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Do medo prêt-à-porter à singularidade

 

Elza Macedo

Introdução

Este texto apresenta um resumo comentado do Capítulo III do livro de Luc Ferry: Famílias, amo vocês – Política e vida privada na era da globalização, Cap. III “A sagração da intimidade ou o nascimento de um novo humanismo”, Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

O autor, filósofo, foi Ministro da Educação na França entre 2002 e 2004. Inicia este livro tratando da questão do medo: antes tido como um sentimento negativo, o medo torna-se, no mundo atual, uma paixão positiva. Ele fica desculpabilizado e passa a ser considerado um fator de conhecimento que leva à consciência de que o mundo estaria ameaçado, primeiro, pelo desenvolvimento industrial e depois, tecnológico.

A questão colocada neste livro é: “De onde vem esse medo, desculpabilizado e paralisante, e como se livrar disso?” Luc Ferry constata dois momentos que levaram a essa situação: desconstrução e despossessão.

O Século XX foi marcado pela desconstrução – tema do capítulo I – caracterizada pelo desmoronamento dos tradicionais princípios de sentido e valor, dando lugar à exacerbação do individualismo acompanhado de uma sujeição ao mercado.

Surge a preocupação com a perda do controle do desenrolar da história, devido à globalização da competição capitalista: Internet, manipulação genética, efeito estufa, mercados financeiros, criados pelo homem, estariam fugindo a seu controle. Assim, o homem fica despossuído do que ele criou – tema do Capítulo II. A globalização – que é, por excelência, liberal – trai a democracia, estilhaçando a promessa de que o homem poderia fazer sua história. A vitória do liberalismo – filosofia da liberdade, comprometido em tornar os homens cada vez mais responsáveis – torna os homens despossuídos do controle do andamento do mundo. Daí a paixão do medo.

Luc Ferry compara a época atual com o Iluminismo. Este se caracterizou pela crença de que o progresso das ciências e das técnicas traria segurança, o controle da natureza e de suas catástrofes. Seria a salvação do homem. Mas hoje o paradigma é outro: admiramos a natureza, enquanto a ciência nos parece ameaçadora.

Na base de uma proliferação de medos está a preocupação com a impotência pública, inerente à globalização, que traria a falta de controle sobre o seguimento do mundo. O Estado é fraco, dada a paralisia do poder público. Há uma crise de representação. Evoca o paradoxo da política moderna: “É preciso ser popular para se conquistar o poder, e seria necessário poder ser, às vezes, impopular para exercê-lo bem.”

Há a constatação da derrocada dos valores transcendentais verticais. No entanto, o homem precisa de sentido: de uma escala que oriente seus valores. Como diz o provérbio árabe: “Um homem que nunca, na vida, encontrou um motivo para pô-la em risco é um pobre coitado.” Trata-se, então, de construir valores não transcendentais que autorizem ao homem ultrapassar a si mesmo, a se sacrificar. Daí o termo com valor etimológico: “valores sagrados”, isto é, valores pelos quais vale a pena se sacrificar. Não mais valores transcendentais, mas valores a serem construídos na “imanência”. Onde encontrar esse sagrado? Para Ferry, seria no crescimento dos valores da intimidade. Não num individualismo egóico que renunciaria aos afazeres do mundo, mas ampliando o horizonte, através de um humanismo maduro.

