Jorge Forbes: “As empresas precisam ir para o divã”
ÉPOCA NEGÓCIOS – 16/6/2014
Como gerir equipes, reter talentos ou se comunicar com os consumidores em um mundo sem bússolas, em constante mutação? Lidar com dilemas desse quilate, óbvio, não é uma tarefa simples. Mas algumas pistas para a solução de problemas desse tipo podem ser encontradas em um lugar insólito: em um divã, por exemplo. O psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes, um dos introdutores das teorias de Jacques Lacan no Brasil, está convicto de que as empresas precisam fazer análise. Isso para que entendam as peculiaridades de uma época, na qual as hierarquias rígidas e verticalizadas fazem pouco — ou nenhum — sentido. “As relações humanas, sob o ponto de vista psicanalítico, não são mais intermediadas por um padrão estável”, diz Forbes. “E isso torna todos mais frágeis. Por isso, as pessoas estão cada vez mais sujeitas a passar por verdadeiros curtos-circuitos”. Daí, observa o médico, a explicação para a ocorrência de tumultos variados, o que inclui desde manifestações populares ao aumento de crimes provocados por reações intempestivas.
O senhor tem observado a ocorrência frequente de crimes hediondos, envolvendo pessoas comuns. O que está acontecendo em nossa sociedade? Temos de constatar algo óbvio. Um tipo específico de crime, até recentemente raro, está se tornando cada vez mais comum, quase habitual. Presenciamos uma verdadeira epidemia desse gênero de crimes, marcado por linchamentos, pessoas picadas (zeladores e maridos), além de pais, mães e filhos assassinados uns pelos outros. Não estou dizendo que vivemos em uma época em que acontecem mais crimes. Não é isso. Mas é inegável que há um aumento de um problema específico. Casos que antes eram raros, hoje se tornaram mais comuns.
O que distingue esses crimes? Todos são hediondos e foram praticados por pessoas comuns, sem antecedentes criminais, sem ficha corrida.
Por isso, surpreendem? Exato. São inusitados, no sentido específico da palavra — ou seja, parecem fora de lugar. As pessoas que os cometeram são muito semelhantes àquelas que nunca fizeram nada parecido. Esse tipo de situação coloca todos em alerta. Deixa as pessoas angustiadas. Elas dizem: “Me explique qual a diferença entre mim e esses criminosos, porque eu quero ter certeza de que nunca faria algo parecido”. O ser humano está se defrontando com um aspecto assustador da sua condição: somos bichos perigosos. E a nossa época favorece essa percepção.
Por quê? Qual a influência desta época? O homem reage de forma diferente conforme a época em que vive. Aliás, nós chamamos de época a forma como o homem fixa a interação com os outros homens e com o ambiente em determinado espaço de tempo. Nós passamos do período moderno para o pós-moderno. As mudanças foram expressivas.
Qual a diferença entre esses dois períodos? No moderno, sob o ponto de vista psicanalítico, as relação humanas eram intermediadas por um padrão estável. Na família, havia a lei do pai. Nas empresas, os funcionários seguiam a lei do chefe. Na sociedade civil, vigoravam as leias da pátria. A relação era piramidal. Ela estabelecia o certo e o errado e as pessoas criavam uma identidade a partir desse padrão.
O que ocorre na sociedade pós-modernidade? O laço social muda. Ele deixa de ser único, hierarquizado. O padrão até existe, mas se torna multifacetado. Há uma multiplicidade de padrões. Na sociedade pós-moderna, que também é chamada de “rede”, as relações humanas também são mais diretas. Elas são menos intermediadas. Não passam por um elemento comum de reconhecimento, como o pai, o chefe e a pátria. Essas novas relações tendem a
ter uma intensidade maior, mas sofrem rupturas de maneira muito mais rápida. O chamado “deletar”, utilizado no computador, passa a ser aplicado nas relações pessoais. As pessoas se “deletam” o tempo todo. Hoje, são próximas. Amanhã, acabou. Não estou dizendo que isso vai ficar assim. Eu defendo a ideia de que estamos vivendo um momento de passagem.
E o que a época tem a ver com os crimes inesperados? Esse novo mundo tem uma característica importante. Ele cria uma relação afetiva sujeita a curtos-circuitos.
