/Identidades aos pedaços

Não sabemos mais quem nós somos.

Vou direto ao ponto, sem medo de dar spoiler: se formos sintetizar em uma palavra a crise tsunâmica que a humanidade vive, a palavra, a meu ver, seria “identidade”. Estamos em uma crise colossal de identidade. Identidade de raças, vejam as guerras na Ucrânia e em Gaza; identidade de opiniões, vejam as polarizações inflexíveis que levam aos apagamentos digitais; identidade sexual, vejam o império do politicamente correto; enfim, identidade das pessoas, a mais importante das crises e base de todas as anteriormente citadas.

Sim, não sabemos mais quem nós somos. Jacques Lacan começou seu longo e valoroso ensino fazendo notar que o humano se constitui no Outro, acrescentando, no Outro da linguagem. Largado à sua própria sorte, o ser humano sobrevive por poucas horas. Diferentemente dos animais que já nascem com seu destino marcado – de abelha, de vaca, de taturana etc – nós só sabemos de nós mesmos ao depois. É atrativa a maneira com que Rilke expressou esse fato: “Nós nascemos, por assim dizer, provisoriamente, em algum lugar; é pouco a pouco que compomos em nós o lugar de nossa origem, para aí nascer ao depois e cada dia mais definitivamente”.¹

A ninguém é desconhecido o fato de que uma criança quando começa a falar se refere a si mesma na terceira pessoa do singular, desde o lugar do Outro. Assim, podemos imaginar o diálogo:

– Mamãe, Antônio quer água.

– Meu filho, você já está grandinho, não é mais “Antônio quer água”, mas “Eu quero água”.

– É mamãe, você também está com sede?

– Não, meu filho. É que eu é você!

Pano rápido. Rimbaud não o diria melhor em seu verso: “Eu é um outro”.

Estamos comemorando um ano da apresentação pública do ChatGPT, consagrado, até agora, novembro de 2023, como o mais fascinante dos aplicativos da Inteligência Artificial. O ChatGPT reproduz com absoluta verossimilhança: sua voz, sua maneira de falar, seu estilo, sua imagem, a tal ponto que a pessoa se vê constrangida, obrigada a se perguntar: “Se ele sou eu, então quem sou eu? Sou aquele que não sou eu?”.

Essa revolução digital soma-se a várias revoluções anteriores, que também foram de início assustadoras. Senão vejamos algumas:

1.Revolução Copernicana. A teoria heliocêntrica de Copérnico, que colocou o Sol, e não a Terra, no centro do universo,   abalou profundamente a visão que a humanidade tinha de si mesma e de seu lugar no cosmos. Essa mudança de perspectiva desafiou crenças religiosas e filosóficas estabelecidas, gerando angústia e incerteza sobre a importância e o papel do ser humano no universo.

 

  1. Teoria da Evolução de Darwin: A teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin desafiou a ideia de que os seres humanos eram entidades únicas e separadas do resto do mundo natural. Isso causou um grande desconforto, ao sugerir que os humanos não eram criações especiais, mas sim o resultado de processos naturais longos e aleatórios.

 

  1. A Psicanálise: Freud evidencia que não somos senhores de nossa própria cabeça. Essa característica, enfileirada às duas anteriores, fez com que Freud notasse que ele revelava uma terceira ferida narcísica ao gênero humano. A propósito, seria a atual revolução da estranheza de nós próprios, uma quarta ferida narcísica?

 

  1. Revolução Industrial: A introdução de máquinas e a automação de muitos processos de trabalho durante a Revolução Industrial levaram a uma mudança dramática no modo de vida, no trabalho e na organização social. Muitos trabalhadores sentiram sua identidade e valores questionados diante das máquinas que substituíam o trabalho humano. Foi assim com os operários que, sentindo-se ameaçados, jogavam seus sapatos de madeira, seus “sabots”, nos teares mecânicos, donde o nome sabotagem; é assim com os médicos radiologistas, por exemplo, que se afligem com a velocidade, quantidade e qualidade de leitura de uma chapa de raio X pela IA.

 

  1. Desenvolvimento da Bomba Atômica: O advento das armas nucleares durante e após a Segunda Guerra Mundial trouxe a angústia existencial sobre a capacidade humana de autodestruição. A existência de armas capazes de erradicar a vida humana colocou em questão o controle moral e ético da própria humanidade sobre suas invenções.

 

  1. Avanços na Biologia Molecular e Genética: O mapeamento do genoma humano e as tecnologias de edição genética como CRISPR levantaram questões profundas sobre a natureza da vida, da hereditariedade e da identidade individual. A possibilidade de alterar geneticamente os seres humanos gera debates éticos e existenciais sobre o que significa ser humano. Há quinze anos trabalhamos essas questões que embasam a clínica de Psicanálise que criamos e dirigimos no Centro do Genoma Humano e Células tronco, na Universidade de São Paulo.

 

Em todos esses exemplos, a ciência e a tecnologia não apenas avançaram o conhecimento humano, mas também provocaram reflexões profundas sobre a natureza da existência humana e seu papel no mundo. É o exemplo gritante do ChatGPT que nos questiona na base das nossas identidades.

É curioso e mesmo patético que ao surgir o ChatGPT importantes universidades americanas tenham querido proibir sua entrada nas salas de aula, fechando a porta da classe à chave. Risível! E o que dizer que um país – a Itália – tenha querido expulsá-lo por decreto de sua peculiar Primeira Ministra?

