/Debate em “As Exposições Clínicas”: Carta de Gilda Paoliollo a Táki Cordas

Poucos dias após a quarta sessão de “As Exposições Clínicas” (2 de junho de 2004), quando Táki Cordás apresentou a conferência “Como eu trato: Anorexia, bulimia, comer compulsivo – Transtornos do comportamento alimentar, uma avaliação crítica dos tratamentos atuais”, Gilda Paoliello, debatedora convidada, endereçou uma carta ao conferencista. Com a permissão dos dois, entendemos ser de interesse a reprodução, por tratar-se da continuação epistolar do debate.

Caro amigo Táki,

Convidada por Jorge Forbes a participar de seu seminário, comentando a exposição que você faria, senti-me, de verdade, bastante feliz por compartilhar esse trabalho que, já havia te falado desde o principio, me entusiasmou. Conheço o cuidado com que Jorge constrói seu trabalho e me senti destacada. Seria, para mim, também uma oportunidade de interlocução exatamente onde me inscrevo, na interseção da Psiquiatria/Psicanálise.

Fui esperando ouvir suas exposições clínicas e poder comentá-las. Entretanto, a partir da análise da eficácia de um tratamento farmacológico, ao te assistir propor igual avaliação e validação à psicanálise, preferi não tocar em pontos nevrálgicos, talvez provocando polêmica exaltada em casa alheia, onde estava como convidada. Tentei, então, sair pela tangente, fazendo meu comentário a partir de um clássico da psiquiatria – que poderia nos unir – o texto de Charles Lasègue “Da anorexia histérica” (1876), completamente atual, único texto psiquiátrico, por mim conhecido, que dá à anorexia uma estrutura de discurso, abordando pontos que passam batido nos textos atuais, como , por exemplo, a questão da multiplicidade dos sintomas, sua relação com a histeria e, principalmente, uma inusitada satisfação que a anorética parece obter de seus sintomas, que Lasègue chama de “contentamento patológico”.

O texto, que me ocorreu motivado por sua exposição, foi oportuno, mas seu uso revelou-se uma solução de compromisso. Imediatamente após nosso encontro, palavras foram se impondo a mim como um imperativo ético, como um eco que, tomando corpo, resultou nesta resposta tardia que dirijo a você. Senti-me omissa com o que é para mim uma causa: a conseqüência das palavras. Afinal, nos inúmeros congressos e seminários que já organizei, sempre defendi que estes encontros precisam deixar ecos, conseqüências. Você foi completamente sincero ao expor sua clínica e ao fazer as críticas ao que te parece estranho; trouxe uma contribuição importante a um público que não pertence a seu cotidiano. É neste sentido que me senti em dívida com você, com Jorge, e com os presentes. Aqui procuro resgatá-la. Vamos lá.

Você iniciou sua exposição demonstrando a necessidade de instrumentos para avaliação da eficácia de um tratamento psiquiátrico. Para isso usou como modelo a validação da pesquisa farmacológica na clínica. Fez uma exposição cuidadosa sobre o método da pesquisa em farmacologia. É uma contribuição importante: vejo colegas em final de carreira que desconhecem o que é uma pesquisa randomizada. Considero fundamental levar a pesquisa à clínica. Sempre participei e incentivei este trabalho em nossa residência. É uma forma do psiquiatra conhecer com rigor os efeitos de uma medicação e poder validá-la ou não. De maneira geral os protocolos são cuidadosos e os termos de consentimento para participação do paciente esclarecedores e éticos. Caso não sejam, a participação na pesquisa é uma oportunidade para modificá-los.
Tenho um outro motivo para participar de pesquisas farmacológicas: como minha escolha de referência de trabalho é um hospital público onde só trabalhamos com medicações padronizadas, a pesquisa é uma excelente forma de levantar dados e argumentos para comprovar (ou não) a eficácia de uma medicação e propor (ou não) sua padronização. Desta forma, consegui padronizar todas as medicações, antidepressivos e antipsicóticos, de última geração em nosso serviço.

