por Jorge Forbes
Jorge Semprún morreu neste mês (7/6/2011), aos 87 anos. Seus livros, especialmente “A Escrita ou a Vida”, foram fundamentais em minha formação. Reproduzo, abaixo, trecho de uma conferência que pronunciei há mais de uma década, na qual me vali de passagens de Semprún. Na conferência agora escrita – que guarda a marca da oralidade – eu trabalhava a diferença do insulto e do elogio, mostrando porque curiosamente as pessoas ficam mais presas ao insulto que ao elogio, e que a palavra “insulto”, originalmente, não quer dizer xingamento, mas somente “saltar sobre”. Transcrevo, no entanto, apenas o final, quando abordo o insulto por intermédio de Semprún. Mais um último detalhe. Um dia sentei com Jorge Semprún, para um café pós almoço, na Rue du Bac, em Paris, às 14 horas. Levantamos daquela mesa desconfortável cinco horas depois. Um dia talvez eu conte.
***********
“Para discutir essa questão da segunda clínica de Jacques Lacan e do risco do insulto, eu trouxe o exemplo de pessoas rigorosamente insultadas na vida, uma vez que estiveram em campos de concentração. Na história humana, não há insulto, difamação maior que o Holocausto. Jovens que sobreviveram a tal experiência se perguntaram se testemunhariam ou não o que lhes ocorreu.
É notável o exemplo de Primo Levi, italiano de Turim nascido em 1919, químico brilhante, preso em 1943, e que, por ser químico, conseguiu ficar trabalhando em um campo de concentração na Itália, antes de ir para o horror de Auschwitz. Passado a guerra, em 1947, escreveu um livro chamado “Isto é um Homem?” recusado inicialmente por seu editor, vindo a ser publicado só em 1957. A obra transformou-se em um dos clássicos da literatura mundial pela qualidade da escrita, pela verdade de sua posição e pela não-dramatização do texto. É o relato do dia-a-dia de uma pessoa progressivamente insultada. Em 1987, Primo Levi suicidou-se. Por quê?
Se nos basearmos em outro autor que também passou por um campo de concentração, Jorge Semprún, de origem espanhola e radicado na França, entendemos com ele, em seu livro “A escrita ou a vida”, que Primo Levi suicidou-se porque, ao ter escrito a sua experiência, a vida não lhe era mais suportável. O restante da dignidade humana – quando resta dignidade depois de um campo de concentração – recusou-se de maneira absoluta a uma sociedade capaz de fazer o que fez a seus cidadãos. Jorge Semprún afirma que não queria escrever o que viveu em Buchenwald, “Bosque de Faias”, nome maldito, pois se o fizesse não poderia mais viver, o que explica o título desse seu livro. Levou cinquenta anos para conseguir, enfim, redigir “A escrita ou a vida”. Mais tarde, quase em continuidade, lançou: “Adieu, vive clarté” [Adeus, viva a clareza], ambos pela Gallimard, na França; o primeiro, pela Cia. das Letras no Brasil.
Como continuar a viver quando se teve a infelicidade de sofrer o pior insulto do mundo sem poder respondê-lo e sem poder diminuir sua gravidade? É um problema enorme para quem esteve em um campo de concentração. Como, por exemplo, continuar frequentando festas, rir, dançar, sem ser cobrado pelos outros por não estar constrito? A tristeza e o recolhimento lhe são exigidos. Pode ainda existir vida depois de ter vivido isso? Para Primo Levi não houve essa possibilidade; para Semprún, sim. Ele se deu conta tardiamente de que todos os personagens de sua vasta obra literária nada mais eram do que cadáveres inventados; um engodo que ele agitava para se esquivar da morte, tal como o pano do toureiro frente ao touro furibundo.
– “É dessa maneira que eu me esquivava, que eu a distraía. O tempo que a morte perdia – tão brava e estúpida quanto um touro de combate – em adivinhar que mais uma vez só tinha conquistado um simulacro, era para mim uma vitória, eu ganhava tempo.”
Os personagens de seus romances funcionavam como se, no momento em que o balão estivesse perdendo altitude, ele jogasse um saquinho de areia e o balão tornasse a subir. Quando a morte se aproximava, jogava outro saquinho. Finalmente, descobriu que – “A morte enfiava os seus dentes sobre cadáveres de sonho”. Um grande escritor! “Cadáveres de sonhos” são fantasias que as pessoas oferecem à morte.
Em “Adieu, vive clarté…”, Semprún explica:
– “Eu não gostava da ideia de ser confinado no papel de sobrevivente, de testemunha digna de fé, de estima e de compaixão. A angústia me tomava pelo fato de ter que representar esse papel com a dignidade, a medida e a compostura de um sobrevivente apresentável: humanamente e politicamente correto. Eu não queria ser obrigado a viver para sempre nessa memória, dessa memória.”
É alguém que diz: “basta de acreditar muito nisso tudo”:
– “Eu me irritava com os obstáculos que minha memória impunha à minha imaginação romanesca. Uma vida muito aventurosa, muito carregada de sentido por vezes barrou os caminhos da invenção, levou-me a mim, enquanto eu pretendia inventar o outro, me aventurar no território imenso de estar além, de ser-outro. De certa maneira, eu não poderia ser escritor. (…) Este livro é o relato da descoberta da adolescência e do exílio, dos mistérios de Paris, do mundo, da feminilidade. (…) A experiência de Buchenwald não está presente aqui, nem lança nenhuma sombra. Também nenhuma luz. Está aí porque escrevendo Adieu, vive clarté…, pareceu-me reencontrar uma liberdade perdida.”
Semprún conta como se sentia aos quinze anos de idade, antes de ser pego na armadilha da Gestapo, antes de ter vivido naquele block 56:
– “Eu era então esse menino de quinze anos que descobria o borbulhante infortúnio da vida, suas alegrias também, inacreditáveis, em Paris, entre as duas guerras de sua adolescência. Aí estou eu de novo”.
É como encerro: “Aí estou eu de novo”.
(artigo publicado no site Vida Boa – Clique para ler o artigo no site Vida Boa)