Jorge Forbes
Algo novo acontece no domínio da psiquiatria e da saúde mental. Foi expresso na sexta-feira, 4 de fevereiro, em Paris, pelo ministro da Saúde francês, Philippe Douste–Blazy, ao apresentar, em uma concorrida entrevista coletiva, televisionada em rede nacional, o seu esperado plano psiquiátrico. Mais de um bilhão de euros serão aplicados nos próximos cinco anos em um projeto ambicioso que, além das ações de renovação do equipamento hospitalar, contratação e investimentos na formação profissional e reorientação do conhecimento social, prima por se apresentar como uma mudança paradigmática na atual corrente majoritária da saúde mental no Ocidente. Nos últimos anos essa política veio sendo dominada por uma visão empirista, calcada em um neo-darwinismo biológico, com a pretensão de entender e enquadrar o sentimento humano em modelos de comportamento-padrão e de neurofisiologia cerebral.
A importância da mudança desencadeada na França excede os limites de suas fronteiras. A correspondência das políticas nacionais de saúde é um fato e os problemas e soluções nos são comuns. Desde o início de sua fala, o ministro anunciou um novo tempo: “… o próprio da saúde mental é que ela deve se confrontar ao sofrimento nascido do mais íntimo. Em face deste sofrimento secreto, indizível, o primeiro dever de uma sociedade fundada sobre a solidariedade e as liberdades é reconhecer que não pode haver aí só um tipo de resposta”. Disse. “O sofrimento psíquico não é nem avaliável, nem mensurável”.
Um homem público tem a coragem de não ceder à fácil e tanto quanto perigosa tendência atual de oferecer falsos semblantes de segurança, através de critérios empíricos de avaliação e controle, a uma população desorientada, desbussolada por fenômenos tenebrosos. Em dezembro, na cidade de Pau, um homem decapitou duas mulheres que eram agentes de saúde. Em janeiro, outro homem, no metrô de Paris, matou uma pessoa, jogando-a do trem em movimento. Esses fatos estão ocorrendo com freqüência cada vez maior em vários países. Quem não se lembra da jovem, bonita e rica, estudante da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, acusada de ter orquestrado o assassinato de seus pais, por seu namorado e pelo irmão deste? E Columbine?
O ministro Douste–Blazy disse não à interpretação reacionária da fórmula: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Ele disse sim ao desejo e à responsabilidade subjetiva, fora do standard, fora da ilusão pseudocientífica e controladora de protocolos de procedimentos terapêuticos que passaram, em nome do ‘custo-benefício’ de companhias seguradoras, instituições de governo, e de uma parte criticável da indústria farmacêutica, a dominar os atendimentos de saúde pública, digitalizando os pacientes. Custa muito caro essa política de controle social, que acalma, mas não trata. O bom senso pensa mal. É melhor enfrentar um difícil problema que tapar os olhos com inúteis remédios.
O problema foi lembrado pelo ministro, ao dizer que o sofrimento psíquico tem a característica essencial de ser secreto, indizível, não avaliável, nem mensurável. O bom senso diria que crimes ocorrem porque falta disciplina, ou remédio. O novo e ousado plano de saúde mental francês diz que se houve crime é, também, porque não houve escuta. Não a escuta do entendimento, a da compreensão, não essa. Faltou a escuta à singularidade, ao diferente, ao inusitado, ao que não cabe em nenhum protocolo, ao que nunca tem nome, nem nunca terá. Jacques Lacan, retornando a Freud, dizia que o forcluído no simbólico retorna no Real. Nesses casos, retornou com violência.
O plano Douste-Blazy reenlaçou a psicanálise com a psiquiatria, sabendo distinguir claramente as diferenças, o que é fundamental para uma eficaz colaboração recíproca. Psicanálise e psiquiatria não se somam, mas podem e devem se articular, no benefício do tratamento da dor de existir.
Não será fácil para o ministro, no entanto, a continuidade de sua ação. Ele tocou no nervo mais sensível da chamada sociedade de controle, ao defender publicamente o direito ao segredo. É esta mesma sociedade de controle que preconiza, no Brasil, que psicólogos denunciem intenções agressivas em seus pacientes, ou que advogados prendam seus clientes.
No dia seguinte à apresentação de seu plano, Douste-Blazy compareceu ao “Fórum dos Psi”, coordenado por Jacques-Alain Miller, na histórica sala da Mutualité, lotada por mais de mil e duzentas pessoas. Há um ano esses fóruns acontecem sob extrema tensão, buscando uma saída para a tendência empírico-controladora de medidas governamentais anteriores a esta. Aí comparecem não só ‘psis’, mas também uma parte importante da inteligência, dos políticos franceses e além. Jacques-Alain Miller, Eric Laurent, Elisabeth Roudinesco, entre outros “psis”, debatem com o filósofo Bernard-Henri Lévy, com Philippe Sollers, com o jornalista Edwy Plenel, juristas e sindicalistas. Todos sabem que o que ali se discute vai além de um problema local; o que está em jogo é o estabelecimento de um novo laço social compatível com a globalização.
Douste-Blazy foi ovacionado; Miller, elegantemente, compartiu os aplausos e os elogios que recebeu. Foi um doce repouso antes da próxima batalha, já anunciada na reação dos burocratas-solidários.
(Artigo publicado no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, caderno Aliás, no domingo, 13 de fevereiro de 2005)