Maria Helena Barbosa
Assim como Jacques Lacan diz em seu Seminário O Sinthoma, que James Joyce foi capaz de identificar-se ao seu sinthoma sem passar por uma análise, proponho que Jean-Luc Nancy fez um relato de passe através de seu texto “O Intruso” sem, no entanto, haver passado por tal procedimento.
Jean-Luc Nancy (26/7/40), filósofo francês, é um crítico de Lacan. Seu primeiro livro, publicado em 1973, Le titre de la lettre, é uma leitura da obra de Lacan, escrita em colaboração com Philippe Lacoue-Labarthe, também filósofo e fortemente influenciado por esta obra.
J-L Nancy é autor de obras sobre muitos pensadores, incluindo GWF Hegel, I Kant, R Descartes e M Heidegger. Suas principais influências incluem J Derrida, G Bataille, M Blanchot e F Nietzsche.
Durante o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Nancy teve sérios problemas de saúde. Sofreu um transplante cardíaco e sua recuperação foi dificultada pela luta contra um cancer.
No entanto, continuou a escrever. Várias de suas publicações são deste período, O Intruso é uma delas. Neste texto, publicado em 2000, ele conta sua experiência de receber um transplante de coração.
Nele encontramos um relato apaixonado/apaixonante, por diversas vezes poético e que, do ponto de vista psicanalítico, revela a transformação radical pela qual passou J-L Nancy a partir da intrusão do real.
No texto ficam evidentes várias frases que correspondem a momentos passíveis de alguma formalização que mostram que uma mutação ocorreu. A partir do encontro com o real, ele relata os efeitos da elaboração de sua relação com diversos aspectos da subjetividade, as várias modificações que operaram em decorrência disto e a consequente transformação ocorrida.
Surge para ele o que Lacan procurou formalizar com o passe, o final de uma análise em que é possível captar uma lógica que mostra que algo novo se produziu na experiência de alguém. Seu depoimento descreve como há algo de novo em sua relação com o real e que, mais além, a sua relação ao sintoma, antes causador de sofrimento, tornou-se satisfatória.
Tenho por hipótese que ele nos mostra como essa transformação se dá justamente naquilo que está diretamente ligado a sua forma de sintoma, que é da ordem do pensamento.
J-L Nancy, um pensador por excelência, quase no início do texto relata que se depara com, segundo suas palavras, “A intrusão de um corpo estrangeiro no pensamento. Este branco me ficará como o pensamento mesmo e seu contrário ao mesmo tempo.”.
É a intrusão do seu coração antes “tão ausente”, sendo então que, “algo se destacava de mim, ou esta coisa surgia em mim,… uma limpa imersão em mim de um “eu próprio” que nunca tinha se identificado como este corpo, menos ainda como este coração, e que se olhava subitamente.”.
Ao longo do texto, podemos ver o quanto esta experiência que o atinge e que o faz sofrer em seu pensamento se transforma até chegar em sua última frase,no pós-escrito, onde advém: “Esse pensamento traz uma alegria singular.”.
Ao longo do relato, ele nos mostra como isto que excede, um acontecimento de corpo, o divide, faz cair todos seus suportes imaginários, traz a perda do reconhecimento e de seu sentido, coloca-o diante de duas vidas e de duas mortes, diante do desejo e do gozo, do objeto insubstituível, o destitui de sua posição subjetiva, traz o objeto esvaziado, o Outro que não existe, a angústia constitutiva, a decisão, a consequência, o impossível de negativizar, o enigma do gozo, o gozo-me, a verdade mentirosa e o sinthoma.
Tomar O Intruso por este viés não tem a intenção de engessar o autor ou o seu texto. O intuito é seguir com Freud e Lacan, que nos ensinaram que “… a única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição é a de se lembrar que em sua matéria o artista sempre o precede… Que a prática da letra converge com o uso do inconsciente é tudo que darei testemunho…” * ao procurar estabelecer essa articulação do texto com o passe na Escola.
Assim, na primeira parte do texto podemos marcar:
– O encontro com o real, com a contingência. Nancy escreve: “O intruso se introduz à força, de surpresa ou por astúcia, em todo caso sem direito, sem ter sido de saída admitido.”.
– O real enquanto tal: enquanto o que excede, enquanto o que não cessa de não se escrever. Onde não há harmonia e sim, inadaptação. Onde há um fenômeno anti-vital, sem juízo, sem medida. Um desbussolamento. Ele escreve: “… em vez de simplesmente naturalizar-se, sua vinda não cessa… sem direito e sem familiaridade… um desarranjo, uma perturbação na intimidade.”.
