por Jorge Forbes
Acabaram com as nossas
quartas-feiras de cinzas. Aquelas nas quais não se ouvia mais cantar canções e ninguém passava mais brincando feliz. Atualmente as quartas-feiras são utilizadas para as batalhas ruidosas das apurações das escolas e, logo em seguida, prossegue a folia no desfile das campeãs. Acabou? Não! Inventaram as micaretas, nome alusivo às festas no meio da quaresma. Acabou? Não! Daí vem o sábado de aleluia, as festas juninas e festas e mais festas o ano todo, sem
parar, sem relaxar, sem silenciar. Pule, pule, saia do chão é a ordem nesses tempos em que vivemos uma epidemia festiva.
Tristes tempos estes nos quais a alegria é obrigatória. Nada é suficiente. Mais, mais, mais, só paramos na exaustão, ou quando um acidente nos para. Mais, vamos, além do limite, não há limite. Talvez o céu para os piedosos; o inferno, para a maioria.
Se a balada está lotada, mais, empurrem, sufoquem. Se a garrafa acabou, mais, vamos, bebam, brindem, festejem.
Se o carro está rápido, mais, depressa, corram, não importa a estrada.
Se alguém lhes chateia, deletem. Se o curso está aborrecido, mudem. Se o livro é grosso, saltem as páginas.
Se o amor não corresponde, desamem imediatamente.
A ordem é uma só: prazer a todo custo, inconsequente, superficial, fugaz, mas prazer.
Acabaram não só com as quartas-feiras de cinzas do poeta, como também com todo o aparato social de elaborar a morte, por conseguinte, os limites. Findo o carnaval – continuando no exemplo – começava a quaresma, os jejuns, os santos cobertos de roxo nas igrejas. Independentemente do credo de cada um, ou do não credo, a sociedade estipulava rituais coletivos de enfrentamento da morte, em relação aos quais era difícil ficar indiferente.
E agora, como suportar essa época de folia obrigatória, de excesso, de desmedidas? Bem, agora, não adianta esperar que o limite venha de fora de si. Pobres dos que puxam e repuxam a pele na ânsia de uma juventude perdida e o que encontram é uma maturidade bizarra, falando gentilmente. Até onde a pele estica? Até a exposição do ridículo.
Os moços tentam elaborar o limite testando o corpo. É o que explica a febre dos esportes radicais. No mar, na terra, no ar: kitesurf, escalada, paraglider. Não são remédios acessíveis aos mais velhinhos. Como saber parar sem ter que subir o Everest? Isso é um problema atual. Sua resposta pode nos liberar da obrigação insana do prazer das festas pelas festas.
A psicanálise tem uma resposta. Na ausência do limite vindo do outro – como foi para os nossos pais, quando era mentira que nossa raiva poderia destruir o mundo, hoje, sim, é verdade – na ausência de um basta exterior, o que permite nos orientar é o desejo. Muito difícil saber o que se deseja, mas fácil perceber que não é qualquer coisa. O desejo não é glutão, não se alimenta de indiferenças. Todo o desejo é desejo de alguma outra coisa, de uma coisa que desacomoda, que nos tira da área de conforto. Se não vemos o objeto de desejo diretamente, à luz do dia, notamos
sua presença no sentimento da força estranha, maior que nós mesmos, que nos habita exigindo uma resposta criativa e responsável. Nada a ver com o mais-mais enlouquecido das obrigações hedonistas, o objeto do desejo é fruto de lenta depuração. Ele é pontual, silencioso, preciso, delicado, refinado, instigante. Não se resolve no carnaval das mortalhas genéricas, mas nas escolhas uma a uma. Mas, repito, ele nos tira das nossas áreas de conforto. Donde a pergunta que já me valeu um livro: você quer o que deseja?
(publicado originalmente na Revista IstoÉ Gente – fevereiro 2013)