O neurologista Daniele Riva foi o convidado da Domingueira de 26 de agosto, no IPLA.
Em sua conferência, falou da psiquiatria biológica, da biologização de nossa existência e das repercussões da ideologia biologicista na vida contemporânea.
O biologismo é uma ideologia, uma manipulação ideológica, que considera o indivíduo ontologicamente prioritário em relação à sociedade e que reduz as características disfuncionais da sociedade às disfunções do psiquismo e do comportamento individuais. Este biologismo sustenta, por ex., que a sociedade é agressiva porque os indivíduos são agressivos. Tem grande impacto na mídia e no cotidiano.
As pessoas não falam mais de experiências que lhes dão prazer; falam de ‘compulsões’. Não dizem que gostam de chocolate, mas que são ‘chocólatras’. Usam categorias médicas. Isto tem conseqüências no nível de comportamento. Compulsão significa mais do que gostar de, significa que a pessoa é invadida por um impulso que não consegue controlar. Trata-se de uma armadilha ideológica que acabou por envolver todas as ciências que lidam com o ser humano.
A antropologia considera que o idiossincrático se forma em uma cultura específica, deriva desta cultura. Trata-se de uma visão diferente da que considera a sociedade como derivada do indivíduo, do idiossincrático, e que considera que os males da sociedade teriam que ser tratados no nível individual. Os antropólogos verificam que, na maior parte das culturas, o ser humano é visto como ontologicamente secundário àquela cultura. Além disto, cada cultura apresenta traços não redutíveis às outras. A unicidade das culturas e suas idiossincrasias seriam decorrentes da própria cultura.
Ao contrário, a psicologia evolucionista considera que o ser humano viveu primitivamente em condições muito simples e que o cérebro teve que se adaptar às condições de vida moderna. As características do homem seriam estudadas à luz desta hipótese. Por exemplo, esta psicologia considera que a natureza tornou o cérebro voraz para os saques em uma época em que faltavam alimentos e hoje, com a abundância de alimentos, esse cérebro voraz acarretaria um novo problema, a obesidade. Uma adaptação se tornou uma desadaptação. À medida que esta psicologia evolucionista invade a afetividade, as relações sociais, ela se torna fantasiosa. Não temos a menor idéia dos limites da natureza humana.
Isto é verificado pela etologia, o estudo dos animais em seu ambiente natural. Os etogramas – repertório comportamental de dada espécie – não são estáveis. É o caso de fazer um etograma natural para os seres humanos? É difícil segmentar o comportamento dos animais em unidades fixas para que possam ser comparadas em diversos ambientes. Mas há vários trabalhos que demonstram variações do etograma em função das variações do ambiente, por ex., estudos sobre babuínos. O etograma não está inteiramente inscrito no genoma da espécie. Os fatores genéticos e ambientais são muito imbricados.
As analogias entre o comportamento humano e animal são importantes, mas devem ser relativizadas. As pessoas usam explicações etológicas, baseadas em macacos, para seus comportamentos e as consideram muito modernas e avançadas! Na semana passada, a imprensa noticiou a existência de ratos com TOC produzidos em laboratório. Ora, o transtorno obsessivo compulsivo afeta as representações, as cognições, os significados e não se conhecem ratos que tenham representações, cognições e significados. Uma estereotipia motora foi interpretada como TOC. Como afirmava Jaspers, devemos iluminar o simples a partir do complexo e não o complexo a partir do simples.
Quanto à psicologia, ela é dividida em vários paradigmas. Esta divisão é inerente ao campo de atividade ou é apenas um viés metodológico? Há duas maneiras de se fazer ciência – uma, à moda das ciências naturais, e outra, das ciências humanas – e a psicologia pode ser abordada destas duas maneiras. Quando se estuda a memória como neurobiologista, não se estuda a memória de um indivíduo particular, em sua trajetória histórica e nem dentro de seu contexto social. Estudam-se os mecanismos de memória genericamente. E este conhecimento não ajuda em nada a abordar um indivíduo em seu contexto sócio-cultural. Essa maneira de fazer psicologia é idêntica à das ciências naturais. Pode-se fazer algo diferente.
Wundt dizia que os aspectos complexos da mente – a cognição, a afetividade, a motivação – não podiam ser abordados cientificamente. Apenas os elementos simples, como as sensações. Wundt desenvolveu trabalhos científicos que tratavam da sensorialidade e também escreveu a Psicologia dos Povos, um livro sobre os aspectos da mente que não podiam ser abordados cientificamente. A psicologia, que era mentalista, buscou eliminar os significados e as complexidades da semântica para tentar se tornar uma ciência natural. Aboliu aquilo que era filosófica e psicologicamente complexo, isto é, uma parte significativa de seu campo.
Em 1948, houve um simpósio no MIT que resultou no livro Os mecanismos cerebrais do comportamento. Acompanhamos, neste livro, a instalação de novos paradigmas. Uma das palestras abordava a ordem serial do comportamento. Esta palestra radical decretou a morte do comportamentalismo, que sobreviveu mais dez anos até que Chomsky sepultasse-o de vez. Naquele colóquio participaram, especialmente, um matemático e um neurologista que mostraram a possibilidade de se formar modelos neuronais que poderiam implementar a álgebra booleana, a álgebra dos computadores digitais. Elaboraram micro-sistemas que executavam operações lógicas: sim/não, ou/e. Entendiam que o cérebro funcionava como um computador digital. O dualismo mente/corpo foi explicado pela linguagem dos computadores.
