O Espírito de São Paulo
Jorge Forbes
Meu primeiro impacto ao receber de amigos franceses um convite para falar sobre possessão foi surpresa. Esse tema me era estranho. Houve quem dissesse – “É só você contar um daqueles casos que vocês têm de pacientes macumbeiros” – Coisa difícil. Em quinze anos de prática não recebi nenhum. Como responder a solicitação do exotismo? Voltei a perguntar a quem me convidava sobre o que pretendiam com esse mote e fui melhor esclarecido – a questão ia além do folclore; pus-me então a pensar.
Ocorrer que estava no interior do Brasil, fora do meu Estado, lá do lado das Gerais, quando uma amiga ao me ver correndo por alguma razão me disse: – “para, calma, São Paulo não pode parar, mas o paulista pode!” – “Será que ser paulista é estar possuído de São Paulo?” Achei o tema que buscava: a possessão do espírito de uma cidade.
A frase de minha amiga: “São Paulo não pode parar, mas o paulista pode” é uma alusão ao conhecido dito popular que São Paulo é a locomotiva do país: ela não pode parar. Não seria essa a forma simples e corriqueira de externar o que está na divisa da cidade: “Non Ducor Duco”? “Não sou conduzido, conduzo”. Aí está o espírito de São Paulo.
Surgiram-me então as seguintes questões: 1) em que momento e em resposta ao que alguém disse “Non Ducor, Duco”; 2) porque, quando e como essa frase foi consagrada, e, 3) como esse lema vem sendo tradicionalmente utilizado e recordado em nossa história.
Essas perguntas busco responder em três tempos: a) antes da posse, b) a posse, e, c) a possessão do espírito de São Paulo.
a) Antes da Posse
1872, nada mais que há 118 anos atrás, ainda não passaram quatro gerações, desde esse tempo em que São Paulo tinha 31.000 habitantes. Era menor que Niterói, São Luiz ou Cuiabá. Nesses 118 anos um estrondo – passamos dos 31.000 habitantes para 15 milhões; multiplicamos cada paulista daquela época por 483 e nos transformamos hoje na terceira mais cidade do mundo. São Paulo não pode parar…
Essa São Paulo do século XIX nada mais é que uma pacata cidade colonial, uma Vila Rica, uma Ouro Preto com araucárias. Seu povo é rude e, à diferença do resto do país que é voltado para o mar, é um povo que se volta para a terra, que a quer conquistar, daí as entradas, após, as bandeiras. Quer a posse da terra e quer ainda mais.
O papa havia dividido o mundo pelo tratado de Tordesilhas. Os bandeirantes, em suas entradas, vergaram a sua vertical.* É o primeiro momento do banquete totêmico. Toma-se posse da mãe terra sem muita cerimônia. Não há escravos então, há preação (aprisionamento de índios). É uma história de luta e de sangue. Não, não é bonita. Terá que ser decorada, condecorada para ficar bonita. Afinal parece que é sempre assim – toda história acaba sofrendo um processo de “heroização”. Recalcam-se os crimes. A língua, por exemplo, exclui de seu bojo o termo ‘preação’.
Enquanto a posse da terra, a possessão se alastravam, um novo produto agrícola – o café – se transforma na grande riqueza nacional. Em São Paulo não há mais escravos. As leis abolicionistas já haviam sido assinadas, quando a lavoura de café começa a dar seus frutos. Em São Paulo o trabalho é pago. O pagamento gera comércio. Comércio e agricultura geram indústrias. Indústria, agricultura, comércio: eis o combustível inicial das turbinas da locomotiva paulista…
b) A posse
Em 1917 é prefeito de São Paulo aquele que acabaria assumindo a presidência da República: Washington Luiz Pereira de Souza. É sob seu governo que se institui um concurso público para a escolha de um brasão e de uma divisa para a cidade. Afinal de contas já não era sem tempo pensam muitos. A Grande Guerra parecia prestes a acabar e o gigantesco surto industrial de São Paulo estava sendo esboçado com traços cada vez mais fortes.
Saem vencedores desse concurso, entre 32 candidatos, a dupla formada pelo poeta Guilherme de Almeida e pelo pintor José Wasth Rodrigues.
Assim, pomposamente, o brasão é descrito no Ato Municipal nº 1057, de 8 de março de 1917: “Escudo português de goles com um braço armado movente do flanco sinistro empunhando um pendão de quatro pontas farpadas ostentando uma cruz de goles, aberta em branco sobre si, da Ordem de Cristo, içada em haste lanceada em acha d’armas, tudo de prata. Encima o escudo a coroa mural de ouro, de quatro torres, com três ameias e sua porta cada uma. Suportes: dois ramos de café, frutificados, de sua cor. Divisa: Non ducor duco, de goles, em listão de prata.
