/O homem que tudo explicava

Por Jorge Forbes, para o Valor

No divã de Freud, o homem moderno começou a entender as motivações que justificam certos compartamentos (na foto, a peça exibida no Museu Freud, de Londres)

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20/4/2006

Ficamos tão fascinados com o famoso “Freud explica” que não percebemos o óbvio: que sua imortalidade, comemorada nestes 150 anos, vem do fascínio exatamente do que ele não explica, do que ele apontou como inconsciente: da satisfação humana que não tem uma explicação geral. Médico neurologista, no seu começo de carreira logo viu que a alegria e o sofrimento eram experiências muito singulares em cada paciente – e nunca evidentes. Pouco adiantava tentar provar para aquela pessoa que não tinha nada, quando ela se queixava de uma dor insuportável; e que uma outra, ao contrário, que obtinha enorme prazer de algo banal, teria um erro de hierarquia. Freud, em vez de impor protocolos de conduta a seus enfermos, rendeu-se ao que a clínica lhe mostrava: não existe uma maneira correta de ser feliz, de fazer amor, de ter sucesso, de se alimentar, de pensar. Conclusão: viver para ele é se responsabilizar pelas escolhas, às quais nenhum livro de auto-ajuda, reza ou pesquisa científica pode poupar.

Esquisito animal esse ser humano que cisma em estar em perene e inquietante mutação. Por que não ser como uma vaca, ou um rouxinol – pensava John Keats -, ou um camelo? Afinal, vacas, rouxinóis e camelos não duvidam do que são, do que querem, do que fazem. Nada mais parecido com uma vaca que uma outra. Homens, não. Homens e mulheres têm que ser contados um a um, e isso por quê? Pela singularidade do desejo, como diria o poeta, pois para o homem todas as formas de amor valem a pena desde que se responsabilizem pela forma escolhida; é o problema que está na base da angústia.

Para evitá-la, a angústia, uma maneira é se valer de um programa que garanta uma conexão com o mundo, com esse mundo do qual Carlos Drummond de Andrade, vendo-se excluído, afirmou que mesmo se mudasse de nome para Raimundo, para ficar mais parecido e perto, nem assim seria uma solução, uma vez que o coração, o desejo, aponta para algo sempre mais vasto.

Freud descobriu um programa fantástico, um software diríamos mais tecnologicamente, e o chamou de complexo de Édipo. Muito melhor que os “softs” atuais, que rapidamente ficam obsoletos, o complexo de Édipo funcionou muito bem por praticamente cem anos. A tal ponto foi o seu sucesso que passamos a acreditar que o laço social era naturalmente edípico. Ainda hoje neurocientistas tentam provar as localizações cerebrais do Édipo e das instâncias psíquicas freudianas. Um deles, outro dia, estava feliz por pensar que o id estaria perto do sistema límbico e que um remédio seria possível de ser sintetizado para tratá-lo quimicamente; provavelmente com o nome comercial de ID-ota.

Dizia que, por muito tempo, entendemos o comportamento humano pela ótica edípica: o menino vai mal na escola, é disputa com o pai; a menina está com espinhas, é vergonha da sexualidade; a mulher está frígida, é trauma do primeiro relacionamento; e também: o presidente se esborrachou? Arruinado pelo êxito.

Sim, Freud explicou como fazíamos para administrar o encontro com o novo, com a surpresa, com o “mais forte que eu”. E se Édipo funcionou tão bem foi porque ele teve a genialidade de captar que o laço social na modernidade, onde nasceu a psicanálise, era vertical. Na família, a ordem do pai; na empresa, o modelo do chefe; na sociedade, o amor à pátria. Esse mundo está deixando de existir; a globalização privilegia as ligações horizontais, a multiplicidade de ideais no lugar de alguns poucos e consagrados. A psicanálise de hoje vai além do Édipo, precisa de uma nova topologia para tratar do habitante do século XXI, como anunciou Lacan.

Isso quer dizer ir além de Freud? Não, o que quer dizer é a obrigação de radicalizarmos a sua descoberta da falta de padrão da satisfação humana. Não existe mais roupa pronta para vestir nessa nova era, a questão não é saber mais sobre si mesmo para garantir uma ação sem risco, como pensávamos, mas, ao avesso, fazer análise hoje é poder precipitar o tempo da decisão, não se afogando na angústia paralisante. Toda decisão é precipitada, uma vez que sempre será incompleta, daí, inventiva.

A pergunta freudiana não envelheceu: “O que você quer?” Ser freudiano é se fazer continuador em um problema, não em uma resposta, ensinou Gaston Bachelard.

O homem de hoje, a que chamo de “desbussolado”, por ter perdido o norte do bem e do mal, fortemente estabelecidos na era anterior, vê-se frente a uma encruzilhada: recuar ou avançar? Recuar para as velhas soluções baseadas na tríplice lógica: se algo está errado é porque houve um erro de educação, de remédio ou de fé. Ou avançar para inventar uma nova sociedade na qual a orientação paterna seja substituída pelo cálculo coletivo; que a adversidade vire oportunidade; o estático se transforme em interativo; a avaliação ceda para a responsabilização; a verdade seja menos importante que a certeza; que genéricos abram espaço para talentos; enfim, que a razão asséptica se transforme em razão sensível.

Vejo aí um vasto programa para a psicanálise no século XXI: a sociedade espera uma nova estrutura, um novo software que nos permita aproveitar a liberdade da quebra de padrões e afaste a crescente onda reacionária que nos assombra.

Estaremos à altura de Freud ou, aos 150 anos ele ainda corre na nossa frente?

Jorge Forbes, psicanalista e médico psiquiatra, introduziu o pensamento de Jacques Lacan no Brasil, teve participação na criação da Escola Brasileira de Psicanálise e preside o Instituto de Psicanálise Lacaniana. É autor, entre outros livros, de “Você Quer o que Deseja?” (Best Seller)

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