A SAGRAÇÃO DA INTIMIDADE
ou
o nascimento de um novo humanismo

A era da globalização é marcada por um “processo sem sujeito” e de guerra ao sentido, de desconstrução.  Valores morais, culturais e espirituais, família, Pátria, Deus, são passados para trás, frente ao domínio do mercado. Surge a sociedade de hiperconsumo. A política vai se reduzindo a uma técnica. Luc Ferry considera necessário inscrever a política futura em um campo de significação. Para isso, seria preciso se desprender do comodismo das velhas certezas, do humanismo anterior, o humanismo das Luzes, marcado pelo racionalismo, do qual Kant é o precursor, e pelo igualitarismo. A Revolução Francesa vem em defesa de uma democracia e estabelece os Direitos do Homem, cujo primeiro item diz: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em Direito.” Liberté, égalité et fraternité é o ideal iluminista. É o humanismo do final do Século XVIII. Seria preciso se desprender também de um pragmatismo liberal, onde o mais fraco fica na pior. Também se desprender, com tanto mais razão, dos arcaísmos do socialismo, que nem chega aos pés de um Blum e de um Jaurès. Léon Blum, Presidente do Conselho da França na Terceira República, grande orador do socialismo, moderado, foi importante para as conquistas sociais. Jean Jaurès, deputado, figura importante da República francesa, o verdadeiro líder do socialismo francês, que sendo pacifista, foi assassinado à véspera da Primeira Guerra, por ser contrário a ela.

Ferry mostrou, nos capítulos anteriores, o fracasso do humanismo contemporâneo. Mostrou a despossessão do homem. Onde o homem pensava que mandava, agora as coisas ocorrem à sua revelia. Isto lembra o dito freudiano de que a psicanálise trouxe uma ferida narcísica ao homem, com a idéia de inconsciente, de que ele não é senhor em sua própria casa. Perdeu o poder político na sociedade contemporânea. Onde Descartes colocou o pensamento como centro do homem, Marx vai dizer que o centro é a atividade econômica.

Se a política já se tornou impotente para gerir o mundo, Ferry considera que novos horizontes podem ser abertos através dos valores da vida privada, os únicos em que se mantém o sagrado ou a transcendência. Vimos que o sagrado é o que merece sacrifício, que aliás, está na etimologia da palavra sagrado. Não sacrifício pela Pátria, mas pela família. A transcendência implica um ponto de organização fora, em que o sentido é dado, seja pela História, como acontece numa sociedade comunista, sem classes, seja pela religião – por exemplo, na figura de Deus. A transcendência permite organizar um sentido, interpretar, o que é necessário para a orientação das coisas.

Ferry fala de um paradoxo na globalização. Ao mesmo tempo em que ela encarna o grande movimento de desconstrução dos ideais, previsto pela crítica nietzschiana do niilismo, vai havendo uma “divinização do humano”. O sagrado é encarnado na humanidade, destituindo as entidades verticais, superiores e externas a ela. Este é o terreno propício para desenvolver a idéia de uma transcendência horizontal.

Como conseqüência, as relações entre política e vida privada se invertem. Antes, as famílias estavam a serviço da política, o que é notável, por exemplo, em época de guerra. Passa-se a uma política a serviço das famílias. É da intimidade que surge a preocupação coletiva com educação, segurança, saúde, habitação, etc. Envolve dimensões afetivas e de sentido que não coadunam mais com as abordagens burocráticas. Ferry considera a esfera do privado a grande preocupação pública do futuro. O laço que une as gerações dentro da família foi o que mais se fortaleceu nos dois últimos séculos. Ferry considera um paradoxo o fato de que a família moderna tendo sido decomposta, situada fora do casamento, recomposta, mostre-se menos hipócrita, autêntica e atraente. Mas, por que seria isso um paradoxo?

A história da família moderna como verdadeiro vetor de emergência de novas imagens de sentido

O autor toma a expressão de Gide: “Famílias! Como as odeio!” para lembrar o desprezo que havia pela esfera privada. É claro que nos pós-guerras a preocupação maior era com a nação e com sua reconstrução. A família não contava muito. A mulher cuidava dela, ocupação privada, enquanto o homem ia para o mundo e cuidava da política. O existencialismo visava nos libertar das tiranias do casamento. Sartre e Simone de Beauvoir são paradigmas do “amor livre”. A condição feminina passa por enormes transformações. Na década de 1970, o homem deixa de ser o chefe da família. Aqui Ferry fala das evoluções do casamento e da família. A novidade está no plano político. Os políticos não se dão conta da inversão da relação da vida pública com a vida privada e ficam gritando aos quatro cantos que a família está em perigo, que a família está estilhaçada. Para Ferry, é o contrário, a família é a instituição que está mais estável, cujos laços de amor têm se fortalecido. Se antes havia menos divórcios, não quer dizer que as pessoas fossem mais felizes, mas que se submetiam às convenções sociais. A psicanálise vem mostrar o quanto havia de hipocrisia e mentiras nas famílias tradicionais. É o casamento por amor, próprio da contemporaneidade, que levou ao aumento do número de divórcios, pois se o amor acaba as pessoas se separam.