“Non Ducor Duco” comenta o historiador Hilton Federici em sua obra Símbolos Paulistas, “ é a famosíssima e incisiva frase, que bem se coaduna com o sentido dinâmico da história paulistana, que foi um continuado suceder de grandes realizações… essa divisa tornou-se, de pronto, caríssima não só ao coração dos paulistanos, mas de todos os paulistas. Sentia-se, em seu conteúdo, uma extrema afinidade, entre paulistanos e paulistas, capaz de amalgamar todos os naturais do Estado de São Paulo, qualquer que fosse o seu torrão natal… tal a forma com que se enquadrava à mentalidade criadora e condutora de todo o seu povo”.
O que foi bravata vira desbravamento no processo de heroização. Sintetiza o poeta: – “Non Ducor Duco”.
Os rudes bandeirantes se transformam em gentis civilizadores. É o momento da posse; passagem das armas para o brasão de armas. A quem São Paulo diz não, não sou conduzido? Diz para aquele que tinha o mando e a conduta. Dizendo não ao pai acaba com ele se identificando em sua ação: eu conduzo.
“Non ducor duco” pode ser cotejado com a frase de Göethe citada por Freud em Totem e Tabu, quando se pergunta: “quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?” Responde ele então com Göethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.
Em 1922 vamos assistir a grande consagração e conquista dessa divisa. Realiza-se em fevereiro, nos dias 13, 15 e 17, no Teatro Municipal a “Semana de Arte Moderna”. Cada dia correspondia a um festival – Pintura e Escultura, Literatura e Poesia e Música. Deles participaram escritores (Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Renato de Almeida, Afonso Schmidt, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida e Plínio Salgado); músicos (Villa Lôbos, Otávio Pinto, Paulina de Ambrósio, Ernâni Braga, Alfredo Gomes); artistas plásticos (Vitor Brecheret, Leão Veloso, Haaberg, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Ferrignac, Zina Aita, Martins Ribeiro, Osvaldo Goeldi, Regina Graz e Castello); e arquitetos (Antônio Moya e Georg Pzrirembel).
Buscavam na vanguarda de todo o mundo uma forma de expressar com maior vigor a “dolência e a revolta da terra brasileira”, contou Mário de Andrade.
Era um basta ao passadismo. Enquanto Graça Aranha em sua conferência sobre “A emoção estética na arte” elogiava os trabalhos expostos e investia contra o academicismo o sempre Mário de Andrade sonetava “o passado é lição para se meditar, não para reproduzir”. Parece mesmo que leu Lacan no “Seminário da Identificação”, de onde depreendemos que da letra básica do recalque primeiro o que nos é possível obter é só a repetição da diferença, visto como: “O passado é lição para se meditar, não para reproduzir”.
A Semana de Arte Moderna leu na inscrição: “Non ducor duco” a exigência do contemporâneo. Da posse da terra bandeirante, do primeiro movimento de interiorização das entradas se responde com a abertura ao exterior.
Refletem alguns historiadores, entre os quais destaco Carlos Guilherme Mota, que São Paulo foi internacional antes de ser nacional.
O que passa a ser buscado no “Duco”, na condução do eu conduzo? O próprio movimento, o contemporâneo, o estar no movimento do tempo. Entendo que é uma das razões do colossal aumento da população. Em São Paulo não há o estrangeiro. Internacionalizamos o tupi no “tupi or not tupi” de Oswald de Andrade; maravilhosa figura de Shakespeare de cocar.
c) A possessão
“Nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram a expressão de seus próprios sentimentos. Uma tal compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação original com o pai pode ter possibilitado às gerações posteriores receberem sua herança de “emoção”.
Qual a herança de emoção da relação do bandeirante com o Pai?
Já sabemos a resposta, começamos esse trabalho citando-a: “São Paulo não pode parar”.
Pode ser visto como um imperativo Super-Egóico de sofrimento mas, por outro lado, pode ser visto como um ensinamento sobre o Real – “ ele não cessa de não se escrever” admitir sua presença é se habituar ao movimento e à repetição da diferença. Preferimos essa segunda visão.
Assim “non ducor duco” tem se repetido no cotidiano dos paulistas. É uma divisa “comme il faut” – longe de um pretenso ufanismo, ela divide, castra. Não há descanso ao sujeito, sempre o responsabiliza pela direção.
Talvez a grande lição de São Paulo, recentemente, foi dada pelo dramaturgo e ator Gianfrancesco Guarnieri quando foi seu Secretário da Cultura – disse ele – “A periferia? ora a periferia está em toda a parte” o que ensina que não há centro – o centro, ora, o centro está em toda a parte.
Em São Paulo sente-se a cor e o cheiro do Trastevere, chora-se com saudade de George Gershwin como o faria Woody Allen em sua Manhattan. Aqui suspirou Mário de Andrade: “Minha Londres de neblinas frias”, tangendo o alaúde como um tupi.
Termino com as palavras de Menotti del Picchia em seu discurso de abertura da Semana de Arte Moderna de 1922: – “Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações operárias, idealismos, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho…”