/Mesa-redonda – A união das diferenças

A Psicanálise dos Novos Elos Sociais em uma Era sem Pai e sem Padrão. Mesa-redonda com Chaim Samuel Katz, Joel Birman e Jorge Forbes. Em 23 de agosto de 2003.

Sinopse do evento por Francisco Rodrigues Alves:

A união das diferenças, por um dia

Com um olhar mestiço, uma série de psicanalistas se reuniu no IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana – neste sábado, em São Paulo, para discutir o futuro da prática analítica, em um mundo fluido. Em oposição à suposta garantia das soluções químicas ou genéticas, o analista opera em terreno instável. Joel Birman, Chaim Samuel Katz e Jorge Forbes unem suas diferenças, em um dia de colóquio, para perguntarem francamente qual será o papel do psicanalista neste contexto desafiador de tecnologias sedutoras. No auditório lotado, entrevia-se o olhar atento de outros diferentes – Miguel Calmon, Márcio Giovannetti, Márcio Peter de Souza Leite, exemplos.

Entre perspectivas singulares, uma imagem caleidoscópica desenhava um futuro a ser inventado, o porvir da psicanálise no Brasil. O que significa psicanalisar nos tempos atuais? A prática analítica transformou-se radicalmente a partir do fenômeno da globalização. Com a quebra dos padrões verticais de identificação, o prumo edípico se viu desregulado. Nossa subjetividade se articula em torno de identidades fragmentárias – o ‘Um’ se tornou híbrido.

A conferência de abertura de JOEL BIRMAN, intitulada “As Novas Formas de Sofrimento”, tematizou o sofrimento, em oposição à dor. É na fronteira entre dor e sofrimento que se coloca uma ruptura histórica entre duas épocas e sistemas de valores. O marco globalização estabelece, para Birman, uma transformação subjetiva, na qual a dor substitui o sofrimento e se estabelecem novas formas de mal-estar.

O autor cita algumas pesquisas de Michel Foucault. A psiquiatria clássica apenas estabeleceria sua caução biológica e médica, após receber uma identidade epistêmica obtida pelo avanço das neurociências: esta mudança, no campo “psi”, teve como efeito uma inversão de domínio entre psicanálise e psiquiatria. Se a psicanálise dominava o quadro psiquiátrico até os anos 80, e definia alguns critérios sobre o que seria sua clínica, atualmente a psiquiatria se autonomizou em torno das novas formas de mal estar.

Quais são as novas modalidades de subjetivação criadas hoje na pós-modernidade, em que há uma mutação nas maneiras de construção subjetiva? O autor destaca três elementos presentes no campo de representações das queixas atuais: o corpo, a ação e o sentimento. Na predominância de um destes sobre os demais, desapareceria a categoria do pensamento. O medo do adoecimento e da morte estaria permanentemente presente como angústia.

Da medicina ortomolecular ao imperativo das caminhadas diárias, algo no corpo não anda bem. A síndrome do pânico – isomorfa ao que Freud descrevia como neurose de angústia – tornou-se um emblema das patologias atuais. Clonagens reprodutivas e outras técnicas são paradigmas de aspiração à imortalidade. Conseqüentemente, o envelhecimento se converte em doença. Esse conjunto de elementos faria com que o objeto corpo ganhasse uma visibilidade inédita.

Sofre-se de uma espécie de despossessão de si. No corpo, surge a síndrome do pânico; nas compulsões, as toxicofilias, e, finalmente, no campo do sentimento temos a depressão. A depressão seria uma incapacidade de possuir a si, uma experiência caracterizada pelo vazio. Não se pode perder nada, ao risco de se perder a capacidade de desejar – hiperboliza-se o apego. Na economia narcísica, o excesso e a hiperatividade de ação são descarregados no plano do corpo.

Se na experiência da dor haveria o solipsismo, no sofrimento existiria o outro. Na quebra das instâncias de alteridade, se desfazem os mediadores sóciopolíticos e culturais. A linguagem não funciona mais como antigamente. Não sabemos o que fazer em um mundo sem soberania. Daí decorrem o pânico, as depressões e a perda de si.