Para Ferry, é preciso considerar as rupturas históricas para compreender como evoluíram as relações entre a vida política e a vida privada. A primeira ruptura ocorre na passagem do casamento por conveniência, estabelecido em bases econômicas, para o casamento por amor, em que os parceiros se escolhem livremente. Não se trata, então, de amor livre, mas de escolha livre. Ocorre uma revolução da intimidade. Já no Século XVII, as peças de Molière mostraram a revolta dos filhos, reivindicando se casarem por amor.

A segunda ruptura vai da inexistência da intimidade, em que as famílias viviam em um mesmo aposento, para a criação, no Século XVIII, de cômodos com divisórias para assegurar autonomia e isolamento. Na Idade Média, não havia reconhecimento da esfera privada e a comunidade intervinha na vida familiar, fato comprovado pela prática do charivari, em que um marido traído era humilhado, já que não tinha autoridade de chefe de família e punha, portanto, a comunidade em perigo.

A terceira ruptura se dá, no Século XVIII, com o advento do amor parental, conseqüência das duas rupturas anteriores. O casamento por amor levaria a uma maior afeição pelos filhos. Rousseau, autor do maior livro sobre educação, abandonou seus cinco filhos. As crianças eram seres de menor importância. Há um abismo entre a família moderna, tão criticada hoje e a família antiga, idealizada, mas surrealista. Como, da indiferença nos vínculos tradicionais, houve lugar para o amor? É essa questão que permitirá compreender a importância da família para o surgimento de um humanismo livre das abstrações filosóficas e científicas. Foi nesse ponto, nessa mutação, que se deu a passagem das transcendências verticais para as horizontais que, situadas na imanência, puderam dar origem a um humanismo pós-nietzschiano. Foi em conseqüência da passagem de uma sociedade hierarquizada para uma sociedade individualista e igualitária que o afeto ganhou peso nas relações pessoais. Com o surgimento do capitalismo e do assalariado, homens e mulheres foram levados, primeiro no mercado de trabalho e depois, em sua vida privada, a se portarem como indivíduos autodeterminados. Ser livre e dar conseqüência a seus interesses particulares era obrigação. As camponesas, para se livrarem do controle social tradicional, foram trabalhar na cidade. Os reflexos individualistas e as exigências de liberdade adquiridos na esfera do mercado foram transferidos para o âmbito das relações humanas. O peso da comunidade diminuiu na proporção do aumento da livre decisão individual. As pessoas passaram a querer na vida privada o que tinham fora: escolhiam seu trabalho, tinham salário, independência material, etc. A lógica do individualismo elevou as relações humanas à esfera do amor moderno, por escolha e sentimental. Há uma reviravolta no sentido da vida. O amor profano – casamento por amor e amor aos filhos – e não mais o amor a Deus, vai dar à existência dos indivíduos a sua significação.

Humanização do divino e divinização do humano, ou como passar de transcendências verticais para transcendências horizontais

O sagrado mudou de encarnação: da Pátria, Deus, hierarquias sociais aristocráticas para a própria humanidade – a humanização do divino. Apesar da desconstrução, os valores transcendentes não desapareceram.  Desceram do céu para a terra; do céu das idéias – dos ídolos para o humano.

A noção de sacrifício acompanha a noção de sagrado. Risco zero e preservação da própria vida não são valores supremos. O sagrado é o que faz com que a pessoa aceite, se necessário, pagar com a própria vida. Surge um novo humanismo pós-metafísico e pós-nietzschiano que não pensa mais os valores segundo o modelo clássico do idealismo e dos ídolos, quebrados pelo martelo de Nietzsche. A ênfase não está mais em entidades do além, que pedem sacrifício, mas em reconhecer na experiência, na imanência da vida de todo dia, imagens da relação com o outro que criam obrigações que se nos impõem. Mais forte que eu. É no próprio homem que hoje se encontram razões para amar e respeitar. Trata-se, agora, de transcendências horizontais enraizadas na experiência e não mais em entidades externas e superiores.