Como assim? Antes, havia um circuito pactuado, com o pai, o chefe e a pátria, em que você tinha maneiras de se relacionar e até de brigar. Agora, não. Os padrões são menos evidentes. E, de repente, uma pessoa entra em curto- circuito e pode cometer uma atrocidade. O que é uma surpresa até mesmo para ela. Repito: com isso, não quero justificar e nem diminuir responsabilidade dos criminosos por seus atos. É justamente o contrário. Como vivemos em uma sociedade que passou por uma desregulamentação, que não tem mais uma norma clara, temos de aumentar o botão da responsabilidade subjetiva. É bom que nos assustemos com esses crimes, porque, sim, nós somos parecidos com os criminosos. Qualquer pessoa está fragilizada e pode ter reações intempestivas.
O senhor fala que vivemos em um mundo sem bússolas. Faltam valores? Sim, os valores têm tudo a ver com isso. Na verdade, estamos em um período de mudança de valores. Fomos criados com base em valores externos. Nesse ponto, concordo com Luc Ferry [filósofo francês]. Ele diz que o homem ocidental não morre mais por grandes ideais, mas morre pelas pessoas que lhe são próximas. É mais sensível à família, ao amigo, à namorada. O que existe é uma responsabilidade menos heroica. A amizade toma o lugar da admiração.
Por que as pessoas estariam dispostas a morrer? A pergunta é por que, ou por quem, eu me sacrifico. A palavra sacrifício tem a mesma base etimológica do termo sagrado. Aquilo que é sagrado para mim são as pessoas mais próximas. Aquelas que dividem um espaço tangível na minha experiência vital: meu irmão, meu filho, minha mãe, meu professor. Na época moderna, por ser vertical, nós admirávamos pessoas como Winston Churchill, John Kennedy, Juscelino Kubitschek. Admirávamos os grandes homens. Se bem que é verdade que o Brasil nunca admirou muito ninguém. O brasileiro nunca se tomou muito a sério, o que faz com que este seja um a país pós-moderno por excelência.
Essa mudança na forma de admirar também altera a atitude das pessoas? Sim. As pessoas, principalmente com mais de 40 anos, mediam as suas atitudes para saber se elas estavam mais próximas ou distantes da pessoa admirada. Se você educar um menino do século 21 a partir desses moldes, ele vai achar graça.
O mundo de hoje não tem lugar para esse tipo de admiração vertical e distante.
Como as empresas entram nesse cenário? Mal, mal, muito mal. Elas cometem erros básicos. Ainda acham, por exemplo, que a amizade pode ser uma coisa perigosa. Na verdade, é o contrário. Como vimos, ela é um valor fundamental nesta época. Antes, quando você indicava uma pessoa para um posto no trabalho, dizia: “Ele é um cara bom e não porque é meu amigo”. Hoje, as pessoas dizem: “Ele é bom e, além do mais, é meu amigo”. Não há problema nessa relação de amizade e nem todas as empresas perceberam essa mudança como parte de uma alteração maior. Hoje, como eu disse, vivemos em período mais flexível, com menor padronização. Por isso, ele se torna incompleto. A subjetividade surge como um recurso importante para completar este mundo. Daí, a importância dada à amizade. Este momento que vivemos é muito mais da razão sensível do que da razão asséptica.
Quais os outros problemas das empresas? Elas tentam criar uma imagem de meninas bem comportadas de uma forma equivocada. É por isso que os seus princípios — missões, valores e códigos de ética — são genéricos. Todos dizem que se trata de uma companhia sustentável, que respeita a competição ética, além dos funcionários e do meio ambiente… Esses documentos corporativos usam termos padronizados. Assim, todos parecem iguais. Mas isso dá uma impressão de falsidade. Depois, os executivos perguntam: “Por que não temos aderência? Por que perdemos tantos funcionários?”. Ora, quem acredita nesse tipo de coisa? Ninguém. Nem eles mesmos.
O que fazer? Como melhorar esses códigos de ética? Estamos em um mundo novo, com novos sintomas, mas utilizando velhos remédios. Essa é a pior coisa a ser feita. Você vai dormir tranquilo, achando que está medicado, mas é o contrário. O problema continua lá e só está aumentando. As empresas devem falar mais ao desejo e menos à necessidade das pessoas. Elas têm de dar menos valor às histórias gloriosas e acentuar as histórias singulares. Os códigos de ética têm de ser mais parecidos com pactos, nos quais os funcionários vejam representado o mundo atual e não o mundo anterior, que era de caráter disciplinador.