– Um encontro do qual não se sai impunemente. Um acontecimento. Ele escreve: “Acolher o estrangeiro, quer dizer também sua intrusão…. o estrangeiro insiste e faz intrusão. É isso que não é fácil de receber, nem talvez de conceber…”.
Na segunda parte encontramos:
– O eu é um outro. Com ele: “…: qual é este sujeito da enunciação, sempre estrangeiro ao sujeito de seu enunciado, do qual ele é forçosamente o intruso, e, no entanto, forçosamente o motor,…”
– A queda dos suportes imaginários. Escreve: “… todos os signos podiam vacilar todas as balizas se revirarem. Sem reflexão, é claro, e mesmo sem a identificação de nenhum ato, nem de alguma permutação.”.
– O sintoma é um acontecimento de corpo. Seguindo com ele: “… algo se destacava de mim, ou esta coisa surgia em mim… nada mais que uma “limpa” imersão em mim de um “eu próprio” que nunca tinha se identificado como este corpo, menos ainda como este coração, e que se olhava subitamente.”.
– O objeto a. De seu escrito temos: ”…, a sensação física de um vazio… Se meu próprio coração me largava, até onde ele seria o “meu” e meu próprio órgão? Seria ele mesmo um órgão?… Para mim ele se tornou um estrangeiro, ele fazia intrusão por deserção: quase por rejeição, senão por dejeção… Que vazio aberto subitamente no meu peito ou na alma – é a mesma coisa -… Aqui, o espírito se choca com um objeto nulo: nada a saber, nada a compreender, nada a sentir… Este branco me ficará como o pensamento mesmo e seu contrário ao mesmo tempo.”.
– O estranho. Ele escreve: “Eu já não estava mais em mim…. Uma estrangereidade se revela “no coração” do mais familiar -… Até aqui, ele era estrangeiro por força de não ser mesmo sensível, nem mesmo presente. Doravante, ele desfalece, e esta estrangereidade me devolve a mim mesmo. “Eu” sou, porque sou doente.”.
Da terceira parte podemos extrair:
– A cadeia significante é polifônica. “… isso só acontece com a condição de que eu o queira e alguns outros comigo… eu mesmo enfim, que me descubro mais duplo ou mais múltiplo que nunca.”.
– As duas vidas/as duas mortes. Com ele: “… sobrevivo ainda hoje: quem dirá o que “vale a pena”, e que pena?… minha sobrevida está escrita num processo complexo tecido de estrangeiros e de estrangeireidades… Sobre uma sobrevida que não podemos considerar de um estrito ponto de vista de uma pura necessidade: onde iremos buscá-la? O que me obriga a me fazer sobreviver?… por que eu? Por que sobreviver em geral? O que significa sobreviver?… Em que uma duração de vida será ela um bem?… E por que… não há mais “tempo justo” para morrer?… A vida só pode impelir à vida. Mas ela vai também à morte”.
– O gozo e o desejo. Assim escrito: “Não pretendo tratar a quantidade com desprezo, nem declarar que não sabemos mais contar senão com a duração de uma vida, indiferentes à sua “qualidade”.”.
– O corpo é do outro. Ele escreve: “… meu coração, meu corpo, me são vindo de alhures, são alhures em mim.”.
– Sobre a angústia constitutiva. Com ele: “Isolar a morte da vida, não deixar uma intimamente trançada com a outra, cada uma fazendo intrusão no coração da outra, eis aqui o que nunca se deve fazer.”
– Não há como se preparar para o encontro com o real. Ele segue: “É preciso, somente, dizer que a humanidade nunca esteve preparada de alguma maneira para essa questão, e que seu despreparo para a morte é apenas a própria morte: seu golpe e sua injustiça.”.
E na quarta parte:
– A elaboração de J-L Nancy de sua relação com o real. Ele escreve: “Assim, o estrangeiro múltiplo que faz intrusão na minha vida não é outro que a morte, ou antes, a vida/a morte: uma suspensão do contínuo de ser, uma escansão na qual “eu” não tem/tenho muito o que fazer. A revolta e a aceitação são igualmente estrangeiras à situação.”.
– o objeto esvaziado de significação, de sentido, de sexo passa à coisa opaca. Ele diz: “A coisa excede minhas possibilidades de representação.”.
Na quinta encontramos a busca por amarrações:
– A vida, o corpo e o órgão. Temos com ele: “Que vida “própria” é esta que se trata de “salvar”?… essa propriedade não reside de forma alguma no “meu” corpo… nem neste órgão cuja reputação simbólica não cabe mais fazer.”
