O Conselho Federal de Psicologia pretende autorizar os seus membros a dar notícia à polícia dos casos de violência contra crianças de que tenham tido conhecimento no exercício profissional, como revelação em consulta feita pela vítima ou pelo autor do fato.
Espanta, sem dúvida, ter se aventado essa hipótese, pois fere o alicerce sobre o qual se assenta a relação com o paciente, ou seja, a confiança e a lealdade, transformando-se o psicólogo em testemunha, e a livre informação do cliente, que nele confia, em confissão de um crime, registrada na polícia com a autoridade e fidedignidade de um testemunho qualificado.
Sem dúvida, um dos mais graves problemas sociais de nosso país está na violência doméstica, maus tratos e lesões corporais, bem como de violência sexual, estupro e atentados violentos ao pudor, realizados dentro de casa. São vítimas não só as crianças, mas também a mulher e os velhos e até os moços. Grande parte dessas violências, maus tratos e lesões, são produzidas pelas próprias mães sobre um dos filhos.
O conflito gera conseqüências graves de ordem psicológica e desorganiza ainda mais o lar já em decomposição, lares esses, muitas vezes, conduzidos pela mãe que corajosa e solitariamente enfrenta os deveres de sustento e promoção da existência. Essa violência, contudo, não se limita à classe mais desfavorecida, ocorrendo reiteradamente em casas de famílias economicamente bem situadas.
Se o problema é grave em si, acentua-se e torna-se irreversível se institucionalizado em um Boletim de Ocorrência e em um processo criminal, o filho como vítima, depondo contra a mãe ou o pai, que estarão na ponta da mesa na condição de réus. E o psicólogo, o desencadeador não autorizado do procedimento criminal, assistindo de camarote, como testemunha presencial da confissão, ao drama judicial que destrói de vez a família do cliente, seja ele a criança vítima ou a mãe agressora.
Além de questões de ordem processual penal que exigem a representação da vítima para se registrar e dar continuidade a uma notícia de crime de lesões corporais leves e crimes sexuais, não pode o psicólogo dar-se a autorização para delatar à polícia um fato sem a expressa anuência da vítima, muitas vezes ardorosamente desejosa de que o acontecido não seja de conhecimento público, que sua família seja preservada, que não seja o parente, pai, mãe, padrasto, irmão, irmã levados à barra dos tribunais.
Imagino como seja a sessão de análise após ter o psicólogo delatado o paciente, o pai que cometeu violência, maus tratos ou lesões contra o filho de seis anos. Começa a consulta por dizer o psicólogo:
_ “por uma questão de lealdade devo informar que fui à delegacia noticiar a violência que me relatou na última sessão. Assim, se receber uma notificação da delegacia, saiba que o assunto é este”. Bem! E como transcorreram de lá pra cá as coisas em casa?”
Ou senão, sendo o cliente a criança, o psicólogo informa:
“Pedrinho, seu pai deve receber uma notificação da polícia, não se assuste, é que, diante do seu relato dos bofetões que recebeu, dei parte à polícia e você também será chamado para depor e deve submeter-se a um exame de corpo de delito. Mas isso passa rápido, uma ou duas tardes.”
O psicólogo não pode, terminada a consulta, colocar o colete de policial justiceiro e querer fazer justiça com as próprias mãos a respeito das injustiças (algumas imaginárias) de que tem conhecimento no seu consultório, um confessionário a ser preservado. A confissão de ter apanhado ou de ter batido foi fruto de um largo processo de abertura de alma a permanecer enclausurado naquelas quatro paredes e a ter continuidade se a confiança perdurar cimentando a relação com o psicólogo.
Do contrário, o Conselho Federal de Psicologia deve baixar uma resolução determinando que em frente à cadeira do paciente haja um aviso: “tudo que disser pode ser usado contra você”. Aí sim, concordo com a figura do psicólogo justiceiro.
(26 de setembro de 2004)