona, inclusive, quem pode ser psicanalista.
São questões bem diferenciadas, já que o imaginário social nos clama para lugares antes impensados, tem amplitude inesperada diante da produção cada vez mais extensa e intensa de novos e profundos mecanismos de produção social. Por exemplo, na medida em que os produtos laboratoriais, assim elaborados, impuseram a idéia de uma cura sintomática rápida e eficaz. Este é o caso do Viagra (citrato de sildenafil) e do Prozac (fluoxetina), que se tornaram sinônimos da resolução imediata e direta de problemas de função erétil e depressão. Ou seja, as relações afetivas e subjetivas se substituíram pela imposição imaginária de produtos psicofármacos ou farmacológicos objetivantes, que seriam a chave única (ou, na melhor das hipóteses, a clave mais importante) para o apagamento dos diversos mal-estares da contemporaneidade. A depressão se resolveria através da ingestão de fluoxetina, que garantiria aos indivíduos uma norma equilibrada e adequada do sentir. Dá-se o mesmo com o citrato de sildenafil que, sob vários nomes comerciais, é usado por jovens de 17/18 anos, que acreditam só ter ereção (e só têm ereção, verdadeiramente) com seu uso.
Claro, existe uma idéia bem ampla em construção e que “nos” constitui, que corresponde ao fluxo unitário da Globalização; e este dito fluxo se faz de acordo com o que se denomina Pensamento Único. Não é apenas uma metáfora para dizer o “verdadeiro” movimento das forças produtivas contemporâneas, através da circulação de um regime financeiro unitário, como, especialmente, é um Pensamento que sobrepairaria a todos os saberes que examinam e produzem as diferenças de modo profundo. Assim se dá com a chamada Genética bio-molecular contemporânea, que postula (e “demonstra”) que todos os comportamentos e modos de elaboração humanos (que dirá “animais”!) se determinariam unicamente desde a combinação de genes primários. Corpos se formam desde uma mescla única de genes, e incorporais só existiriam se determinados diretamente por tais corporeidades. Ou seja, nega-se a existência do que os psicanalistas chamamos de “estado de alma” (Seelenleben), de vez que o que sabemos e sentimos como vida anímica se produziria, segundo a versão do Pensamento Único, desde combinações e recombinações de DNA. Portanto, inexistiria também o permanente assassinato da alma (Seelenmord), essencial para pensar as emergências possíveis de sofrimento psíquico, que para tais ciências de ponta seria unicamente um mero produto de más combinações genéticas.
Para o que poderia interessar mais diretamente aos psicanalistas, afirma-se que as chamadas “doenças mentais” seriam produtos da “mente biológica”, disfunções corporais que poderiam ser corrigidas através da reconstrução de seqüências genômicas adequadas. Haveria unicamente uma via normal de produção genética e os desvios seriam negatividades que poderiam se retificar, neurologicamente ou geneticamente (antes da concepção), através de intervenções genéticas, cirúrgicas ou medicamentosas. Idéias que nos conduzem a uma concepção política e teórica de eugenia, que se manifesta cada vez mais de modo mais explícito e enraizado. O que o Pensamento Único separa radicalmente, entre “os melhores” e os “outros”, a Genética anuncia sua verdade no modo legiferante do nascimento. A Eugenia está novamente em ascensão e os psicanalistas temos que elaborar tais questões.
Ora, na medida do sucesso da produção e reprodução de novos órgãos e corpos diferentes, a Genética e as Neurociências ganham a dominância da linguagem e da lógica dos meios de comunicação e conquistam o imaginário social. A estética e a imediaticidade de “resultados” colonizaram o imaginário. Imaginário que se conquista desde o que se faz psiquicamente mas, especialmente, desde o que se pode tecnologicamente.
Como fica o pensamento psicanalítico, diante de tais posições?