– Um nó estabelecido, em que: “Vida “própria” que não está em nenhum órgão e que sem eles não é nada. Vida que não somente sobrevive, mas que vive sempre propriamente, sob um tríplece domínio estrangeiro: o da decisão, o do órgão e o das consequências do enxertar.”.
Na sexta:
– O Outro não existe. Mais uma vez, J-L Nancy: “… toda a simbolização duvidosa do dom do outro, de uma cumplicidade ou de uma intimidade secreta, fantasmática, entre o outro e eu, se desfaz muito rapidamente.”.
– O que existem são os outros. Os monólogos articuláveis. Ele escreve: “… uma possibilidade de uma rede em que a vida/morte é partilhada, na qual a vida se conecta com a morte, onde o incomunicável se comunica.”.
– Não se domestica o objeto, ele não é substituível mesmo que substituido. E o desejo é um fantasma na medida onde nenhum ser suporta-o. Seguindo com ele: “… muito rapidamente, o outro como estrangeiro pode se manifestar:…o outro insubstituível que, no entanto, se substitui… Não é isso, mas se trata justamente do que é intolerável na intrusão do intruso, e é rapidamente mortal se não for tratado.”
– A destituição da posição subjetiva, para reconhecer seu estar no objeto, se revela uma miragem da verdade. Ele diz: “… tornar-se estrangeiro a mim mesmo não me aproxima do intruso.”.
Agora na sétima parte destaco:
– A destituição da posição subjetiva. Temos: “A estranheza e a estrangeiridade tornam-se comuns e cotidianas. Isso se traduz por uma exteriorização constante de mim.”.
– Algo resta, algo insiste. J-L Nancy escreve: “No meio de tudo isso, qual “eu” persegue qual tragetória?”.
Na oitava:
– O sinthoma excluído de sentido é uma montagem. Ele fala: “Sinto isso bem, é muito mais forte que uma sensação: nunca a estrangereidade de minha prórpia identidade, que, no entanto, sempre me foi muito viva, não me tocou com esta acuidade. “Eu” passa a ser com clareza o index formal de um encadeamento inverificável e impalpável.”
– O eu e o eu ideal. Aqui: “Entre eu e eu, sempre houve um espaço-tempo.”.
E a nona:
– Para uma definição possível do mecanismo da neurose ele diz: “… o sofrimento é a relação de uma intrusão e de sua recusa.”.
– A relação com o imaginário após a travessia: “Sai-se transtornado da aventura. Não se reconhece mais: mas “reconhecer” não faz mais sentido… somos apenas uma flutuação, uma suspensão de estrangeiridade entre estados mal identificados…. Dirigir-se a si mesmo torna-se um problema, uma dificuldade ou uma opacidade… A identidade esvaziada de um “eu” não pode mais descansar em sua simples adequação (em seu “eu=eu”)…”.
– Na neurose: “… no “eu sofro”, um “eu” rejeita o outro..”.
– No sinthoma: “… ao passo que no “eu gozo” um “eu” excede o outro.”
A décima e última:
– O enigma do gozo – se resolve? J-L Nancy responde assim: “De um mesmo movimento, o “eu” mais absolutamente próprio afasta-se a uma distância infinita e mergulha numa interioridade mais profunda do que qualquer interioridade… a verdade do sujeito é a sua exterioridade e sua excessividade: sua exposição infinita. O intruso me expõe excessivamente. Ele me extruda, ele me exporta, ele me expropia.”.
– E então? Ele diz: “Somos os começos de uma mutação, efetivamente: o homem recomeça a ultrapassar infinitamente o homem… Ele se torna o que ele é: o mais terrível e mais perturbador técnico…, aquele que desnaturaliza e refaz a natureza, que recria a criação, que a retira do nada e que, talvez, a reconduza ao nada. Aquele que é capaz da origem e do fim.”.
Por fim, o seu pós-escrito:
– Gozo-me: “De uma maneira ou de outra, uma nova estrangereidade tomou conta de mim. Não sei bem a que título sobrevivi, nem se tive verdadeiramente os meios ou mesmo o direito.”.
– A verdade mentirosa: “Quando esse pensamento me atravessa, compreendo que não tenho mais um intruso em mim: tornei-me um, é como intruso que frequento um mundo no qual a minha presença poderia bem ser por demais artificial ou muito pouco legítma.”.
– O sinthoma: “Tal consciência não seria de forma banal aquela de minha singelíssima contingência?… Esse pensamento traz uma alegria singular.”.
* J. Lacan, Outros Escritos, pg.200