por Jorge Forbes
VII Congresso Brasileiro de Direito de Família
Belo Horizonte, 28 de outubro de 2009
As contribuições da psicanálise ao estudo da família que ainda estão sendo utilizadas por médicos, pedagogos e juristas envelheceram. Elas datam de um mundo que está deixando de existir, foram muito úteis, se nos basearmos na popularidade alcançada, mas são fracas para as questões fundamentais da família atual, a do início do século XXI.
A família de hoje se diferencia em um aspecto fundamental da família de ontem: ela é fruto de uma era onde o laço social é horizontal, enquanto, na anterior, era vertical. Na língua da psicanálise de orientação lacaniana, isso se traduz dizendo que saímos de um tempo da supremacia do simbólico e passamos para a supremacia do real. Explicarei.
O mundo anterior do qual estamos nos despedindo, organizava o laço social em torno a símbolos maiores: na família o pai; na empresa, o chefe; na sociedade civil, a pátria. Medíamos nossa satisfação pela proximidade que conseguíamos dos ideais propostos, para isso seguíamos uma disciplina estabelecida em protocolos e procedimentos. Como o mundo era padronizado, o futuro podia ser previsto. Isso ficava claro na forma com que os pais falavam com os filhos, que seguia o modelo básico da implicação “se, então”: -“Se você não fizer tal coisa, então você não terá um futuro seguro e feliz”. Seguro vinha antes do feliz, quando não era o seu sinônimo.
Nesse tempo, que não vai tão distante assim, pois não faz mais de quarenta anos, a psicanálise contribuiu com a idéia fundamental do diálogo, que propiciou o famoso “conversando a gente se entende”. O poder quase tirânico dos pais de gerações anteriores foi substituído pelo pai amigo, compreensivo, próximo. Esse modelo foi exportado para o professor, para o médico, não tanto para o juiz. Dele surgiram práticas sociais de uma escola mais democrática, cujo maior símbolo foi Summerhill e de uma medicina paradoxalmente humanizada, como se outra houvera. Tudo era conversado, em alguns casos até demais. Lembro ter acompanhado em análise uma filha sufocada por uma angústia causada pelo conhecimento das escabrosas aventuras sexuais de sua mãe, que tudo tinha lhe contado, entendendo que esse era o correto procedimento de uma mãe amiga. Talvez assim tenha sido cunhada a expressão: mui amiga…
Sofremos uma revolução no advento da globalização, perdemos o norte, a bússola, surgiu o Homem Desbussolado e com ele novos sintomas que não passam pelo circuito da palavra. Ficando só em alguns exemplos mais frequentes, comecemos pelo fracasso escolar. Diferenciamos “fracasso” de “rebeldia escolar”. Se antes o aluno contestava a escola, propondo outra coisa, hoje, ele desconhece os valores da escola. Ameaças desesperadas de um professor frente a uma prova entregue em branco: de que o aluno não vai passar, que vai ficar de recuperação, que não vai conseguir o vestibular, que não vai entrar na faculdade, são recebidas pelo aluno com uma indiferença olímpica, quase com comiseração pelo desafortunado mestre. As agressões inusitadas, outro sintoma atual, apavoram mais pela surpresa que pela própria violência. Pais aflitos me contam que seu filho de 15 anos, que sempre foi um jovem como todos os outros, pôs fogo na escola. Demoro um pouco a entender que não tinha sido um fogo em uma lata de lixo, ou em uma cortina, não, ele havia posto fogo na escola toda, ela não existia mais, tinha virado cinzas. Até o incêndio, um menino como outro qualquer, depois do incêndio, um menino como outro qualquer. Nenhuma marca do ocorrido, nada além de um “que pena”. Inútil nos valermos, para diagnosticar, das antigas categorias, nesse caso da perversão, elas não lêem esses fenômenos atuais. Ainda um exemplo: as drogas. O uso das drogas não constitui uma novidade e sim a forma epidêmica de seu emprego, compreensível se levarmos em conta que elas são receptores universais, que servem a qualquer tipo de tomada, e há muito fio desencapado atualmente.
Tudo está perdido? Não. Se há motivos pelos quais nos preocupar, há também soluções e essas vêem do mesmo terreno de onde surgem os problemas. Se a questão óbvia do Homem Desbussolado é a de como se orientar, vamos examinar o que tem a capacidade de organizar uma imensa quantidade de pessoas, que se aglomera em torno à música eletrônica. Não façamos como a maior parte dos amantes da bossa nova que nessa música só escutam um bate-estaca insuportável; lembremos do exemplo de Fleming que viu a penicilina onde outros só viam bolor. O interessante é nos perguntarmos como uma música que não tem sentido literalmente, que não tem letra, que se diferencia pelo número de batidas por minuto entre seus estilos: house, garage, trance, consegue transformar o show de Frank Sinatra no Maracanã, para 180.000 pessoas, em encontro intimista, uma vez que uma Techno-parade aglomera dois milhões e meio, três milhões de participantes, dançando juntos, sem se entenderem, sem cantarem um jargão comum, sem um barquinho que vai e vem, sem se perguntarem se você quer ser minha namorada, oh que linda namorada você poderia ser. Não dá para dizer que se trata de três milhões de autistas, claro que não. Possivelmente esses moços demonstram a possibilidade de estar junto sem se compreender, “tá ligado?”, no qual o “tá ligado” não é uma falta de algo melhor para dizer, mas aponta a essência do laço social na pós-modernidade: os “monólogos articulados”, permitam-me assim chamá-lo.
