/Lacan de Raiz – Chitãozinho e Xororó e Jorge Forbes

Na globalização, uma era que nos exige decisões cotidianas, a amizade volta a ocupar um lugar precioso, depois que o mundo industrial a havia deixado em segundo plano, com suas estruturas padronizadas, previsíveis. Em junho de 2005, o Espaço Cultural CPFL acolheu as reflexões de Jorge Forbes sobre a amizade no tempo atual, com seus convidados Silvio Genesini (Oracle), Wilson Ferreira Jr (CPFL), Luiz Seabra (Natura), Miguel Reale Júnior (jurista), e um toque inusitado: Chitãozinho e Xororó. Leia a apresentação do tema por Jorge Forbes, e a sinopse de sua conversa com Chitãozinho e Xororó. Texto de apresentação, por Jorge Forbes, do programa de conferências.

“AMIZADE EM TEMPO DE RISCO

A amizade voltou a ser fundamental. Os afetos recobrem a paisagem de cada época, variando em importância conforme o momento. Na globalização, tempo das relações transversais do laço social, a amizade volta a ocupar um lugar precioso. Ela nem sempre foi bem vista, no mundo industrial, por criar privilégios – “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Trazer um amigo para participar de um contrato era mal visto. A amizade envolve o segredo, o que não combinava com a vida pública, cívica. Por outro lado, seria ingênuo apostar na opinião dos amigos: elogios não mereciam confiança. Preferia-se o juízo comum, frio de afeto.

Hoje, a amizade se tornou selo de excelência. Em um mundo sem garantias, de imprevisão e da necessidade de criar, a amizade permite o passo em direção à convivência das diferenças. A amizade cultiva o que temos de incomum, mais além das críticas e dos elogios. Um amigo espera de nós o inusitado a cada encontro, e nos chama a animar a relação não pelo que é normal, mas pelas vias do nosso desejo.

Hoje, é com o amigo que se quer o contrato. Precisa-se de ousadia em nossos pactos – no trabalho, nos projetos de um futuro que não apenas alimente, mas que tenha sabor.

Saímos de um mundo de líderes para um mundo de decisores: o líder contava com padrões de comportamento; o decisor – quem se expõe a fazer um caminho nunca antes percorrido – conta (precisa contar) com um amigo.

A amizade é o que sustenta o risco da decisão”.

A seguir, a sinopse da conversa de Jorge Forbes com Chitãozinho & Xororó:

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A música mudou, a psicanálise mudou. A cultura mudou. Foi assim, nessa segunda-feira, 6 de junho de 2005, desde as 19h, quando estiveram presentes, juntos, para uma conferência, Chitãozinho e Xororó e Jorge Forbes, no Espaço Cultural CPFL, em Campinas.

Nessa noite, o programa sob curadoria de Forbes, “Amizade em tempo de risco”, contou com o palco, as luzes, os microfones, o piano, uma cenografia de conferência dirigida a um público acolhido em poltronas de cafeteria para um debate aberto. Foi a primeira conferência na vida da maior dupla musical brasileira. O tema: “Amigo, Irmão, Parceiro”. Mais de trezentas e cinqüenta pessoas superlotaram o Café Filosófico. Entre elas, estavam psicanalistas e também amigos íntimos e familiares de Chitãozinho e Xororó. A TV Cultura registrou e transmitirá o acontecimento.

O convite de Jorge Forbes aos cantores teve base em uma preocupação psicanalítica singular, sua, sobre o papel do amigo na criação, na ousadia de fazer diferente, e, por isso, também na composição musical. Há alguns anos, chamava-lhe a atenção o relato do poeta Carlos Drummond de Andrade sobre a publicação de “No Meio do Caminho”. Essa poesia, uma de suas marcas mais conhecidas hoje – que repete sete vezes, em formas diversas, a sentença “no meio do caminho tinha uma pedra” – só foi impressa por Drummond graças ao o apoio dos seus amigos. O próprio autor teria recusado a publicação, não fosse por eles.