Tenho insistido que não se defende da obscenidade das redes sociais tentando controlá-las. Urge saber e incorporar que tudo aquilo que te difama e te invade por texto, imagem, voz, não é você. Sim, não é você porque a máquina só pode operar com o transformável em algoritmo e, sendo nossa essência vazia, o vazio não é captável; ele, como o Real na definição de Lacan, volta sempre ao mesmo lugar. Deduz-se que a melhor defesa aos ataques do outro é não lhe dar consistência: não se explique, não se justifique, falaria Disraeli. Duro é abrir mão do reconhecimento do outro, razão da cumplicidade da vítima com seu algoz. A mesma substância que compõe o ataque a você é a que você usa para se conformar, para se engrandecer, para se assegurar. O juiz de beca acredita ser a verdade do fato.

Nessa linha, verificamos com esperança que a foto de uma jovem nua cair na teia da internet não a mate de vergonha. A foto é sempre fake, sempre falsa, estando eu bem ou mal na foto.

A Psicanálise tem muito a dizer e a tratar desse momento atual.

Notem, de entrada, a clara semelhança entre o método da associação livre, estabelecido como a regra fundamental da psicanálise, com o método operativo do ChatGPT, o LLM, “Large Language Model”. A associação livre foi inspirada a Freud, segundo seu biógrafo Ernest Jones, por um livro que ele gostava muito, escrito em 1823, por Ludwig Börne. Um ensaio com título provocador: “A Arte de se tornar um Escritor Original em Três Dias”² O ensaio se fecha com as seguintes palavras: “Aqui está a fórmula prática que prometi. Tome umas poucas folhas de papel e durante três dias consecutivos escreva nelas, sem mistificação ou hipocrisia, qualquer coisa que vier à sua cabeça. Escreva sobre o que pensa de si mesmo, de suas mulheres, da guerra turca, de Goethe, do caso criminal Fonk, do Juízo Final, dos que se acham acima de você na hierarquia da autoridade – e quando se tiverem passado esses três dias você ficará espantado diante dos pensamentos originais e surpreendentes que saíram de sua mente. Esta é a arte de se tornar um escritor original em três dias.”

Comparemos com a explicação de LLM pelo próprio Chat.

“Os LLMs, como o ChatGPT, funcionam principalmente por associação, não por compreensão verdadeira. Eles identificam padrões em grandes conjuntos de dados de texto e geram respostas com base em probabilidades e correlações aprendidas durante o treinamento. Aqui estão alguns pontos-chave:

 

  1. *Associação, Não Compreensão*: LLMs associam palavras e frases com respostas com base nos dados em que foram treinados. Eles não têm compreensão consciente ou intencional do conteúdo.

 

  1. *Geração Baseada em Probabilidades*: As respostas são geradas com base na probabilidade de certas palavras ou frases seguirem umas às outras, o que é aprendido a partir dos dados de treinamento.

 

  1. *Falta de Consciência ou Contexto Real*: LLMs não têm consciência própria ou uma verdadeira compreensão do mundo. Eles não podem formar opiniões ou ter experiências próprias.

 

  1. *Limitações*: Enquanto podem parecer compreender e responder de maneira inteligente, suas respostas são limitadas pelo que foi incluído em seu treinamento e pela forma como foram programados para processar essa informação.

 

Em resumo, LLMs são ferramentas sofisticadas de processamento de linguagem que imitam a compreensão humana, mas operam principalmente através de associações aprendidas, não através de uma verdadeira compreensão ou consciência.”

As associações LLM ganham sentido a partir das perguntas do consultante, ou do analisante, prosseguindo a comparação. Chama-se, em IA, um prompt. Um prompt pode ser uma pergunta, um pedido ou qualquer outro tipo de entrada de texto que direciona a IA para gerar resposta ou realizar uma ação.

E a associação livre, de onde tira o seu sentido? Freud responde no seu livro: “Sobre os Sonhos”.³
“Uma vez que nos tornamos familiarizados com a sexualidade infantil, que é amiúde tão discreta em suas manifestações e sempre desprezada e mal compreendida, estamos justificados em dizer que quase todo homem civilizado retém as formas infantis de vida sexual sob algum aspecto ou outro. Dessa maneira, podemos compreender como é que desejos sexuais infantis reprimidos proporcionam as forças motivadoras mais frequentes e fortes para a formação dos sonhos.”

Desejos sexuais infantis reprimidos ou recalcados, aí as associações ganham sentido. Era ideia de Freud que seria possível acabar com o recalcado e que portanto teríamos uma razão não contaminada – por assim dizer – que garantiria uma ação verdadeira e justa. Freud guarda essa esperança até seu último texto: Análise terminável e interminável. Era a insistência de considerar que o que não sei hoje, amanhã saberei. Trata-se de uma posição que vai da impotência à potência; do infantil, citado, ao adulto.

Não pensamos assim hoje. Entendemos, com Lacan, que o ‘infantil’ não é a criança de pouca idade, mas sim, literalmente, o que não tem fala: ‘infans’. Não tem fala, nem nunca terá.

Cabe ao analista de hoje saber conduzir uma análise da impotência ao impossível, não à potência. Do Freud explica ao Freud implica.

Assim compreendendo, nossa identidade se define pelas escolhas que fazemos. Escolho logo existo, parodiando o filósofo. Não é um estado que me define, mas um movimento que incessantemente deve expressar seu desejo no cenário das circunstâncias. Tal qual o poeta. E há também que saber parar.

 

Jorge Forbes

São Paulo, dezembro de 2023

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  1. Rilke, Rainer Maria. LETTRES MILANAISES. Paris, ed. Librairie Plon, 1956.
  2. Jones, Ernest. VIDA E OBRA DE SIGMUND FREUD. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.
  3. Freud, Sigmund. SOBRE OS SONHOS, cap. 12. Rio de Janeiro, Imago, 1969.