A transcendência na imanência ou o coletivo enraizado no individual

Ferry quer saber como a transcendência se enraizando na imanência da própria humanidade pode escapar dos desconstrucionistas, em especial do martelo de Nietzsche. É o desafio do humanismo pós-desconstrucionista. É possível conceber a transcendência de forma não idólatra e “niilista”? Em um mundo de hiperconsumo, onde a imanência é a lógica do mercado e da competição, há ideais que possam subsistir no coração dos humanos? Ferry acha que sim e apresenta o conceito de “transcendência na imanência”. Uma transcendência que não seja um ídolo, mas uma “experiência vivida”. Não como algo caído do céu, mas nascido na terra. Qualquer valor – verdade, justiça, amor – é primeiro em mim, na imanência da minha consciência e não no céu, nas idéias, que sinto a transcendência. Que 2 + 2 = 4, é por mim mesmo que tomo consciência disso, sem me referir a um princípio externo, a uma instituição, e por isso eu sinto que nada posso, que nessa verdade há algo que me ultrapassa, sem se remeter mais à minha particularidade subjetiva. Por isso, o sentimento de transcendência é paradoxalmente imanente à minha vivência. Não toma a forma de um ídolo ou ideal e não se expõe aos golpes da desconstrução. Percebo, aqui, uma analogia com o real lacaniano.

Ferry vê ataque dos dois lados: Os que têm fé farão objeção à noção de uma transcendência se encarnando no humano. Os desconstrutores alegarão que essa transcendência no humano parece religiosa demais. O autor propõe um humanismo pós-nietzschiano que se baseia em uma exterioridade ou transcendência radical de valores, mas afirmando que elas se manifestam na imanência da consciência. Eu não invento a verdade, a justiça, o amor, eu os descubro em mim mesmo, como algo que me ultrapassa. Ele fala em mistério da transcendência. A busca de um fundamento último fica distante do que a vivência tem de específico e que se liga à sensação de uma obrigação particular, que só a descrição fenomenológica pode dar conta. Nesse ponto, Ferry se aproxima de Hans Jonas em seu Princípio responsabilidade e, por que não dizer, de Lacan quando este diz: ça s’y sent. Ou quando Lacan se refere à monstração.

Considerações finais

Sacralização, para Ferry, não é sacralizar uma representação de família, um ideal, mas é a possibilidade de extrair dessa dimensão do íntimo, do campo da família, pontos de decisão, não porque me foram impostos, mas porque é da ordem do mais forte que eu, que se impõe a mim mesmo e que se impõe por si mesmo.

Entendo que ao propor, como alternativa ao medo, que estou chamando aqui, medo prêt-à-porter – medo pronto para sentir – ao propor a transcendência na imanência, em que cada um constrói o sentido da sua vida, em que se vai achar o humano dentro do humano, Ferry se aproxima do que Lacan tratou como a singularidade. Vale lembrar aqui que em psicanálise o sentido é construído pela pessoa. Freud, em seu texto, Construções em análise, faz uma hipótese do sujeito com base nos ditos deste. Jorge Forbes critica a interpretação prêt-à-porter, que tenta acomodar o novo no antigo e que desresponsabiliza o sujeito. Esse tipo de interpretação se enquadraria talvez na transcendência. Forbes evoca a interpretação proposta por Lacan como um meio-dizer e que Forbes nomeia como interpretação descompleta. Esta, sim, compatível com Ferry na sua “transcendência na imanência”. Quanto mais você se aproxima de si mesmo – imanência – há algo sempre mais longe. Assim, da imanência nasce a transcendência.

Concluo: Sagrado é o ponto de singularidade, que ultrapassa a minha intimidade e pelo qual vale a pena me sacrificar porque é mais forte do que eu.

São Paulo, 23 de dezembro de 2009.

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