Como escapar à pasteurização das terapêuticas humanas? Seria necessário recriar os signos do ‘fora’ para discutir a atualidade, ou correríamos o risco de histerizar a psicanálise através de uma leitura marcada por signos defasados. A psicanálise perdeu seu lugar incômodo do ‘i-mundo’, por tentar ocupar certo nicho do mercado.

Jorge Forbes questiona se a clínica deveria voltar ao elemento da mediação: não seria a atual “derrocada do pensamento” um sinal terminal do Iluminismo? Parece-lhe pouco fecundo interpretar a atualidade a partir da negatividade. O ponto crucial é saber se devemos regular e censurar as novas manifestações ou, ao contrário, detectar as novas soluções já presentes.

A conferência seguinte foi apresentada por CHAIM SAMUEL KATZ – “Psicanalistas: A União das Diferenças Frente ao Mal-Estar Globalizado”. Abre com uma interrogação de Claude Levi-Strauss: o que acontece quando um feiticeiro enfeitiça, mas não acredita em sua própria magia? O feiticeiro atua, descrente de seu poder por saber a ilusão presente. Qual a relação com o psicanalista de hoje? Questionado por colegas das neurociências, ou pelo Estado, será que merece reconhecimento pelo que faz?

Qual a legitimidade da prática psicanalítica? Como falar em nome da psicanálise? Desde a noção de democracia grega à formação de Estados Gerais, o autor aponta a dificuldade presente na reivindicação de direitos ou legitimidade.

Katz aponta o caráter paradoxal do significante da psicanálise. ‘Ana’ diz respeito a uma reunião, elementos distintos que se unem. ‘Lise’, por outro lado, é algo quebrado, rompido, distinto por definição. Diz respeito à impossibilidade de se sustentar uma reunião permanente, especialmente em torno do ‘eu’. Se o ‘ana’ cria uma relação de soberania, pela reunião absoluta de elementos originalmente separados, esta não se mantém. A ‘lise’ insiste na quebra de todas as relações ou laços de pretensão à permanência.

A proposta de Katz é pensar desde vários ângulos esse laço sempre provisório, uma união fugaz. Caso a psicanálise proponha um discurso da permanência, gerará seu próprio fim, por uma perda da eficácia da sua clínica. O autor detecta uma diminuição da procura à psicanálise, assim como ausência da rebeldia e originalidade na fala dos psicanalistas contemporâneos, que cedem à mídia um modo homogêneo de pensamento do senso comum. Como sustentar a diferença, a impossibilidade de atingir um saber rápido e trivial sobre a psique? Se o imaginário social tenta unificar a identidade cada vez mais esfacelada, como o psicanalista responderia diferentemente? O analista submisso ao senso comum diz o óbvio em busca de reconhecimento de mercado. Ao fazê-lo, perde a paixão, soterra a singularidade do discurso psicanalítico.

A conferência de fechamento é de JORGE FORBES: “A Clínica Real do Paciente Brasil”. O psicanalista abre citando dois encontros anteriores. Em 1998, Jacques-Alain Miller e Jorge Forbes vão ao congresso da IPA, em Barcelona, a partir de um arriscado convite de Márcio Giovannetti. Anunciava-se, nessa pequena abertura, um furo nas instituições estanques. Três anos depois, em 2001, Jacques-Alain Miller escreve e publica seis cartas à ‘opinião esclarecida’. Na última carta, aponta como encerrado o tempo das unidades sólidas. É nessa época, que ocorre um jantar, em Paris, de Forbes e Miller com René Major. Forbes marca a necessidade de se quebrar a identificação ao uno integral e rígido nas instituições e na orientação analítica, e preconiza uma nova topologia que escapa da dualidade cartesiana: dentro/fora das instituições.