Forbes abre a conferência referindo-se a Drummond. Chama Chitãozinho e Xororó a pensarem nesse exemplo, e falarem sobre o papel da sua amizade no trabalho: há um risco radical na escrita poética, na música, porque ela toca a singularidade. Ninguém canta como Chitãozinho ou como Xororó. A letra, a interpretação peculiar pela voz, a combinação dos sons que só alguém encontra e que é estranha ao outro, são requisitos, mas não garantias, do sucesso da arte. Como disse mesmo Chitãozinho, é impossível prever se uma música agradará o público. Ser artista, então, é suportar a própria diferença, que pode não ser bem recebida pelos outros, mas que o amigo aceita por princípio: “amigo não precisa compreender o que a gente explica”, diz Jorge Forbes.

Com essa perspectiva, a conferência tornou-se biográfica. Chitãozinho e Xororó são fundamentais para a música brasileira. Foram eles os primeiros a conceber a música sertaneja sob um estilo que ganhasse as cidades – em seus arranjos, no lirismo e na cadência das letras, na simpatia popular. Antes deles, essa música era encerrada na cultura do campo.

Junto com Roberto Carlos, foram os únicos músicos brasileiros a ocuparem primeiro lugar na lista da Billboard. Foram a primeira dupla na televisão, a primeira em carreira internacional, os idealizadores do programa Amigos. Hoje, os rodeios onde eles cantaram são o mais importante circuito musical brasileiro, pelas platéias que reúnem para todos os estilos. Hoje, Chitãozinho e Xororó lançam novos artistas.

Jorge Forbes conhece e relata a história da dupla desde a sua origem, quando apresentaram juntos suas primeiras músicas, muitas delas compostas pelo pai. Pediu que eles comentassem cada episódio. No circo, os dois meninos contavam um com o olhar do outro para vencerem a timidez. Na adolescência, em São Paulo, atravessaram horas de ônibus e caminhada, juntos, para as aulas de solfejo. Sua história os aproxima e emociona, emociona o público. Uma forma de se apresentarem inédita para os artistas. Diz Chitãozinho: essa noite proporcionou a eles uma conversa que nunca tinham tido. Diz Xororó: eu amo mais o meu irmão hoje, por estar sabendo como ele vê nossa amizade.

Xororó responde às questões de Jorge Forbes falando da saudade do pai, que a música “Fogão de Lenha” traz para eles. Tem alegria no sucesso que alcançaram, e vigor em defender sua música. Tem cuidado, em cada palavra, com o irmão. Chitãozinho intervém com humor, sua frases são disruptivas, criam graça – Sandy e Junior são “os filhos do Chitãozinho e do Xororó, que já nem dormem juntos…” –, e ele brinca com o que Xororó e Forbes dizem. Chitãozinho enfatiza o valor do talento vocal do irmão mais novo, e zela pela dupla. Ele tem a sensibilidade de compor a imagem deles a cada apresentação, tem atenção aos palcos, à direção de cena, a status da sua música, às viagens. Foi ele quem decidiu os roteiros que a dupla, no início, faria pelo Brasil; foi ele quem convenceu Xororó a irem ao exterior.

Hoje, agenda repleta, os irmãos não têm muito tempo livre juntos. Estão lado a lado nas decisões pessoais, familiares – Chitão teve o apoio de Xororó com o término de um casamento e início de outro, momento sensível da sua história –, mas não vivem em endereços próximos, não têm tantos amigos em comum, nem o mesmo destino de férias. Xororó dedica-se à carreira dos filhos, e viaja com eles para o exterior no Natal e no Ano Novo. Chitãozinho tem um filho pequeno. O que fazem juntos, ainda e sempre, é escolherem o repertório, os arranjos, os palcos, os parceiros, os próximos passos da carreira. Por isso, na entrevista de Jorge Forbes, enfatizar a amizade que era pressuposta, foi inusitado – uma ação da psicanálise.

O trabalho do psicanalista não é revelar uma verdade dedutiva, por trás do dito, com base em uma ciência do homem-em-geral. O analista põe relevo na singularidade dos laços sociais, mostra a peculiaridade de cada encontro, busca, para além da verdade científica, as Evidências muito pessoais do desejo – que Chitãozinho e Xororó cantaram, nesta noite, “a capella”, com o público.

Essa atuação da psicanálise, na entrevista, interpreta todos aqueles que ainda acreditam na falsa dicotomia iluminista entre a cultura popular e a cultura acadêmica. Jorge Forbes, que levara a música eletrônica ao congresso de psicanálise, agora traz a psicanálise através da música sertaneja. Pelo que vimos ao final – todos cantando juntos – o público é o mesmo.

A.N.