NOTA: Mantivemos, com o apoio do autor, a forma original da carta a Jorge Forbes, para evidenciar o valor atual da escrita epistolar: foi o tema e o envolvimento dos amigos que o mobilizaram a escrever; depois se pensou em publicação.
Sent: Monday, September 27, 2004 10:35 PM
Subject: Sorria
Caro Jorge:
Andei pensando no tema, estimulado pelo excelente texto do Miguel.
O mundo moderno está ficando mesmo pós-moderno.
Quando a intimidade foi percebida como um núcleo significativo da liberdade, filósofos, políticos, juristas pensaram ter entendido o que depois se chamou de liberdade de seleção negativa, isto é, de excluir alguns destinatários (ou todos?) das informações que se transmitam. Depois isso virou direito e as constituições passaram a tratar o tema sob o signo da privacidade.
No mundo em que vivemos, contudo, parece que a privacidade ofende, só a transparência edifica. O interesse público exige que tudo seja mostrado. Não necessariamente o interesse público dos juristas. Mais propriamente, aquilo que se poderia chamar de interesse do público. Um interesse dominado não pela velha noção de bem estar, mas pela curiosidade. Uma curiosidade que não conhece mais o escândalo, pois tudo se passa como uma grande tela de TV, em que todos saciam um desejo já farto de ver tudo e de tudo.
Um corolário da privacidade sempre foi o sigilo. Numa sociedade pouco complexa, o sigilo era guardado como prova de amizade, de amor, de compreensão. Revelava confiança. Mútua confiança: de quem falava e de quem ouvia. Afinal, privacidade não significa isolamento, mas comunicação seletiva. Quem se fecha totalmente no seu íntimo vive um silêncio insuportável.
A institucionalização do sigilo trouxe o profissional do sigilo. A guarda do sigilo passou a ser uma dignidade profissional, um papel assumido: guardadores de segredo. Daí o sentido originário de secretário. Qualquer secretária sabe disso. É sua honra, sua dignidade. Sem segredo, a privacidade se desmonta e onde tudo é público a sociedade perde o seu sentido mais forte: socius.
Estão dizendo que psicólogos não devem guardar sigilo perante a violência contra crianças. Tudo muito justificado por força de um interesse público. Quem não arderia por dentro sabendo de uma violência dessas. Calar por medo, por indiferença parece uma indignidade maior que delatar. Mas fazer do profissional um delator é uma indignidade maior ainda. Pois a quebra do sigilo profissional abala o sentido social da privacidade. Remete cada um para dentro de si mesmo. Faz-nos desconfiados, temerosos de enfrentar os outros. Transforma a intimidade em algo insuportável, que passamos a carregar como um fardo.
Haverá, certamente, um meio mais eficiente de combater essa violência contra os indefesos. E, seguramente, o caminho passa não pela quebra, mas pelo revigoramento da confiança, deste saber contar com alguém no limite do poder contar para alguém.
Abraço,
Tercio.