Monólogos articulados, portanto, tomam o lugar dos diálogos compreensíveis, em nossa época. Isso também explica, a meu ver, o exponencial crescimento do Twitter: mais de cinco milhões de usuários no Brasil, nos últimos três meses, e é só o começo. Vivemos em uma Agora eletrônica, encontramo-nos nessa praça aberta pelo tempo de um tweet, de um pio, tá ligado? O fundamental passou do raciocinar, típico da supremacia do simbólico, já referido, tão caro aos iluministas, ao ressoar. Alguém diz algo que ressoa, ou não, em outro alguém, que toca, que abre novas perspectivas: invenções do que pode ser, não do que já foi.
Em uma sociedade plana, horizontal, a satisfação humana não é dada por cumprir bem uma tarefa, pois não há modelo fixo que defina o que é o cumprir bem. Essa época exige um triplo movimento: inventar, responsabilizar, publicar. É o que faz o artista: vê algo único, se responsabiliza pelo que viu – os girassóis de Van Gogh, as bandeirinhas de Volpi, a Banda do Chico, os meninos do cais de Salvador, de Jorge Amado – e publica sua visão, correndo o risco da boa ou má repercussão. É uma responsabilidade ética, enquanto do particular, não moral, pois não se adéqua a qualquer modelo de comportamento.
Nesse movimento, a família ganha novo status. Em vez de ser o lugar onde se ganha coisas: semanadas, carros, presentes os mais diversos, o que se ganha mesmo, a maior herança é a castração, um dos nomes do real. Em algum lugar Lacan chegou a dizer que não adianta a ninguém trocar de família, especialmente de pais, imaginando que terá seus problemas resolvidos. Eles reapareceriam iguaiszinhos se isso fosse possível. Família é daquilo que todo mundo se queixa – boa definição – e se o fazemos é porque ela não oferece o que dela, especialmente dela gostaríamos de receber: o nome do desejo. Isso fica mais evidente em um mundo despadronizado. Insisto, seja ela como for constituída: por cama, ou proveta; hetero ou homosexual; parceira ou monoparental, família é a instituição humana que tem a capacidade de fazer com que nos confrontemos ao real da nossa condição: a falta de uma palavra já pronta, prêt-à-porter, que nomeie o desejo de cada um.
É para um mundo sem orientação standard que discutimos Família e Responsabilidade, tema desse VII Congresso Brasileiro de Direito de Família, a cuja coordenação agradeço o convite para fazer essa conferência de abertura.
Qual Família e qual Responsabilidade? Impõe-se a pergunta. Uma família que nos depare com a “ miséria criativa” da condição humana – miséria de sentido, criativa de invenção – e uma responsabilidade não frente ao conhecido, ao que deveria ser; não uma responsabilidade do controle e da disciplina, que chegou a inspirar Freud no conceito de superego, mas um novo tipo de responsabilidade frente ao acaso e à surpresa. Saímos da época do Freud explica e entramos na época do Freud implica.
É curioso ver as tentativas desesperadas daqueles que de alguma forma querem recuperar o sentido perdido da era anterior, não suportando estarem ligados no ressoar dos sentidos múltiplos. Acabam divinizando a matéria ou o espírito, aliás, como se essa dicotomia ainda fosse válida. Na matéria, assistimos o endeusamento da biologia, especialmente as pesquisas do genoma, esperado como se fosse uma astrologia científica, os genes, agora, nos papéis antes dados aos astros celestes na determinação das vidas. O genoma seria a nova carta astrológica com sanção científica, curioso. Por outro lado explodem desde movimentos fundamentalistas religiosos – em todas as religiões, não somente nos risíveis e preocupantes exorcismos televisivos de nossas madrugadas – até os mal chamados livros de “auto-ajuda”, que infestam as prateleiras das livrarias dos aeroportos e das rodoviárias.
Nessa paisagem, o tema Família e Responsabilidade, que será discutido aqui nesses dias, é crucial.
Se conseguirmos uma Família que suporte e transmita o fato – claro à nossa sensibilidade, obscuro à nossa compreensão – que para estarmos juntos, para nos amarmos não precisamos nos compreender, faremos que o Homem Desbussolado deixe de temer o século XXI. Não há nada a se compreender na delícia de um banho de cachoeira, na preocupação de um pai com um filho, na declaração de amor: Eu te amo. Não há nenhum por que, e se fosse explicado, perderia o sentido do afeto. Uma frase de união de um casamento poderia ser: “E que fiquem juntos até que a compreensão vos separe”. Não se pode entender o amor, motivo de ter pensado como título dessa fala: “Família, um amor sem palavras”, para explorar todas as possibilidades da polissemia dessa expressão.