As empresas precisam ir para o divã? Sim. Eu concordo com o jornalista Zuenir Ventura. Ele disse recentemente que a sociologia não dará mais conta da nossa sociedade. A psicanálise, por sua vez, é uma teoria mais forte para entender a época atual. Nós temos uma prática bastante consistente e estabelecida conceitualmente para não nos apavorarmos diante do mundo incompleto. Inconsciente, aliás, quer dizer aquilo que eu não sei. O mundo de hoje funciona através de mecanismos incompletos.
Quais os outros erros das empresas? Vejo que, às vezes, as empresas não entendem qual é o produto que realmente têm. O iPhone, por exemplo, não foi exposto por Steve Jobs como uma máquina. Ele foi apresentado ao mundo como uma interface. Com isso, deixou de ser um objeto de consumo. Ele se tornou uma referência cultural. Uma empresa não sobreviverá por muito tempo se não for uma editora de cultura. E não estou falando de patrocínio de cultura. Isso é outra coisa. As empresas têm de descobrir qual é a maneira que os seus produtos alteram o contexto de nossas vidas. É isso o que devem enfatizar.
O senhor disse que o software criado por Freud não dá mais conta da sociedade. Isso
também tem a ver com a pós-modernidade? Sim. Freud criou um software maravilhoso. Muito melhor do que o do Bill Gates. Pelo menos, durou cem anos. Ele precisava entender de que maneira o homem estava articulado com o mundo. Captou a estrutura da organização humana da sua época. Percebeu que ela era piramidal. Colocou a mãe, do ponto de vista metafórico, como aquilo que quero alcançar. E colocou o pai como o percurso. Tudo isso com uma simplicidade inacreditável. Ele nos convenceu de que éramos edípicos, que a verdade humana era edípica. Agora, isso mudou.
Como? Antes, eu buscava, na minha condução analítica, interpretar a posição edípica das pessoas. Com isso, elas ficavam sabendo mais de si mesmas. Hoje, essa passagem também existe na análise, mas há algo mais importante: tentar saber agir frente aquilo que não se compreende. Não vivemos mais em uma sociedade iluminista. Está é uma sociedade que funciona por meio de monólogos articulados e não de diálogos.
O senhor pode citar um exemplo? Nas manifestações de rua do ano passado, todos ficaram loucos para entender que diabo era aquilo. E não tem nada para entender. Aquilo era um diabo mesmo. Era tudo multifacetado. Não havia uma bandeira de luta. Não adianta tentar entender aquelas manifestações como os protestos de 1968. Aliás, hoje, as pessoas não perguntam mais se os outros estão compreendendo os seus pontos de vista. Elas perguntam se aquilo que faz sentido para mim, também faz para você. E não se trata do mesmo sentido para ambos. Daí o surgimento de termos como “tá ligado?”. Ele questiona se houve um sentido compartido. Não se existiu uma significação comum. É isso o que está na essência da chamada sociedade viral. As empresas também não sabem trabalhar nesse ambiente. Estão reagindo e insistindo com modelos do mundo anterior porque se sentem mais seguras. Ficam inseguras quando se tira o padrão. Elas adotam palavras do mundo pós-moderno e agem como antes. Precisam fazer essa passagem paradigmática.
Mas as manifestações de 2013 não mostram que as pessoas buscavam uma liderança? Não havia um anseio pela velha verticalização? Só conseguimos entender a organização por meio da figura do líder, aquele que conduz uma série de pessoas que dão a ele esse papel. Esse é o modelo anterior. O novo modelo de líder não é esse. É de uma pessoa que cause em você mais um desejo e menos que explique para você como lidar com uma necessidade. Observe, durante os protestos, o governo tentou responder àquelas pessoas por meio do discurso da necessidade. Ele dizia: “Ah, vocês querem que o preço das passagens de ônibus diminua? Está bem”. Mas não era isso que estava em jogo.
E como o governo deveria responder? Mas a questão é justamente essa. Não se trata de responder. É preciso interagir. Nós ainda estamos presos a modelos antigos. Observamos um problema e tentamos encontrar uma solução. Não é isso. Neste caso, é interessante observar como as mulheres agem. Elas são muito mais pós-modernas do que os homens. Quando uma mulher traz um problema, o homem já pensa em sugerir uma solução. Diz: “Ligue para o marceneiro, para o encanador, faça isso, faça aquilo”. Mas ela não quer uma solução. Ela quer expor o problema. Estamos agindo como homens que não conseguem lidar com a queixa feminina. A pós-modernidade tem um quê de queixa feminina. Ela não tem, necessariamente, um objeto definido. Com ela, muitas vezes, o mais importante é interagir. Não solucionar.