/Inconsciente e Responsabilidade: um Novo Amor – 2002

De abril a junho de 2002, no centro de Convenções da Faculdade de Medicina da USP, com o apoio da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas.

Jorge Forbes

‘Inconsciente e responsabilidade – Um novo amor’ foi o título do seminário proferido todas as semanas, no primeiro semestre de 2002, em São Paulo sob minha direção. Realizado nas instalações do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, recebeu um público de analistas, de profissionais da saúde e de universitários de “Humanidades”.

O tema “Inconsciente e responsabilidade” ocupa-me já há alguns anos. Esses são termos que, por muito tempo, foram considerados mutuamente exclusivos na psicanálise: ou inconsciente, ou responsabilidade, como manifesta a folclórica expressão de desculpa com a qual se defende aquele que é interrogado sobre as razões pelas quais cometeu alguma extravagância: “só pode ter sido inconscientemente”.

Em seminários anteriores fui levado a distinguir a noção jurídica habitual de responsabilidade: “só uma pessoa livre pode ser responsabilizada por uma ação” – exemplo: se os freios de um veículo têm uma pane mecânica, o condutor não poderá ser responsabilizado pelo acidente – da noção “psicanalítica”, que inclui o acaso e a surpresa na responsabilidade pessoal, contrariamente à tradicional responsabilidade jurídica.

Este ano, o subtítulo “Um novo amor”, emprestado de Lacan, seminário Mais, ainda, lança a atenção sobre um novo pacto social, além do pai. É como se Lacan, analista do futuro, houvesse previsto a transformação provocada pela globalização, que suplantou a organização vertical das identidades (Freud) e privilegiou o eixo horizontal.

No encadeamento do seminário eu sublinharia dois momentos, um clínico e um político.
Momento clínico. A segunda clínica de Lacan vai além do Édipo, além da travessia do fantasma. Eu então me perguntei se as novas elaborações a respeito do final de análise, particularmente aquelas desenvolvidas por Jacques-Alain Miller em seus três últimos cursos, não conduziriam a uma nova compreensão do passe e do final de análise. Formulei quatro questões – 1: O passe é o final de uma análise? 2: O passe realizado em uma determinada época teórico-clínica é igual ao de uma época posterior? 3: Uma mesma pessoa pode ter vários finais de análise? 4: Como julgar um final de análise pela identificação ao sintoma, ou na sensação de “estar feliz na vida”? – a partir das quais entrevistei três ex-AEs que retomaram suas análises após suas nomeações, ou sequer as interromperam na ocasião. Trata-se de Esthela Solano Suárez, de Francisco-Hugo Freda e de François Leguil. Comentei em meu seminário o resultado dessa enquête – que em breve apresentarei também por escrito – destacando o fato de que todos os entrevistados dissociam o passe e o final de análise; estimam que o passe realizado em uma certa época teórico-clínica é diferente daquele realizado em um momento posterior e declaram que uma mesma pessoa pode ter vários finais de análise. Esses três aspectos recobram o interesse do tema “Inconsciente e responsabilidade”, quando nada é definitivo ou estanque, exceto a responsabilidade do inconsciente, e a análise permanece uma possibilidade mesmo para aqueles que já a tenham “terminado”.

Momento político. A mesma discussão empreendida na clínica pode ser transposta ao terreno político, se nos colocarmos a seguinte questão: “Qual o pacto social possível na globalização?”. Para debater comigo o tema, convidei dois professores da Universidade de São Paulo, o filósofo Renato Janine Ribeiro, da cadeira de Ética e Filosofia Política, e o jurista Tercio Sampaio Ferraz Junior, da cadeira de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Renato Janine expôs uma reflexão sobre a política a partir do afeto que evidencia uma tensão entre democracia e república. Se um afeto republicano parece uma contradição em termos, visto que a república é o triunfo da razão, por outro lado, um afeto democrático é da essência das coisas: na democracia as pessoas querem ou seus interesses satisfeitos, ou os desejos saciados. Esse descompasso quanto à presença do afeto nos dois regimes, todavia, é produtivo.

Isso nos permitiu discutir o afeto autoritário de extrema direita – Le Pen na França – e pensar a república de hoje, abalada com a derrocada da noção de Pátria (Pai), através da transcendência (nas monarquias) ou da imanência: é possível uma república de transparência radical, de imanência radical? Tercio Sampaio Ferraz sustentou, com uma dose de provocação, que, na atualidade, uma mudança atingiu frontalmente a noção moderna de res publica ligada ao Estado guardião da propriedade, em especial no primeiro mundo: a progressiva descaracterização do campo privado como propriedade de um sujeito com outro. Na sociedade de serviços atual, a propriedade praticamente se tornou um abstrato (sociedade anônima). Por conseqüência, a idéia de um guardião que zelasse por ela perdeu o sentido. No século XX, então, o Estado assumiu, progressivamente, a posição de um participante funcional dessa nova sociedade, um prestador de serviços – saúde, aposentadoria, polícia, etc. – como outras entidades. Nesta medida, o público e o privadojá não se distinguem claramente.

Face à fragilidade dos paradigmas atuais, o jurista conta com um terceiro, mas como dar consistência a esse terceiro?: “Em países como o Brasil em que o terceiro seria a legalidade, ela está fragilizada”.

Enfim, retomei esse comentário acrescentando que o terceiro da responsabilidade cumpre a função de formar, dos dois que estão, um todo. Trata-se de afirmar um outro tipo de responsabilidade, do não-todo. Assim: sou responsável frente ao meu acaso, a minha surpresa. Nesse sentido é que hoje se faz uma psicanálise do ato, e não da decifração. Do ato a partir da falência do terceiro, criando a possibilidade de viver no mundo sem a presença dessa terceidade e de uma norma imputacional.

Por este viés, citado por Tercio Ferraz, público e privado não deveriam ser medidos na esfera do confronto, da mesma maneira que transcendência e imanência, referidas por Janine, não deveriam ser mutuamente exclusivas – e talvez a transcendência seja o núcleo duro da imanência. Explicitei minha proposta dizendo que esses problemas talvez mereçam ser refletidos, com Lacan, em uma nova topologia, não cartesiana, por exemplo: “colocar no próprio núcleo da maior imanência, ou da intimidade, o osso duro (articulei com Renato Janine, ao final de A República), uma extimidade”. Encontrar, portanto, dentro da imanência, algo exterior. Nesse caso, concluí: a república clássica não poderia responder a nada do atual.

A questão do afeto autoritário é, mais que nunca, premente. É preciso não só anunciar o óbvio perigo de Le Pen, mas fazer ver que na trama cotidiana do social está o vírus que elege Le Pen, que acata a pena de morte, que sustenta o “para tudo tem remédio”. A ideologia do “para tudo tem remédio” (parasitária do projeto genoma, da psiquiatria biológica, dos avanços tecnológicos como a internet) conduz a uma concepção do homem que determina o que seja o correto e seu oposto – o defeituoso, a ser expurgado. Trata-se de um modo de pensar ameaçador, racista. Por isso, enfim, defendi um contraponto do afeto autoritário bipolar: o afeto de risco, o afeto da criação, o afeto da invenção. Um novo amor.

(texto de retrospectiva do seminário)

 

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