Jorge Forbes
Entendo a queda do falocentrismo, tema deste Encontro, para o objetivo desta comunicação, como a mais importante revolução do laço social dos últimos 2800 anos, a contar de Homero. Tivemos três longos períodos éticos que nos antecederam, a saber: cósmico, tendo como transcendência a natureza; religioso, tendo como transcendência o Deus; e razão, tendo como transcendência o saber. Embora em cada um desses períodos o elemento da transcendência mude: natureza, deus, razão, não muda a arquitetura vertical, em nosso linguajar: a arquitetura falocêntrica.
A queda do falocentrismo tem necessariamente consequências clínicas. Cito duas. Em uma clínica no padrão fálico, a pessoa se pergunta o que a impede de alcançar o objetivo bem determinado. Ou seja, ela sabe onde quer chegar e, não conseguindo, se pergunta sobre o que a impede. Já na clínica, do Século XXI, pós padrão vertical, a pergunta é outra. Não se tem mais um objetivo bem claro, existem inúmeras possibilidades e a pessoa vive a angústia de qual escolher. Se ela tem dez opções, ao escolher uma, a única certeza que tem é que perdeu nove.
Outra consequência importante é a dificuldade de se chegar a uma verdade segura. “Trata-se na psicanálise de fazer verdade daquilo que aconteceu” diz Jacques-Alain Miller, na aula 12 (18/3/2009) de seu curso Coisas de Fineza em Psicanálise. “Existe o que faltou em se fazer verdade, os traumatismos, o que fez buraco – o que Lacan tardiamente batizou de ‘troumatisme’ (neologismo que junta buraco e trauma em uma só palavra)… A análise seria a chance de retificar o que foi dito erroneamente.” Seria um dizer verdadeiro.
Ocorre que sempre o analisando se depara com um indizível, com um impasse. Em síntese, não existe verdade sobre o gozo (JAM). Freud já tinha se dado conta disso, é só verificar seus últimos textos tais como O Esboço, ou Compêndio da Psicanálise e Análise Terminável e Interminável. Nos dois ele cita os limites do analisável no protesto masculino e na inveja do pênis. Seriam resíduos intermináveis do processo analítico.
É sobre o impasse freudiano que Lacan propõe uma passagem, um passe que leva o analisando a uma verdade mentirosa, mentirosa sobre o gozo (JAM). Verdade mentirosa, mas operativa. Se no registro da verdade do desejo teríamos o insigth, o ver dentro, a revelação, no nível da verdade mentirosa do gozo teríamos a reengenharia. “O sinthoma, isso funciona, não é susceptível de travessia ou de revelação, ele é susceptível, diria…, de uma re-engineering, de uma reconfiguração … … que permite passar do desconforto à satisfação.”
Em meus termos, vamos, na clínica, do Freud explica ao Freud implica.
Estamos, portanto, habituados na nossa experiência psicanalítica a lidarmos com um mundo incompleto, onde sempre existe uma zona opaca a qualquer desciframento ou ideal de transparência.
Não é o que ocorre em geral nos tempos atuais das fake news, algoritmos e da pós verdade. O fenômeno das notícias falsas não é uma novidade, o que é novo é sua quantidade colossal facilitada pelos meios digitais de comunicação associado a uma TerraDois, a um mundo pós moderno, no qual a falta de padrões verticais estáveis possibilita a experiência profética de Nietzsche de que não há fatos, mas só versões. A sociedade clama por verdades estáveis, garantidas e claras, tal qual um analisando o faz ao se deparar com a instabilidade da verdade mentirosa, que exige um tipo especial de responsabilidade frente ao acaso e à surpresa, que se consegue em uma análise.
Para examinar esse aspecto é interessante ler as cartilhas de bom comportamento que infestam as empresas nessa febre atual de mecanismos de compliance, ou seja, de estar de acordo com as regras.
Ilustro com as dez regras que a Odebrecht estabeleceu para seu funcionamento, recentemente, após o escândalo de suas práticas comerciais duvidosas:
O esforço é válido, como não apoiar, porém sabemos que esse tipo de atitude, diríamos super-egóica, é para inglês ver, ou melhor, para americano ver, pois dada a regra, abre-se o caminho para o perverter da regra.
As fake news vão diminuir? Não acredito, ao contrário, pelas razões já citadas só tendem a aumentar. As tentativas de regramento impeditivo, como nesta semana Macron propôs na França, são semelhantes aos esforços empresariais de compliance. Parece-me que a solução é aprendermos a viver em TerraDois, temos que aprender a calcular a vida com o indizível, o que faz legitimarmos que o mundo é incompleto e não transparente e completo. Verdade mentirosa não é verdade falsa, fake news. Bem escreveu em sua tese de docência o jurista Miguel Reale Jr.: “O preço da liberdade não é a eterna vigilância, o preço da liberdade é o eterno delito”.
Estou convencido que podemos contribuir com o momento atual da sociedade através do nosso hábito de lidarmos com uma realidade humana incompleta no sentido que a verdade, como dizia Lacan, não se diz toda não por não se querer, mas por ser impossível dizê-la toda.
Dou três exemplos nos quais participei, guiado por essas considerações.
“TerraUm é passado.
Hoje, vivemos em TerraDois!
Em TerraDois os padrões estão diluídos.
As referências são múltiplas e se contrapõem.
Sociedade horizontal.
Sem valores hierárquicos.
Informação difusa.
Não há espaço para explicações formais.
Nesse mundo em transformação, diz ele: “O líder atual é o melhor articulador das diferenças, e não guia de um caminho único”.”
Concluo, parodiando Picasso: o fato de uma realidade incompleta, das diferenças singulares, da informação difusa ter sido tão bem absorvida por essas pessoas, mostra que o Real é transmissível e que podemos avaliar a importância dos praticantes da psicanálise, na legitimação de uma reengenharia de gozo nesses novos tempos tão criativos e tão desbussolados.
Para que isso ocorra, é necessário que abandonemos a confortável ética do medo, preconizada por muita gente boa, entre outros, por Hans Jonas. Medo que nos assalta a cada instante; medo do sexo, do glúten, da camada de ozônio, das redes sociais, das fake news, dos algoritmos, da inteligência artificial, etc, etc. Temos que estabelecer, na contracorrente do medo, uma ética da responsabilidade criativa: Invenção e Responsabilidade, para um mundo incompleto.
Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2018