Fevereiro de 2008
A clínica da felicidade em Jacques Lacan
O discurso que não seria do semblante inclui o equívoco e a surpresa
O discurso que não seja do semblante não encobre a morte
O amor é um ato criativo
O IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana – cresce em alcance e excelência
A felicidade, a morte e o amor
Neste segundo número, Memória Mensal realiza sua programação genética de descobrir o novo no que se vê. Olhando para as lições um e dois de D’un discours qui ne serait pas du semblant, é possível localizar uma clínica da felicidade em Jacques Lacan. Este foi o tema trabalhado na aula inaugural com o Corpo de Formação do IPLA.
Aliás, é boa ocasião de destacar que o Instituto da Psicanálise Lacaniana começou a escrever um outro capítulo de sua história. Ganhou nova sede, agora, com estrutura para receber mais pessoas e desenvolver mais atividades. Além do Corpo de Formação que se estende por todo o ano, haverá novos cursos, breves, para o debate da psicanálise na cidade. E o investimento mais privilegiado: a consolidação de uma clínica que esteja à altura do último ensino de Lacan. Assim o IPLA quer fazer a psicanálise perdurar. Não por um capricho, mas por um compromisso com a responsabilidade que Lacan [1] deixa a cada analista.
De volta ao tema da aula inaugural, partimos de uma constatação: a felicidade sempre foi tema de conversas filosóficas ou de mesas de bar. Mais recentemente, tem garantido o sucesso dos autores de auto-ajuda. Já na psicanálise, ela não é exatamente um tema privilegiado.
Lacan fala de felicidade talvez por não mais que duas vezes. No final do seminário da Ética e durante uma entrevista nos Estados Unidos, em 1975. Isto não quer dizer que não a buscasse, o tempo todo, em sua clínica. Ao menos esta é a hipótese de Jorge Forbes ao propor falar de uma clínica da felicidade.
Lacan diz: “Uma análise não é para ser levada muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz é suficiente.” [2] Forbes o recupera: o que é estar feliz? Cada um se autoriza a definir. Para um, é ser amado ou ter o que se quer. Para outro, é ser importante ou não ter angústia. E por aí vai a lista que se queira.
Contudo, nenhuma das alternativas anteriores serve de índice à psicanálise. A felicidade seria um efeito analítico [3]. Dito em poucas palavras, é o efeito de suportar o que escapa à expectativa, à normalidade, ao sentido.
Mas como sair do sentido, sem enlouquecer? Resposta: é como se o analista dissesse “Eu te levo a loucura, mas não deixo você enlouquecer e sim encontrar soluções criativas como James Joyce. E isto te fará mais feliz.” [4] O manejo clínico de Lacan para chegar a isso é a introdução do equívoco e da surpresa. Ambos se servem da palavra, mas quebram-na em sua função comunicacional.
Uma vinheta [5], que poderia ser clínica, permite mostrar esta quebra:
Um adulto, trabalhando com um grupo de crianças, pergunta:
Esta não era a resposta esperada. É preciso fazer esse rápido desvio para tocar aquilo que está além – não atrás – da palavra. Este além é o gozo. Mas todo o problema é que o gozo não fala a língua do bom senso.
A língua tenta falar a felicidade, capturar o gozo, mas ele é invasivo. E uma análise, se leva alguém a se dizer feliz, é porque ensina a conversar com o gozo. Isto autoriza a aproximar o discurso que não seja do semblante com aquele que inclui o equívoco e a surpresa.
O analista não tenta normatizar o gozo. A análise, diferentemente das psicoterapias, não se ocupa de corrigir o ça ratte [6], o isso falha. Análise não é para levar uma pessoa à normalidade. Evidentemente, quem a procura não sabe disso.
O caso de uma mulher, jovem e muito bonita o evidencia. Portadora de distrofia muscular, acha que tem algo de errado com ela porque agora está numa cadeira de rodas. Nesse caso, a melhor direção para seu tratamento seria sair do “eu não funciono porque estou numa cadeira de rodas” para um “eu não funciono não sei por que”. É incluir aquele ponto que, esgotadas todas as explicações, continua sem funcionar.
O que, por excelência, não tem explicação é a morte. Neste sentido, uma segunda aproximação para o discurso que não seja do semblante é de que ele inclui o furo ou a morte, o ça ratte.
Uma prática que inclui a morte não é exatamente algo atraente. Não é esta mesma a que se chamou pelo nome de Clínica da Felicidade?
Sim. O que permite a passagem da morte à felicidade é o reconhecimento do impossível. Perceber algo impossível gera a criação de uma coisa outra, nova. É radicalmente distinto da sensação de impotência que, diga-se de passagem, é narcísica. Reconhecer-se como impotente leva à resignação do conformado ou, para os mais teimosos, à insistência no mesmo. A impotência está para inércia e repetição assim como a impossibilidade está para a invenção.
A invenção é um ato. O amor também. Embora não pareça, isto é novidade. Estamos acostumados a entender que quando alguém diz “eu te amo” está nomeando como amor a sensação interna que experimenta. Seria um amor representativo. O que os pensadores atuais estão concluindo não é nada parecido com isto. Trata-se do amor performativo, que é um ato criativo, anterior a qualquer idéia ou nome. Agamben lembra que “Nós sabemos que ninguém nunca conseguiu definir de uma maneira satisfatória o sintagma eu te amo, a ponto que nós podemos pensar que existe uma característica performativa, que quer dizer que a sua significação coincide com o ato do seu dizer.” [7] Jorge Forbes é mais direto: “Na medida em que falo eu te amo, então eu te amo”.
Helainy Andrade
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[1] Num texto chamado Meu Ensino, Lacan fala que cabe a cada analista a responsabilidade pela sobrevivência da psicanálise.
[2] Lacan, nas entrevistas com os estudantes de Yale, em 24/11/1975.
[3] Ver sinopse da aula inaugural A felicidade na clínica de Jacques Lacan, em 25/02/08, disponível no site: http://www.psicanaliselacaniana.com/mural/resenhas/felicidade_helainy.htm ou aqui.
[4] Jorge Forbes, durante reunião de 11/02/2008, no módulo um do Projeto Análise.
[5] Para ter acesso a uma série destes exemplos em Lacan, ver Alô, Lacan? É claro que não. Trata-se do relato das intervenções de Lacan contadas por pessoas que fizeram análise ou supervisão com ele.
[7] Agamben, em seu livro mais recente L’Amitié.