Jorge Forbes
Artigo publicado na revista “Rio Dermatologia”, dezembro de 2007.
Ela tinha rugas na testa, consertou com um pouco de toxina botulínica. Suas sobrancelhas, em conseqüência, levantaram nas laterais; ela ficou com olhar de bruxa. Mais uma aplicação, a testa ficou lisa e imóvel; agora, ela ficou com cara de paisagem. Ele brigou, ela chorou.
Historietas semelhantes se repetem no dia a dia dos consultórios. Onde parar, quando a natureza não é mais o limite? É a questão. Até pouco tempo atrás – não muito mais que trinta anos – a vontade de mudar era menor que a possibilidade tecnológica de fazê-lo. E isto não só na medicina. Um telefone, por exemplo, era substituído quando um novo produto era fabricado, com evidente superioridade sobre o anterior. Hoje, não é a superioridade o foco principal da oferta de novas tecnologias, mas a diversidade e a multiplicidade. Não se faz um novo produto porque há uma demanda do mercado, mas, em uma inversão revolucionária, tecnologia gera tecnologia, um novo produto começa a ser fabricado antes mesmo de que o seu anterior seja comercializado, gerando um efeito paradoxal: a necessidade de fabricar demanda.
Qual a incidência deste fenômeno na medicina? Semelhante a outros campos aqui também o “pode” passou à frente do “deve”. Se antes o médico era procurado para restituir a saúde que havia sido perdida, em nossa época, cada vez mais, o médico é solicitado a acrescentar uma saúde que não existia. Saúde entendida em amplo sentido. Assim surgiu, mais especificamente na dermatologia, o termo “cosmiatria”, palavra composta de um prefixo vindo da cosmética e sufixo da medicina. A timidez inicial dessa prática vem cedendo lugar a seu amplo uso, motivo que precipita a discussão ética dos limites.
Uma forte tendência da medicina atual é a chamada “medicina baseada em evidências”. Sob esse título se designa uma prática clínica fundamentada nas provas empiricamente demonstradas que geram frases, muito repetidas em congressos, do tipo: “os últimos trabalhos mostram que…”, nas quais o importante é o “mostram”, como se uma pesquisa “mostrasse” algo, indiferente ao pesquisador. Dessa forma, diminuindo a subjetividade do médico na clínica, se erraria menos, acreditam. O que passa despercebido, é que, simultaneamente, essa tendência transforma o médico em um simples aplicador de tecnologia. Já vemos pacientes que exigem de seu médico tal ou qual remédio ou procedimento que viram em fantásticos programas de televisão, entendendo ser má-vontade se não forem atendidos desta forma. Casos de médicos apanhando por se recusarem a este tipo de exigência, começam a ser freqüentes. Como tratar?
Entre o progresso tecnológico, as provas científicas empíricas, e as exigências e as queixas dos pacientes, o médico de hoje terá que se reposicionar eticamente. Não deve se esperar que os exames clínicos diminuam a responsabilidade do médico, anulando a sua subjetividade. Frente aos mesmos exames, de um mesmo paciente, as possibilidades clínicas sempre serão múltiplas. Impossível eliminar a dúvida e a escolha da direção de um tratamento. Esta é a palavra: “escolha”. Se a tecnologia ultrapassou o limite da necessidade, apresentando um excesso inútil, o ato médico não mais se sustenta no que é necessário para um paciente, mas no que é desejável. E aqui não há empiria que mostre seja o que for. Não há camuflagem subjetivante possível, entenda-se, desaparecimento da pessoa do médico sob o manto da demonstração científica. Frente aos barbarismos de uma aplicação lesiva e irresponsável dos progressos técnicos, reatualiza-se a lição elementar de Miguel Couto: a clínica é soberana. A clínica é soberana pode ser a divisa da reconquista da medicina pelos médicos transformados em agentes da tecnologia. Qual a receita?
“Sapere aude”, ou seja, tendo a “audácia de saber” que o ato médico é inevitavelmente da responsabilidade de quem o realiza.
São Paulo, 15 de novembro de 2007