/Mesa-redonda “Você quer o que deseja? A honra e o sentido da vida”

Conferência de Jorge Forbes sobre o livro “Você quer o que deseja?”, em uma mesa-redonda com as participações de Mário Eduardo da Costa Pereira – psicanalista e diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UNICAMP – e Ariel Bogochvol – psiquiatra e psicanalista, diretor do Instituto da Psicanálise Lacaniana. Na livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, em 17 de março de 2004, às 19:30. Coordenação de Elza Mendonça de Macedo, pela Biblioteca da Escola Brasileira de Psicanálise – seção São Paulo, da qual é diretora.

(Sinopse por Andréa Naccache)

A psicanálise vai bem

Há mais psicanálise em um exame dos temas vergonha, honra e luxo, que em um trabalho sobre, por exemplo, neurose, psicose e perversão. “Vergonha, Honra, Luxo: elementos para uma clínica psicanalítica da pessoa e da civilização do século XXI” foi o título do Seminário de Jorge Forbes em 2003, e a articulação desses temas está tecida ao longo de seu livro “Você quer o que deseja?”, ainda que sejam expressões muito estranhas aos tantos programas de cursos de psicanálise e às tantas publicações psicanalíticas correntes.

Vergonha, honra, luxo têm a qualidade de versarem sobre posições éticas do sujeito, e por isso podem estar tão mais próximos do coração da psicanálise que uma consideração de psicopatologia estrutural – neurose, psicose, perversão – na qual emergem padrões de comportamento ou critérios de classificação a partir da “relação com a realidade”.
Padrões, protocolos clínicos, classificações, não organizam a práxis psicanalítica. Então, mesmo estes conceitos, “vergonha, honra, luxo”, como ferramentas da clínica, têm um préstimo apenas de ocasião. Forbes não deseja que se sedimentem.

Nesta conferência, como no livro que lhe dá ensejo, ressalta as condições nas quais a psicanálise ganha força em nosso tempo. Diz-se muito que ela “vai mal”. Ora, diz Forbes, vai mal especialmente no meio psi…

A quem tem sido levada – a filósofos, juristas, jornalistas, economistas, neurocientistas e outros – tem despertado interesse e importantes discussões. Só o meio psi, pouco curioso – nota Forbes – mantém-se acomodado sobre as realizações passadas dos grandes, organizado como uma rede de “concessionárias” prestadoras de serviço, ao redor do mundo, reprodutoras da mecânica de fábrica. Contra essa acomodação dos analistas nos conceitos que ele havia desenvolvido, Lacan dissolveu sua Escola em 1980.

Assim como os conceitos analíticos, lidos como eternos nas teses universitárias, fazem mal à vivacidade da clínica; também standards para a condução da prática esgotam a exigência ética da clínica: o analista escondido em seu tom sempre neutro de voz, em cumprimentos frígidos, no tempo padrão para as sessões, furta-se à responsabilidade pelos efeitos do tratamento.

Ademais, à medicalização da clínica, surge uma versão soft, descomprometida, da psicanálise, como se fosse uma auxiliar, como se ela viesse apenas lembrar ao cientista que “o paciente é um ser humano”, ou temperar a atuação com um colorido imaginário. É um engano, grave. Uma maneira de levar a mal a psicanálise.

A psicanálise que “vai muito bem” opõe-se a isso e, Forbes enfatiza, “é a única proposta clara para se viver no mundo incompleto, sem sentido”. O mundo industrial tinha sentido, completude: sabia-se a idade para estudar, para casar, que formação escolher – entre medicina, direito e engenharia, especialmente – como educar os filhos, etc. A ordem difundia-se a partir do topo de uma pirâmide, seja na empresa, no Estado, na legislação e, mesmo, na família, encabeçada pelo pai.

Lyotard cunhou o termo “pós-modernidade” para falar de um tempo em que essas estruturas estão superadas. Alegre, a pós-modernidade, em que nos livrávamos dos grilhões superegóicos e bastaria agora gozar a liberdade que almejamos tanto, antes. Mas…, o ser humano tem pânico da liberdade. Reagiu à desorientação num retorno radical, como disse Gilles Lipovetsky, para criar uma hipermodernidade: mais tecnicismo, mais individualismo, acentuados valores de mercado.