Partindo deste modelo você passa a criticar a psicanálise por sua ausência de validação a partir de estudos de casos. Contrapõe aos milhares de casos estudados para se validar uma medicação Freud com seus parcos cinco casos clínicos, que nem tão bem sucedidos foram como resposta terapêutica. Não são elementos comparáveis. Freud produziu uma obra em 24 volumes, mas nunca teve a intenção de escrever uma casuística. Porque? Porque sua intenção era exatamente falar do que escapa aos protocolos e que não pode ser generalizado por pertencer a uma outra ordem. Que ordem é essa? Veremos já. A intenção de Freud era dar validação ao que o sintoma representa. Só que o sintoma na psicanálise tem estatuto diferente do sintoma na medicina. Na psicanálise o sintoma é um representante do desejo inconsciente, o avesso do sintoma na medicina. Toda a obra de Freud é uma validação dessa teoria e ele apresenta dezenas de casos clínicos para demonstrá-la. Em “O mal estar na civilização” o caso clínico é a humanidade (!) e as conseqüências que ela sofre em ter de abrir mão de seus desejos “naturais” em função de sua inscrição cultural. Penso que o único fato digno de generalização em psicanálise é: todos nós somos incompletos e por isso desejamos. Mas o que fazer com o desejo? Como Jorge pergunta, de maneira tão oportuna – “Você quer o que deseja?” O sintoma está aí para nos mostrar a dificuldade em responder.

Veja só, Táki: a psicanálise rompe com o modelo médico. Psicanálise e medicina pertencem a campos diversos, têm éticas diferentes. A Medicina, regida pela ética da ciência, procura estabelecer o universal, constituir o conjunto. Assim a Medicina tem como ponto de partida para o tratamento o sintoma e como objetivo final a abolição do mesmo- o restitutio ad integrum – possibilitando a avaliação estatística dos resultados, seguindo condutas terapêuticas padronizadas, de acordo com os nossos famosos guidelines. Isso tudo cabe na pesquisa. O que critico é uma tendência da Psiquiatria atual de provocar um movimento bastante inusitado: enquanto os laboratórios farmacêuticos vêm cada vez mais valorizando as pesquisas naturalísticas, como você tão cuidadosamente mostrou, considerando a atuação dos medicamentos na clínica, com o paciente real como sujeito da pesquisa (se contrapondo ao paciente ideal do laboratório) não é raro encontrarmos na clínica atual o caminho inverso, levando este modelo para os consultórios, com o paciente sendo examinado através de escalas e encaixado em protocolos de diagnóstico e conduta. Esse procedimento acaba transformando a clínica em um leito de Procusto, fazendo corresponder ao duplo cego da pesquisa um duplo surdo na clínica!

Contrapondo-se ao universal da Medicina, a ética da Psicanálise diz respeito à singularidade da relação do sujeito com seu desejo inconsciente , do caso a caso, onde não se pode escrever o universal ou formar conjunto. Assim, o que fundamenta um tratamento psicanalítico não é uma lei universal, mas uma construção. Por isso não há estatística possível nem tratamento padrão. A Psicanálise visa a mutação subjetiva, onde a medicina vê restabelecimento.

A Psiquiatria, enquanto parte da medicina, trabalha com projetos evidenciáveis, nomeáveis, da ordem do universal, que sofrem avanços e retrocessos sobre os quais é possível obter generalizações estatísticas, que guiarão a previsão dos fatos e a formulação de condutas padrão. Mas o que fazer quando surge o imprevisível, o inesperado, como , por exemplo, a surpreendente manifestação de satisfação da anorética, mesmo dentro de seu sofrimento?

Tomemos este quadro (a anorexia) como exemplo. Qual a origem desta palavra? Você sabe melhor que eu: vem do grego (que lhe é tão caro) orex e quer dizer apetite. Mas também quer dizer desejo. Assim, enquanto a psiquiatria trabalha com a anorexia como perda do apetite, a psicanálise a encara como uma manifestação do desejo inconsciente. Estranho desejo? A verdade é que quase nunca sabemos “desejar certo”. Você não apontou como uma característica da anorética “pouca ou nenhuma atividade sexual”? A psicanálise considera que se trabalharmos apenas a perda do apetite da anorética, ela, com certeza, vai deslocar sua dificuldade para outro sintoma, como, aliás, Lasègue também descreve, com o exemplo da cantora que perde a voz, lembra-se? Esse é mais um exemplo do sintoma como representante do desejo inconsciente.

Então, Táki, é aqui, nestas sobras ou excessos, que psiquiatria e psicanálise se encontram e é aqui que podemos trabalhar juntos. Afinal, a psicanálise tem uma dívida com a medicina: como diz Lacan, ela é filha da medicina e herdeira da clínica psiquiátrica. Pode pagar esta dívida apontando o desejo no sintoma psiquiátrico, reconhecendo em cada paciente um sujeito singular. Este é o compromisso ético da psicanálise , que pode lhe interessar.

Com meu abraço amigo, ao depois,

Gilda

7 de junho de 2004
Belo Horizonte