Surge como tema a pergunta de Miguel Calmon: “O analista teria algo a ver com a performance?” Forbes pensa que sim – o gesto, o ato do analista serve para capturar o gozo além da palavra. Como já escreveu, há uma mudança de posição frente ao gozo a partir da interpretação gestual do analista. Como tratar as novas formas de mal estar? Se uma alternativa seria o retorno da mediação, para o psicanalista, ao contrário, deveria se enfatizar a responsabilidade frente ao que se diz e a invenção do amanhã. Há uma responsabilidade pelo acaso, não baseada em um saber ou no julgamento do próximo. É necessário ser responsável pelo próprio acaso, pelo encontro fortuito. Como o analista pode sair de uma posição de esperar mais sentido e se lançar à busca de mais conseqüência? A psicanálise não se instala ao nível superegóico ou da culpa, mas na responsabilização do excesso. O Complexo de Édipo não é uma solução da atualidade, pois não somos nem estamos mais em uma realidade “pai–orientada”.

Seria necessário reorganizar o mundo, ou já existe nele uma nova ordem à espera de interpretação? Apesar do temor esperançoso de que a globalização vertesse o caos, este não se cumpriu. Há, sim, portanto, uma nova lei a ser interpretada. Cita o Simpósio que promoveu, na USP: “Adolescência Rave”, em 1998. Psicanalistas e educadores se reuniram para ouvir e experimentar a música eletrônica, na tentativa de captar o novo laço social, na proposta dos jovens mutantes. Os adolescentes estariam descobrindo o monólogo articulado, no impacto singular e por vezes silencioso e táctil desta música sem significado. Deste ponto de vista, não seria necessário apelar a um retorno da mediação dialógica. Prossegue perguntando por que Matrix é tão importante, e abrevia a resposta citando o título que deu à uma conferência recente: “Descartes Reloaded”. Propõe uma nova psicopatologia da vida cotidiana na positivação dos fatos e não na crítica iluminista ou preconceituosa. Comenta o início de um tempo no qual a “liberdade é o limite à própria liberdade”, contrário à proposta usual da liberdade de um que termina onde começa a liberdade do outro. A censura, ou repressão, perde o sentido na era pós-edípica. Jacques-Alain Miller, na última aula de seu curso “Um esforço de Poesia” (2002/2003), aponta, em Lacan, o superego como uma projeção de Freud. Desta forma, não é necessário o interdito à relação sexual, pois esta não existe. O limite do gozo é o próprio gozo, impossível – a única saída é a invenção.

A psicanálise hoje aponta para a invenção de um futuro. Para tal, Forbes apresenta três caminhos a se articular em uma análise, trabalhados em seu seminário de 2003. Seria necessário recuperar uma vergonha não culposa, a vergonha como ponto de Real. A honra – Simbólica – apareceria como uma solução para que a vida não seja só sobrevivência. Por fim, completando os três registros, viria o “novo, divino, luxo”, recobrimento Imaginário do ponto Real de vergonha, amarração com o mundo.

Como unir emoção e regra ao criar, sem incorrer na burocracia da estagnação? Que tipo de liderança espera um mundo globalizado? Na ordem atual, em que há uma desistência de se esperar saber mais, o homem deve retificar sua posição frente ao não saber, o excesso. Neste contexto de otimismo aliado a responsabilidade clínica, Forbes lê – surpreendendo e comovendo – uma carta de quatro páginas que enviou muito recentemente ao presidente Lula e a sua esposa, Dona Marisa. Se o Brasil é um país de terceiro mundo nas planilhas econômicas, certamente se sairia melhor se fosse avaliado pelo metro do desejo e ousadia da escolha. Para se colocar no ritmo atual, é necessária uma cota de certeza inexplicável: Lula não se explica, se mostra, diz ele. Comenta, discretamente, a resposta do Presidente e de sua esposa, deixando claro, no entanto, que a clínica do Real pode – em fato – sensibilizar um governante pessoal e politicamente.
O que opera na clínica pode ser dela extravasado para alem do divã, em uma época mais desespecializada que interdisciplinar. A clínica do Real, borromeica, atravessa as fronteiras cartesianas tradicionais. Mesmo sendo o avesso do político, o psicanalista toma a palavra e interpreta a atualidade, captando sua invenção. É neste espaço do silêncio de simbolização que pode ser gerada uma resposta nova, condizente a uma psicanálise do século XXI, concluiu Forbes.

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