Isso foi devastador para a psicologia, pois os psicólogos, durante 20 anos, não se interessaram pelas pessoas, mas pela inteligência artificial. A psicologia cibernética deu espaço para outro paradigma, o cognitivo, desprovido de conteúdos e sem interesse pelo significado. Embora dissessem que era preciso reintroduzir a mente na psicologia, não se tratava da mente do ser humano interagindo com outros seres humanos. Tratava-se de uma mente concebida por lógicos, filósofos e matemáticos, semelhante à dos computadores digitais. Era uma corrente anti-biológica.
Em 1982, o filósofo Fodor lançou o livro A modularidade da mente, propondo que a mente funcionava através de módulos e que havia funções supra-modulares – a fixação de uma crença, por ex., – que não podiam ser moduladas. O paradigma computacional começava a ruir e surgia um novo paradigma, o processamento paralelo das redes de neurônios. Nenhum desses modelos dá conta de explicar o cérebro humano, mas o processamento paralelo parece mais plausível do que os modelos computacionais.
As neurociências tem pouca relevância para a psiquiatria. As afecções com que trabalham neurologista e psiquiatra não são as mesmas e o modo de raciocínio é diferente. O neurologista busca a lesão. Uma área em extensão da neurologia é a neuropsicologia, que deveria se interessar pelas funções instrumentais, as praxias, as gnosias e a linguagem. A neuropsicologia desenvolveu-se muito e expandiu-se para além de sua área. Passou a abordar problemas e conceitos que pertenciam à psicopatologia de pleno direito, como por exemplo, a motivação.
Os exames por imagens, o pet scam, a ressonância magnética funcional, mostram a anatomia e o funcionamento do cérebro em um dado momento e parecem, segundo a mídia, resolver todos os problemas da psicologia. Fornecem uma abundância de dados irrelevantes. O fato é que, quanto ao princípio, elas não acrescentam muito ao que antes era feito com o trabalho de autópsia. A máquina não diz sobre a forma como a tarefa mental está sendo realizada. O problema básico é como teorizar as tarefas mentais. Isto só pode ser efetuado no nível mental.
A psiquiatria não é uma ciência, é uma prática com componentes tecnológicos e não tecnológicos. Ela se nutre de outras ciências e de outras práticas. Existe algo chamado doença mental? A psiquiatria partilha, com a medicina, o mesmo conceito de doença? Encaixa-se numa meta-clínica médica? Meta-clínica é o arcabouço teórico e conceitual da medicina. Os conceitos de doença, sintoma, sinal, terapêutica, cura, são conceitos médicos. Se a psiquiatria for um ramo da medicina, ela tem que se encaixar numa meta-clínica semelhante à da medicina. Isto não ocorre, pois a psiquiatria é híbrida, abarcando doenças que são da medicina, mas também padrões comportamentais desadaptativos na nossa cultura. A homossexualidade é uma doença? Ela foi retirada da classificação das doenças mentais. Na nosologia psiquiátrica há ítens que não são se encaixam no conceito de doença, por exemplo, a compulsão sexual. O DSM-III oferece uma lista de diagnósticos psiquiátricos e a maior parte dos diagnósticos psiquiátricos é feita por médicos clínicos e não por psiquiatras. A medicina baseada em evidências promoveu este reducionismo.
Jorge Forbes, debatedor nesta domingueira, fez um comentário geral retomando os pontos trabalhados por Daniele Riva, que partiu da idéia de que o trabalho em biologia se transformou em uma ideologia e em seguida fez uma crítica à situação atual da antropologia, da etologia, da psicologia, da neuropsicologia e, finalmente, da psiquiatria. Forbes relatou que, há poucos dias, participou do congresso Cérebro e Pensamento, onde havia muito cérebro e pouco pensamento. Na mesa–redonda que coordenava, neste congresso, um dos participantes se pôs a salvar Freud, dizendo que, com o desenvolvimento alcançado, a neurobiologia podia mostrar que Freud sempre foi um neurobiologista. E falava de sua experiência com animais irracionais. Outro relator projetou a imagem do cérebro e parecia não ter dúvidas de que a imagem seria igual à coisa. A imagem projetada não só seria o cérebro, como nela poderiam ser localizados todos os aspectos da moral. Ele localizou cada ponto da moral moralista – a vergonha, a inveja, o perdão. É lá, no cérebro, que se procuram as raízes e soluções para as dificuldades do homem. Em outra mesa, um dos relatores defendeu a utilização do litium nas águas da cidade de São Paulo para se fazer uma profilaxia da depressão para as massas. A pergunta de Jorge Forbes a Daniele Riva abriu o debate: o que fazer diante da biologização? Como nos contrapormos a esta ideologia biologicista? Como detê-la?
(sinopse de Elza Macedo, Teresa Genesini e Ariel Bogochvol)