No curso Psicanálise & Neurociências: os erros de Damásio e de Solms, realizado pelo Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA), em 18 e 19 de junho de 2004.
No tempo das caras, dos zappings, dos clipes e dos cliques, provocamos. Provocar, literalmente, quer dizer “fazer falar”. Difícil recuperar tudo o que foi dito por Daniele Riva. Ademais, provavelmente não seria tudo lido. “Nada de tudo!” – afirmava Lacan. Resolvemos pelo caleidoscópio de idéias, frases soltas, opiniões decididas. Tiradas de seu contexto, facilitam o mal-entendido? Certamente. Não seria diferente se publicássemos a transcrição na íntegra. Só disfarçaria o mal entendido estrutural. À vous de jouer.
Primeira sessão:
As Neurociências – História, objeto, métodos, resultados, fronteiras.
“Não se passa do nível de descrição psicopatológico para o nível neuronal”.
“Comparar a psiquiatria com o resto da medicina é, no mínimo, uma ingenuidade”.
“Na ciência médica atual, o excesso de fatos, às vezes sem importância, impede a teorização, que é um processo criativo”.
“Saltar do estudo dos mediadores e moduladores – como a serotonina e a melatonina –para a função psíquica é grotesco”.
“É ficção científica ver o pensamento no cérebro”.
“As neuro-imagens acrescentam pouco àquilo que já sabemos. Fazemos com elas o mesmo que sempre fizemos nas necropsias: localizar lesões, marcas, diferenças. Elas são pouco explicativas, permitem poucos modelos teóricos”.
“Antes, as ciências não tinham lugar para o inconsciente. Hoje, não têm lugar para a consciência”.
“A neurologia não tem como explicar estados qualitativos de consciência”.
“Há uma irredutibilidade entre descrições a nível neural e todas as psicologias compreensivas”.
“O que nossa mente faz bem, os computadores absolutamente não fazem. Nossa mente faz mal o que fazem bem os computadores”.
“O nível de seriedade dos trabalhos em neurociências está caindo de maneira espantosa. O nível cultural dos trabalhos médicos está em queda livre. E, ainda, há uma volúpia de se dirigir ao grande público”.
“Os colegas da psicologia estão encantados com o Cavalo de Tróia: essa invasão biológica quer destruí-los”.
“A ‘medicina baseada em evidências’, quando reduz os estudos aos grandes protocolos, está emburrecendo os médicos, porque destrói tudo o que é qualitativo, refinado. Os alunos são estimulados a pensar por algoritmos. São tratados como idiotas”.
“Há escolas já com 30% de crianças medicadas nas classes, para os ditos “distúrbios de atenção” ou “comportamento”, que tiveram definição sobreposta e alargada. O subtrato ideológico disso é o sonho do filho perfeito”.
“Quando a medicina perde sua ética, torna-se um mostrengo que processa gente”.
Segunda sessão:
Neurociência & Neuroideologia – A produção científica e seus desdobramentos ideológicos.
“Em nosso tempo, as mentes estão se tornando caleidoscópicas: reúnem cacos informacionais sem hierarquização, em um movimento que não busca sistematicidade”.
“Argumentos racionais não combatem ideologias”.
“A medicina tornou-se eficiente apenas no século XX. Ela já era hegemônica antes de ser eficiente. Era hegemônica mesmo nos tempos em que a atitude do médico era idêntica à do curandeiro”.
“A medicina controla seu mercado. Ela amplia ou restringe sua demanda conforme amplia ou restringe as definições de doenças”.
“Ninguém aqui tem nenhuma dúvida de que o bandido é a grande indústria”.
“Na minha época, o médico era o advogado de defesa do paciente. O médico que freqüentava os laboratórios era mal visto”.
“Há colegas que viajam o tempo inteiro por conta dos laboratórios. Eles juram que isso não compra a consciência deles. Podem dizer isso para quem acredita em qualquer coisa, não para pessoas inteligentes”.
“Não se descobrirá o gene da violência”.
“A noção de progresso da ciência é ideológica. O conhecimento pode mudar para melhor ou pior. Há áreas médicas em que estamos emburrecendo”.
“Sou contra a medicina que se apresenta em uma luta titânica contra a doença”.
Terceira sessão:
Neuro-psicanálise – A propósito de um artigo publicado na Scientific American.
Mark Solms diz que a atualidade das ciências seria satisfatória a Freud, porque esclarecedora. Riva discorda: “tal como no tempo de Freud, mesmo hoje não temos ciência que responda sobre o cérebro normal ou neurótico. Ao olhar o cérebro, só podemos ver se há lesão ou não”.
Solms cita Damásio, Kandel, LeDoux, Libet, Panksepp, Ramachandran, Schacter e Singer como experts da neurociência comportamental que forjam, hoje, o que Kandel chamou “um novo arcabouço intelectual para a psiquiatria”. Neste arcabouço, diz Solms, a psicanálise teria papel similar ao da teoria evolutiva de Darwin em relação à genética molecular: ser um quadro no qual os detalhes descobertos podem ser arranjados coerentemente. Riva responde: “Tenho enorme admiração por Kandel, que recebeu prêmio Nobel por um estudo de como os mediadores mudam os reflexos em um certo molusco da Califórnia. Para surpresa geral, duvido que Kandel tenha leitura mais que marginal da psicanálise. Todos os nomes citados têm valor apenas por discurso de autoridade. São neurocientistas sem a menor experiência em psicanálise. Não são as pessoas mais autorizadas para emitir opinião sobre a junção dessas áreas. Aqui, são cristãos-novos”.
“O ‘inconsciente’ é uma idéia que já existia, e Freud a usou de maneira extremamente criativa. Não foi criada por ele, como diz Solms”.
A neurociência divide a memória em sistemas que processam a informação explicitamente ou de maneira implícita, consciente ou inconscientemente, exatamente ‘como propôs Freud” – diz Solms. Riva rebate: “o corte freudiano não é equivalente ao neurológico. Freud distingue o recalcado por um critério semântico”.
De acordo com Solms, a neurociência mostra que estruturas essenciais para a formação da memória explícita no cérebro não funcionam nos primeiros dois anos de vida, o que proporciona “uma explicação elegante do que Freud chamava ‘amnésia infantil’” (p. 59). Diz Riva: “aqui, Solms afirma o absurdo de que, para Freud, a criança seria um mini Alzheimer incapaz de memorizar em virtude de sua biologia. A ‘amnésia infantil’ não é isto”.
Solms exemplifica a base da ‘denegação’ freudiana em pacientes com lesão em um hemisfério do cérebro, de modo que ficam com um hemi-corpo. Clinicamente, é um paciente que não reconhece um dos lados do seu corpo, não se barbeia ou calça o sapato desse lado. É também, esclarece Riva, um paciente que não reconhece o mundo da sua linha média para um lado: ou seja, come apenas o que está na metade reconhecida do prato. Nessas condições: “é difícil usar o sentido dinâmico de ‘denegação’ para um hemi-prato de ervilha”.
“Os norte-americanos abandonam paradigmas científicos de uma maneira que não deixa marcas. Onde foi parar o comportamentalismo? Aqueles ratos, coelhos, aquelas séries de gaiolas?”
“Como neurologista, conheço o trabalho de Damásio de outras épocas. De quando ele era sério”.
“A medicina trata o organismo. A pessoa, para a medicina, é uma categoria ética, não é uma categoria epistemológica.”
Nota: é evidente que Daniele Riva não reviu essa seleção.
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