Sabemos que uma das respostas para suprir os diferentes regimes de mal-estares contemporâneos foi a construção de discursos prometedores do bem-estar, individuais e coletivos. Não apenas as técnicas de auto-ajuda, mas especialmente o que eu chamo de “reencantamento do mundo”, em contraposição ao chamado mundo tecnológico, com a dominância dos ditos e pensamentos religiosos, que se colocam como saídas absolutas para o sofrimento. E, observe-se bem, oferecendo soluções que comprometem e modificam profundamente os aglomerados coletivos, numa época em que as questões e indagações sociais conjuntas sofreram grandes perdas, provavelmente irreparáveis no modo histórico, com a aniquilação e destruição das grandes idéias, experiências e ideais amplos, que permitiram encontros coletivos mais amplos e dignos, mais generosos (de aumento e inclusão de gêneros).
Assim, os psicanalistas temos que lidar com eventos bem diferentes entre si, desde a colonização do imaginário social pela linguagem das tecnologias até o conservadorismo dos mecanismos psicológicos e sociológicos de auto-ajuda, que postulam apenas os regimes de construção do Bem humano. Por outro, as religiões emergentes que oferecem vias de comportamento unitários adequados para as massas que clamam pelo conformismo e pela satisfação imediata.
Tudo isto se produz simultaneamente à emergência de novas experiências efetivas, que dão às organizações sexuais e familiares um estatuto bem diverso daquele a que nos habituou a Psicanálise “edípica”. Por exemplo, outras formas de conjugalidade, a dissimetria acentuada entre gênero e sexo, as diferentes e múltiplas formas de filiação (incluindo a filiação geneticamente programada), o acasalamento entre homossexuais e as novas modalidades de adoção, a assimilação corriqueira da violência e a ausência de regras mais estáveis nas novas relações de parentesco etc.
Por fim, nesta época de globalização, chamamos alguns pensadores que a analisam de modo mais radical, para que pudessem nos ajudar a “ver o mundo”. Foi em torno disto que marcamos a descontinuidade com os I Estados Gerais, propondo-nos a um cotejamento e mesmo ao enfrentamento com pensares que recusam o nosso. Para tal, convidamos três pensadores que sabem confrontar o que denominamos de “mundo atual’ com questões que escapam -por vezes de modo radical, pela raiz- das teorias psicanalíticas. Para respeitar o que propusemos, aprendemos que existe uma antinomia entre o pensar desde outros saberes e experiências e o que desejamos de melhor para a psicanálise e “o mundo”; soubemos que, mesmo diante da impossibilidade de modificar o estado de coisas, ainda temos que insistir nas mudanças, sempre: tal é o destino (das Geschick) da Psicanálise.
Por respeitar a multiplicidade na Convocação, o organizadores do II Encontro dos EGs nos defrontamos com obstáculos inesperados. Por um lado, uma espécie de tentativa de nos apadrinhar e paternalizar, da parte de alguns psicanalistas franceses. Investindo-se como proprietários do significante “estados gerais”, acreditaram que se tratava de um acontecimento único, que só poderia ser expresso galicamente ou através do modelo unitário da história francesa, que os organizadores brasileiros deveríamos dogmaticamente repetir ou reproduzir. Escreveram-no no nosso próprio site, aproveitando-se de alguma ingenuidade ou megalomania de algum psicanalista brasileiro, que postulava uma “psicanálise brasileira”.
Contudo, nunca se tratou, para a atual direção do II Encontro, de produzir uma psicanálise brasileira, mas uma psicanálise à brasileira. Digo-o em meu nome (não) próprio, que sabemos não haver releitura de Freud, menos ainda com sotaques. Freud não criou uma disciplina ou saber unitário. Ele, Freud, tem que ser repensado permanentemente, pois enunciou e perlaborou o intempestivo, sem desconsiderar sua imersão e produção históricas, políticas, culturais. A escolha brasileira de temas e organização não cria uma psicanálise brasileira; talvez estabeleça novas conjunções e disjunções, num modo psicanalítico brasileiro. E nossos EGs e suas dificuldades são a prova viva do que afirmo.
Já sabemos que o saber freudiano é transdiscursivo (Foucault), distinto de um saber originário único ou de marcas e delineamentos que pudessem ser delimitados historicamente e culturalmente. Por isto, a Psicanálise não admite superações, no modo como se pensa que a física de Einstein teria superado e substituído a física newtoniana.
