/O excitante amor ao diferente

ALIÁS DOMINGO, 17 DE JANEIRO DE 2010

O excitante amor ao diferente

Estudante de direito e filha de professora universitária ajuda namorado, office-boy procurado pela Justiça, a assaltar a própria mãe.

Jorge Forbes*

A filha, ao mesmo tempo que se despede da mãe que está indo para a missa, pedindo que lhe trouxesse um doce quando voltar, fala ao telefone com o namorado, passando as coordenadas dos movimentos da mãe, para que o assalto planejado pelo bando desse namorado seja feito com a melhor precisão.

De uma só vez essa menina, de cara angelical e voz infantilizada, consegue romper dois dos principais tabus sociais: mãe e religião. Com mãe e Deus não se brinca, ditava a cartilha de qualquer meliante. Quando os “intocáveis” do laço social começam a desmoronar, com justa razão há um alerta geral, e essa pequena notícia veiculada nessa semana fica incomodando tal qual uma espinha, ao lado de tragédias bem mais retumbantes.

A menina é loira, estudante de direito, filha de professora universitária e de procurador de Justiça. O menino é moreno, office-boy, procurado pela Justiça. Silêncio: cuidado com pensamentos politicamente incorretos sobre essa união. Que ninguém venha falar que o menino é o lobo mau dessa doce chapeuzinho. Nem a mãe nem o pai da menina nada devem ter dito, dada a convivência íntima por dois anos, em sua casa. Tem muito pai e mãe que não falam mais nada para seus filhos, hoje em dia, amordaçados pela patrulha do politicamente correto. Se disserem alguma coisa, estarão discriminando. Mas não haveria uma forma de se falar, sem ser condenado por sua opinião? Vejamos.

Quando pessoas convivem por muito tempo, de duas, uma: ou elas têm muita coisa a repartir – interesses, valores culturais e éticos -, ou elas, sendo muito diferentes, tentam anular a diferença que as afasta, hipertrofiando os prazeres básicos sexuais e anulando qualquer outro sistema de laço social que as distancie. Logo, o desastre não é decorrente do fato de um ser supostamente melhor que o outro, mas de que, quanto mais distantes forem, mais primária, no sentido de menos elaborada, será a relação, necessariamente. O duro, a se acrescentar, é que o amor entre os diferentes é muitas vezes mais excitante do que a modorrice dos semelhantes. Será que os pais poderiam explicar isso a seus filhos e, especialmente, a si próprios? E mais, nem sempre o que é explicado tem que ser entendido. Pais não devem temer o mal-entendido; não há um bom pai, ou boa mãe – seja o que for que entendamos por isso – que já não tenha ouvido “eu não gosto de você” de um filho. Logo, pais, não recuem quando não concordarem, quando não aceitarem.

Nessa sociedade que perdeu os parâmetros há que se tomar cuidado em se pensar que finalmente somos todos iguais. Não, ao contrário, o que fica evidente é que somos todos diferentes, o que exige muito mais responsabilidade em qualquer relação. Se não for assim, estão abertas as portas à esculhambação generalizada: ao estupro de menores, ao furto de velhinhas, ao roubo de mães.

Não houve quem não associasse esse incidente carioca com o assassinato de um casal em São Paulo, com a participação da filha igualmente estudante de direito. (Nada de conclusões precipitadas sobre as estudantes de direito…) Será que a família vai desaparecer, como pensam alguns? Será que a família é uma relação como outra qualquer? Contrariando o bom-senso, que sempre pensa mal, a tendência da globalização é de sublinhar um novo valor da família, que não é desmentido pelo grande aumento dos divórcios, se entendermos a lógica. A família será o centro da responsabilidade ética – disse ética, e não moral – da sociedade. Família, grosso modo, é do que nos queixamos com mais veemência e paixão. É o grupo do qual mais se espera o reconhecimento que nunca chega e a compreensão impossível de sua dor. É na insatisfação da família que cada um lapida o que lhe falta, a saber, o seu desejo, pois não há desejo sem falta.

Luc Ferry, em livro recente, Famílias, Amo Vocês – Política e Vida Privada na Era da Globalização, defende a ideia de que depois da era na qual os humanos se guiavam pela transcendência divina, substituída pela transcendência da razão no Iluminismo, alcança-se, na globalização, a “transcendência da imanência”. Vale uma explicação: ao contrário do que se pode imaginar, os tempos atuais de forte individualismo não caminham para o isolacionismo, mas para a rede social. E é na rede social, no confronto com o parceiro, que cada pessoa tem a ocasião de perceber o que Freud chamou de “o estranho”, “Das Unheimlich”. Quando nos encontramos com alguém, mais claro fica que alguma coisa de mim falta ao encontro, exatamente essa coisa estranha, essa transcendência da imanência, essa falha na minha intimidade, esse “êxtimo”, como o nomeou Lacan. Pois bem, depois do divino e da razão, é essa intimidade estranha que servirá de guia ético para o novo tempo. Sua estranheza exigirá de cada um duas coisas: invenção e responsabilidade. Inventar um sentido para o que não tem, para o estranho, e se responsabilizar pela sua publicação no mundo.

Se ontem as famílias estavam a serviço da República, mandando seus filhos para a guerra, por exemplo, hoje, a República deverá servir às famílias. É o remédio contra o que nos repugna: uma filha ficar de campana para a mãe ser assaltada.
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* Psicanalista, preside o Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano – USP

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