O verso de Arthur Rimbaud aponta à forma de se proteger da epidemia de invasão da privacidade
Jorge Forbes
Como se defender frente a invasão tecnológica de nossas intimidades? Como se proteger dos olhos e das orelhas espalhados por todo canto, gulosos de lhe conhecer em detalhes? A profecia de George Orwell, em seu livro 1984, se concretizou. O “Grande Irmão” nos assusta tal qual um superego tirânico, coletivo e sorrateiro sempre preparando uma acusação de um delito que será logo revelado ao mundo. Em vista disso, assistimos à multiplicação de defesas: vidros escuros, detectores de metais, hackers do bem, criptografias, senhas e mais senhas, condomínios fechados e muitas mais. Ao contrário de Caetano Veloso, que pede “não se esqueça de mim, não desapareça”, tudo o que hoje pedimos é: esqueça.
Ainda recentemente, sobre isso, o Direito ao Esquecimento foi julgado no Supremo Tribunal Federal. O voto do relator, ministro Dias Toffoli, contra esse Direito, foi acompanhado por todo o plenário com uma só exceção. Vale a pena a leitura do voto que aponta o risco de apagarmos a história se aceitarmos tal Direito.
Que saída então podemos encontrar para o íntimo de nós mesmos não ser violado? Precipitando a resposta diria com o verso de Rimbaud que uma vez que “Eu é um outro”, tudo o que de mim captarem será sempre de um outro.
Esclareço. Muito além de discussões ministeriais sobre a cor do cobertor que envolve um recém-nascido, o processo de humanização se dá pela história familiar que nos acolhe. Peguemos um exemplo simples, o nome de uma pessoa. Que o leitor se pergunte por que se chama José, Maria, Silvio ou Ana. Rapidamente se dará conta de como a sua identidade foi construída a partir do outro. Vejamos uma experiência comum à grande maioria das pessoas. Quando Maria atinge os 2 anos, ela pede para sua mãe: “Maria quer água.” A mãe, julgando que sua filha já está grandinha, lhe contesta: “Minha filhinha, você não deve dizer Maria quer água, mas, sim, eu quero água.” Maria responde: “Você também quer água, mamãe?”. E aí Maria recebe a interpretação crucial: “Não, minha filha, você tem que entender que eu é você.” Assim surgimos como um eu num lugar de um outro, dando razão ao poeta: “eu é um outro”.
Compreender esse fato não é difícil, espero. O difícil é abrir mão da dependência do olhar do outro, da aprovação do outro, do aplauso do outro. Esses fatores fazem com que acabemos dando consistência a olhares e escutas perversos. Parodiando Disraeli, se conseguirmos seguir o conselho “Não se explique, não se justifique”, mostraremos que o que a tecnologia capta do eu é só espuma.
Artigo publicado originalmente na revista HSM, edição 145.