Tal paradoxo se produz também na clínica psicanalítica. Quando os “tipos psicopatológicos” produzidos na obra freudiana se transformam, o instrumental psicanalítico não envelhece nem se elimina, dependendo de sintomas produzidos na época de sua enunciação. Ao contrário, cada vez que se acrescenta um enunciado novo, mudam também as condições de expressividade e enunciação do saber psicanalítico, que é transdiscursivo. Tal modo de “fazer psicanálise” ainda não se elaborou o bastante, mas é assim que o pensamos e foi deste ou neste modo que produzimos a psicanálise nesse Encontro que se encerra.
Portanto, e isso marcou profundamente nossa descontinuidade, não há uma releitura unitária da Psicanálise, que se dedicasse a ter “UM” Freud como alvo (Ziel) unitário e verdadeiro, um Saber originário que lesse a psicanálise desde uma Verdade implacavelmente perseguida. Em seguida, e para sorte nossa, não só não temos como não reconhecemos entre nós nenhum pensador “maior”, que imaginasse criar alguma psicanálise nova, inteiramente distinta da freudiana (o que nunca nos impedirá de distinguir diferentes regimes de criatividade psicanalítica).
Também, pudemos acolher também os estrangeiros (metecos) das mais diversas ordens. Convidamos conferencistas que são estranhos ao pensar e fazer analíticos, de modos inesperados mas importantes. Nunca pretendemos uma síntese dialética com seus pensamentos, mas dados seus percursos e elaborações, nos questionamos sobre a radicalidade de suas posições. Ouvimos o que nem sempre esperamos ou desejamos, mas tal confronto apontou e continua apontando para outra vertente do teorizar psicanalítico, o que constitui as Spaltungen contemporâneas. Ouvir, acolher e contestar três pensadores que não se sustentam na transdisciplinaridade psicanalítica foi, desculpem-me afirmar, uma ousadia criativa.
Chamamos também os psicanalistas estrangeiros, de lugares e língua. Demo-lhes lugares e posições honrosos, para que expusessem pensamentos psicanalíticos diferenciados. Nem sempre fomos felizes com tanta experiência de divisão de poder da fala. Como não nos filiamos ou expressamos dogmaticamente, muitos tentaram falar em nome dos Estados Gerais. Vimos colegas psicanalistas se manifestarem, através dos meios de comunicação brasileiros, contra a organização dos atuais EGs, pois nós, os organizadores, usaríamos o Encontro para fundar um novo grupo de psicanálise ou uma importante sociedade psicanalítica, ancorando-nos no prestígio dos EGs. Primeiro, recusaram qualquer organização, partindo de uma idéia energética e simplesmente caótica de pulsão. Cada participante deveria se expressar através de uma espécie de fala “em nome próprio”, um delírio persecutório do qual não podemos e não queremos participar. O que é “em nome próprio” quando se fala psicanaliticamente? Uma busca de significantes unitários? Para, segundo, concluir que a organização tiraria proveito de sua posição de poder e agenciamento, afim de forjar um super-grupo dos EGs. De nosso Encontro sairia uma nova “sociedade” psicanalítica, que promoveria alguma continuidade com nossa Assembléia atual. Esta seria a mais-valia, o lucro da Direção deste nosso Encontro, o que demonstraria seu “oportunismo”.
Daí se postular que todos os participantes deveriam se expressar e que nossa Direção era incompetente para conduzir a organização. Uma espécie de Santíssima Trindade paulistana escreveu no nosso “próprio” site que o Conselho do II Encontro deveria renunciar, depois de uma severa autocrítica, se auto-destruir por incompetência ou afirmação equivocada; ora, que ingenuidade ou excessiva opressão. Que placidez ou crença numa pseudo renúncia cristã pensar que abriríamos mão de saber e poder, de organizar segundo modos que achássemos mais adequados!
