Jorge Forbes
A cidade é temida. Em todos os consulados se preparam avisos a seus cidadãos – de visita ou de residência – com normas de defesa: não ostente, leve pouco dinheiro, não ande sozinho, feche as janelas, não desperte curiosidade. Ponham grades, ponham grades, ponham grades. Assim alertam os especialistas em proteção pessoal, ao se referirem a certas cidades brasileiras, no caso, ao Rio de Janeiro.
A diplomacia do Vaticano deve ser muito ruim, ou o seu chefe de estado é absolutamente insubordinado. Em sua primeira viagem apostólica, o novo Papa – aquele que se diz do fim do mundo – viveu uma situação calamitosa, aos olhos escuros dos especialistas formados na escola da paranoia defensiva. Ao chegar ao aeroporto do Galeão, o apóstolo de Cristo deu preferência ao mais banal dos carros, aquele tipo casca de ovo, para fazer o seu primeiro percurso até a catedral metropolitana. Foi aí que o impensável, melhor, não tão impensável assim, o que era temido aconteceu. Para pasmo geral, ele (seu motorista, é claro) se perdeu: tomou a avenida errada e se viu imobilizado em um gigantesco engarrafamento. Curiosamente, em vez de ir para o seu palco, livre e desimpedido, caiu em meio à sua própria plateia congestionada. Pânico, suspense, silêncio. O que ele vai fazer? Será que vão cercar o carro com um batalhão de choque? Será que um agente vai se jogar sobre o seu corpo justificando o título de “guarda corpo”? Não, nada disso ocorreu. Sua Santidade, para pasmo geral, de janela aberta estava, de janela aberta continuou. E sua atitude em si avisava que não compartilharia de nenhum show bopesco.
Deu-se, diriam alguns, um milagre.
O que ocorreu, a meu ver, foi uma mudança de perspectiva, ou seja, de paradigma. Em vez de se confrontar ao possível opositor, em vez de dar consistência a ele, se apresentando mais poderoso, por exemplo, dando uma de Sumo Pontífice – como falou Caetano, do Rei – Francisco faz um gesto que não atemoriza o agressor em potencial, mas o ridiculariza. Esse é o ponto: vencer pela vergonha, não pelo medo.
Mutatis mutandis, comparemos esse exemplo com a resolução da altíssima taxa de criminalidade da cidade de Nova Iorque, no fim nos anos 70. Quando já se tinham esgotados todas as tentativas de dar maior poder repressivo à polícia, também se deu uma mudança paradigmática, muito bem comentada pelo jornalista Malcom Gladwell. Não se tratava mais de fazer a grande e bombástica captura do representante do star system criminoso, mas de despender tempo, paciência, dinheiro, cuidado, homens, em supostas ações menores como a de limpar as pichações dos vagões de metrô, todos os dias, exaurindo os pichadores. A mudança de contexto tem um poder, o Poder do Contexto, que inibe o crime. Em seguida à limpeza dos trens, vieram outras ações de mesma inspiração, todas aparentemente frugais. Essa política foi descrita como “teoria das janelas quebradas”, por James Q. Wilson, George Kelling e Catherine Coles. Foi difícil convencer àqueles duros policiais que isso daria certo, ou mesmo, que só isso daria certo. Se me habituo com uma janela quebrada, também me habituo a duas, a três, e me abro ao menosprezo da cidadania.
Alguém poderia perguntar: – E lá importam janelas quebradas e pichações no metrô? Não seria cuidar só do superficial? Ficou demonstrado que não. A quem assim pergunta também poderíamos lembrar que um tumor canceroso incomoda muito, mas não mais, por vezes, que uma farpa debaixo da sua unha. Qual lhe demanda maior urgência? Acrescente-se o aspecto fundamental que o Poder do Contexto se espraia em epidemia. Se uma, e mais outra, e ainda mais outra pessoa envergonha a ação criminal, a partir de pequenas ações, isso se transforma em um vírus social, em uma ação que pode curar uma cidade como se passou em Nova Iorque.
O mundo pós-moderno responde a esse novo paradigma. Não às janelas quebradas, sim às janelas abertas.
(Artigo publicado na revista IstoÉ – GENTE, abril de 2014).