Como anteparo, essa é uma parafernália dolorosa que, afinal, não vai vencer a angústia da liberdade alcançada. Forbes sugere que se enfrente a angústia desde já, com olhos para a novidade deste mundo, sem o reacionarismo hipermoderno. Se a angústia vem, com ou sem anteparos, melhor colocar-se diante dela com a questão sobre quais são as novas leis deste mundo que aí está.

Jacques Lacan encontrou a nossa experiência em três dimensões: da imagem, em bloco, que ele nomeou como registro Imaginário; da fala, que ele nomeou como Simbólico; e um terceiro, o Real, definido talvez, simplesmente, como o indetectável pelos outros dois.

Vergonha, Honra, Luxo respondem, respectivamente, pelos registros Real, Simbólico e Imaginário lacanianos.

Vergonha, Honra, Luxo

“O mundo virou um porre. E está todo mundo de porre. Há um gozo deslavado, debochado, escancarado que vem nos levando a conseqüências preocupantes” (“Você quer o que deseja?’ p. 75).

“Para interpretar um mundo em desvario, desbussolado como o nosso, é fundamental a preocupação com a orientação do gozo. E o luxo é algo que o capta, que o orienta” (idem, p. 90).

A vergonha, como Real, é o que alguém possui de inadequado a qualquer imagem ou palavra. Ela é anterior àquela vergonha criada pelo olhar do outro, na educação.

Em seu Seminário XVII, “O Avesso da Psicanálise”, Lacan considerou que a psicanálise deve devolver a vergonha a uma pessoa (Ed. Zahar, p. 172).

É, afinal, o ponto fundamental em alguém, para permitir-lhe orientar-se sem o pânico da angústia pela liberdade. Outro nome para esse ponto fundamental, da vergonha, é desejo. Então, será preciso querer o que se deseja.
O luxo é aquilo que recobre a vergonha, que responde ao desejo, como Imaginário. Ele se compõe e se mantém pela honra, o Simbólico. Então, ao querer o deseja, alguém pode querer um luxo singular, e sua honra.

Essa singularidade da vergonha faz com que não nos sirvam bem as roupas prêt-à-porter que a sociedade oferece. As estruturas prontas, padrão, não nos cabem, fazem-nos sofridas. Daí o descompasso entre a psicopatologia e a clínica: as questões psicanalíticas possuem outra ordem que não a das identidades prontas da neurose, da psicose, da perversão, da anorexia, da bulimia, da depressão, da ansiedade…

O exemplo, Jorge Guinle

Há algumas semanas, a imprensa não poupou homenagens na morte de Jorginho Guinle. Forbes lê um texto seu a respeito, intitulado “Duas mortes”. Por tantos anos criticado pelos de direita, “por não saber cuidar de sua fortuna: nem investiu, nem frutificou”, e pelos de esquerda, por ser “a imagem da decadência capitalista e da injustiça social: enquanto tantos necessitavam, ele tanto esbanjava”, Jorginho Guinle agora recebera só elogios. Por quê?
“Jorginho provou em vida, e até na morte, que viver é bem mais que sobreviver. (…) De que adianta as células estarem impecáveis quando morreu o desejo, a honra, o gozo de um detalhe íntimo, sem o qual a vida é pura banalidade?”

Jorge Guinle teria que sofrer mais uma séria operação de aneurisma. “Solicitou alta do hospital, pediu uma suíte no Copacabana Palace, comeu estrogonofe, sonhou com a vista do mar (…) dormiu e morreu biologicamente. Deixou inscrito, em seu Rio de Janeiro, um estilo. Ele não é um exemplo de vida, ele é um exemplo da vida”.
Jorge Guinle recusou-se a morrer como biologia apenas, cirurgiado, no hospital. Honrou seu estilo, morreu como Jorge Guinle.

Forbes comenta que, desde a era paleontológica, o luxo fundava a identidade na relação com o divino. Apenas na Revolução Francesa, sua luz foi censurada, substituída pela luz do saber: conhecimento traria felicidade. Hoje, na falência do saber iluminista, a psicanálise reencontra no luxo, agora laico, as mesmas condições organizadoras da identidade.

Por isso, na psicanálise de hoje, “Freud não explica”, insiste Forbes. Analisar não é vender um saber. A clínica consoa, assim, as condições da globalização, que requer opção constante, e na qual o limite não nos é externo: é unicamente a fidelidade àquilo que nos representa, a singularidade de cada um. Jorge Guinle, conclui Forbes, não é um herói, é um exemplo.