Pois somos freudianos, e postulamos que as melhores organizações e reuniões (Versammlungen) se acompanham de disjunções, também as mais produtivas (o que Freud ensinou como compulsão à repetição). Se somos o poder afirmativo deste atual momento, para o desagrado de tais postulações, reitero que o “nosso” Encontro termina agora, depois das próximas intervenções dos participantes da Assembléia; e que nenhum novo grupo se fará desde essa nossa reunião: eis o que decidimos, performativamente, e essa é a fronteira permitida ao atual Encontro. Para nos mantermos afirmativamente como Direção parcial e provisória, para surpresa dos que só (re)conhecem e postulam o “Um” (o próprio, ídion, dos idiotas) e a identidade e, diferentemente de Paris, não sugeriremos nenhuma cidade ou país como sede dos próximos Estados Gerais. Pois encontros e desencontros psicanalíticos os há permanentemente, desde sua produção freudiana, tal como a enunciei e dela divergi produtivamente.
Ou seja, procuramos realizar, na organização dos EGs do Rio de Janeiro, o que os modos de produção subjetivos e as formas vivas organizadas fazem de melhor: nos apossamos temporariamente do evento e o produzimos. Mas não aceitamos morrer antes de terminar nossa tarefa. Certamente que outros EGs virão, mas suas iniciativas se farão longe desta Assembléia.
Por isto que afirmei e simultaneamente, diferenciamo-nos de certa forma estrutural de pensar e afirmar em “nome próprio”. O nomear-se psicanalista está inscrito naquilo que postulei anteriormente, ou seja, ser psicanalista significa percorrer a trajetória freudiana sem deixar de examinar e produzir suas afirmações e dificuldades em outros modos. Para nós, ser psicanalista implica em produzir um regime onde -com todas as dificuldades- as disjunções também são da ordem da criação, até o limite em que outros radicalmente estranhos experimentem destruí-las. Nós nos dissolvemos mas não aceitamos nossa destruição, entenda-se.
Contudo, pois nos postulamos como um grupo performativo, que afirmou simultaneamente continuidade e descontinuidade psicanalíticas, a oposição que encontramos no percurso de nossa realização se afirmou, por muitas vezes, delirantemente. Dizer em entrevistas aos jornais que deveríamos nos descentrar inteiramente, dar a palavra a todos (os seiscentos presentes??!!; e suas cisões, também? e aqueles que não puderam pagar? e os outros que não quiseram estar conosco? isto perfaria cerca de 4.897.000.049 almas…), para que cada qual manifestasse suas “importantes” posições! Bakunin que me perdoe, mas a excessiva redistribuição dos falares é demasiado destrutiva quando não se considera a temporalidade. Mestre Freud (sim, gostamos de mestres) ensinou que o delírio também é criativo. Até o limite em que nos pretenda destruir. Qual seria nossa fronteira?
Se a forma de apresentação destes nossos Estados Gerais foi assim, com uma mesa e uma única Assembléia deliberativa, é porque é a melhor para uma discussão ampla e genérica. E também porque não poderíamos fazer reuniões com cinco salas simultâneas, que nos custariam financeiramente o que nenhuma Direção saberia arcar. A tradução simultânea em quatro línguas consumiria toda nossa verba, por menos que “o” inconsciente resistisse.
Acusaram-nos também de realizar os Estados Gerais para produzir uma “Escola de Altos Estudos da Psicanálise”. ALTOS? Ora, ora, logo os que pensamos que o mais importante da Psicanálise está nas partes baixas!! Mas deixo as baixarias com os que experimentaram nos aniquilar.
Tivemos uma amostra viva e bem viva de como se mesclam hospitalidade e hostilidade quando se misturam pensamentos diferenciados em torno de uma atividade cujo Mestre é permanentemente refutado. Acredito que sustentamos razoavelmente tal posição, mas não somos nossos próprios avaliadores nem juizes.
Portanto, o que aprendemos e queremos retransmitir, são excessivas as dificuldades de se pretender uma democratização das pulsões. Produzimos um lar breve e parcial, que não se quer contínuo e nem será prolongado. Nosso Encontro não dependeu do poder da vontade, nem da Direção do Encontro, nem daqueles que pensaram diferentemente (mas que nos ajudaram a produzir um bom encontro momentâneo), menos ainda das dispersões de quem apenas manifestou o querer destruir. Resultamos da vontade de poder, entendamo-nos parcialmente.
Portanto, persigamos a construção da Psicanálise, até os próximos (des) Encontros.