Se um dia a psicanálise promoveu o diálogo compreensivo e humanizador, as mudanças dos tempos nos exigem um esforço a mais no sentido de uma renovação ética.
Em passeio por alguns autores que se debruçaram sobre essa questão, vejam o que encontrei. Em Luc Ferry, ao defender, recentemente, em seu livro “Famílias, amo vocês”, a idéia aparentemente contraditória de uma transcendência na imanência, ele escreve: – “ Ora, o humanismo pós- nietzschiano que proponho se baseia na constatação de uma exterioridade ou transcendência radical de valores, esse humanismo afirma que elas não se manifestam em nenhum outro lugar a não ser na imanência da consciência. Eu não invento a verdade, a justiça, a beleza ou o amor, em os descubro em mim mesmo, mas, entretanto, como algo que me ultrapassa e que me é, por assim dizer, dado desde fora, sem que eu possa identificar o fundamento último dessa doação”².
Já Giorgio Agambem, em suas “Profanações”, aborda esse ponto pelo viés da “Magia e Felicidade”, provocando: “Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!”³.
Faz-se necessário entender tamanho ataque ao senso comum, que questiona os princípios elementares da educação das crianças e a boa postura dos adultos. Para tanto, reproduzo um pequeno trecho de trabalho anterior (4). A resposta está no fato de que: “Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor”. (5) Dois aspectos são aqui relevantes: primeiro é que felicidade não progride, nem se acumula, pois se assim fosse acabaríamos estourando em sua plenitude. Pensar então que hoje somos mais felizes que nossos antepassados é tão falso quanto o contrário, que ontem é que era bom, como insistem os saudosistas. Segundo, a felicidade se dá no acaso, no encontro, na surpresa, daí dizer que ela foge à consciência, que ela é uma magia. À sua maneira, Agambem trata da transcendência na imanência, proposta por Luc Ferry.
Isso nos leva a Hans Jonas, no seu fundamental estudo “Princípio Responsabilidade”. Atenção, Princípio Responsabilidade e não “da” Responsabilidade. Princípio Responsabilidade da mesma forma que dizemos Princípio Divino, ou Princípio Racional. Para ele necessitamos de uma nova ética calcada no Princípio Responsabilidade. – “Com efeito – diz ele – é uma das condições da ação responsável não se deixar deter por esse tipo de incerteza, assumindo-se, ao contrário, a responsabilidade pelo desconhecido, dado o caráter incerto da esperança; isso é o que chamamos de `coragem para assumir a responsabilidade´” (6).
Finalmente, como soe acontecer, Jacques Lacan. Uma sentença esclarece sua posição: “Por nossa condição de sujeito somos sempre responsáveis” (7). “Sempre” diz ele, não de vez em quando, ou dependendo da intenção, do conhecimento, ou de qualquer outra variável. Se o sujeito é sempre responsável, não haverá sujeito sem responsabilidade. Isso abre uma interessante questão para os advogados: -“Como separar o responsabilizar do penalizar?” Em psicanálise é o que fazemos quando, nos tempos de hoje do Freud implica, levamos o analisando à conseqüência responsável do que diz. Alguém pode, por exemplo, em uma sessão de segunda-feira, dizer que ficou pensando no fim de semana e que concluiu ser: – “Um péssimo marido, um pai meia boca e um amante infeliz”. O analista contrariando expectativas clássicas de relançamento de discurso, do gênero: – “ O que o levou a essa conclusão?”, simplesmente diz: – “ O fato do senhor dizer que é um péssimo marido, um pai meia boca e um amante infeliz, não diminui em nada o fato que o senhor seja um péssimo marido, um pai meia boca e um amante infeliz”. Essa intervenção é surpreendente para os muitos que estão habituados a pensar que somos irresponsáveis frente ao inconsciente, haja vista a consagrada expressão de desculpas: – “Só se foi o meu inconsciente”. Pois bem, o homem desbussolado continuará sem rumo se não lhe oferecermos a responsabilidade frente ao acaso, a surpresa, enfim, frente a seu inconsciente, e a família é aí o forum privilegiado, diria mesmo, essencial. Lacan apostava que seria possível tocar no ponto íntimo de vergonha do analisante; não vergonha social frente ao outro, mas uma vergonha íntima sem a qual a vida fica nua, sem qualidade, desqualificada. A família é a primeira intimidade de cada um, sua “extimidade”, se preferirmos o trocadilho de Lacan. A família funda a extimidade de cada pessoa.
É por esse caminho que seguem nossas atuais reflexões sobre Família e Responsabilidade, no domínio da psicanálise. Será que elas podem ser úteis em questões como a que hoje espera decisão no STF, do julgamento de um pai ausente? Espero que elas renovem uma antiga história de colaboração de advogados com psicanalistas. Aliás, uma curiosidade: Freud estava em dúvida até o último momento se cursaria direito ou medicina, tendo finalmente escolhido a medicina e criando a psicanálise para advogar a causa do sujeito do inconsciente, o desejo, dando-lhe cidadania.
Muito obrigado.
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