O ponto fundamental de vergonha, cabe a uma pessoa reconhecê-lo e inscrevê-lo no mundo. Não é fácil, requer a coragem de sustentar o singular em um mundo coletivo, que se assusta com a singularidade. Lacan, quando apresentou a ética do final de análise, baseada no desejo, falou em coragem; falou em mais: entusiasmo.

Debates

Do livro, que Mário Eduardo da Costa Pereira recomenda por seu forte efeito intelectual e visceral, produzido com leveza na linguagem, chama-lhe atenção o perfil traçado por Jorge Forbes do homem contemporâneo, pronto às circunstâncias. Lembra-lhe uma passagem de Shakespeare, em Hamlet: “promptness is all”, “prontidão é tudo”.
Concorda com a afirmação de Forbes de que a psicanálise é uma prática para viver no mundo incompleto. Sugere atenção, porém, às reflexões sobre a incompletude que se estabeleceram até nosso tempo: a transformação do pensamento operada por Heidegger, Witgenstein, Freud; o advento do capitalismo – no senso smithiano de que o homem possui um desejo radicalmente egoísta que estrutura o mercado – compõem uma proposta atual predominante de quebra das garantias. Kierkegaard falou sobre a experiência do homem diante do abismo, a angústia.

Uma expressiva resposta atual a essa corrente de pensamento tem sido o pragmatismo, um forte adversário da psicanálise, que permite muitos resultados sobre a incompletude, que promove o avanço do “indivíduo”, da “ tecnologia”. Para o pragmatismo, não há transcendência, não há leis a priori: é a proposta de que nosso único limite está em nós mesmos, o que nos lança em uma busca constante pelas palavras capazes de modificar as coisas.
Porém, se o pragmatismo realiza operações no mundo, não abre caminhos ao desejo. Fixamos normas de trânsito, assentamos radares de velocidade e essa modalidade de decisão, baseada em nós mesmos, institui um jogo coletivo do qual se torna muito difícil escapar.

Então a psicanálise, como Forbes a apresenta no livro, opõe, ao pragmatismo, o desejo, como disruptor desse sistema coletivo. Assim, pela vertente do Real lacaniano, será um desejo impossível – “o que não tem governo, nem nunca terá”. Não se trata apenas de pensá-lo como desejo irrealizável – forma rápida de tornar a psicanálise uma metafísica – mas, melhor, trata-se de captá-lo como algo que precisa ser considerado, porque não se positiva. É uma carta que “não cessa de não se escrever” (Lacan). O Real há de ser considerado por uma disposição da pessoa.
Mário Eduardo encerra com um poema de Adélia Prado, o “Corridinho”, a dizer que o amor sempre chega, rompedor das grades coletivas: “O amor quer abraçar e não pode. / A multidão em volta,/ com seus olhos cediços,/ põe caco de vidro no muro/ para o amor desistir”. Porém… “é descuidar, o amor te pega,/ te come, te molha todo./Mas água o amor não é”.

Em seguida, Ariel Bogochvol homenageia Jorge Forbes com a expressão de Eric Laurent, “analista cidadão”, em sua admiração pelo intenso trabalho de Forbes, que opera todo o tempo – “analista on line” – articulando múltiplos campos, como o DJ de que fala no livro. Bogochvol apresenta sua leitura do livro, recuperando a frase inicial do texto “A honra e o sentido da vida”: “O mundo virou um porre. E está todo mundo de porre” (p. 75). Contraposta ao porre do mundo, está a honra, que já não será mais social, ligada a uma classe aristocrática. Nada a que um pensamento de esquerda possa objetar…

Honra que qualquer pessoa pode e, pela ética psicanalítica, deve sustentar, marca um ponto orientador cuja perda implica na perda do sentido da vida. Vatel, maître d’hotel do prince de Condé, ao falhar no serviço de um banquete ao rei da França, suicida-se por vergonha. Um maître d’hotel pode ser honrado – foi um exemplo dado por Forbes e, antes, por Lacan.

Se a vergonha vale-nos uma outra morte, muito além da biológica, como Forbes mostrou com Jorginho Guinle, Ariel Bogochvol acrescenta ser justamente porque dessa maneira transforma o sentido da morte, que a honra confere novo sentido à vida.

Comenta a riqueza de temas e composições do livro – que reúne crônicas, conferências e artigos lacanianos – e sua imensa abertura na consideração de diversas matérias. O que confere unidade ao livro, diz Bogochvol, é a insistência dessa questão posta ao leitor, entrançada nos mais curtos contos, como nas mais extensas análises: “você quer o que deseja?”