/Pegada Clínica

Pegada Clínica [1]

 

Jorge Forbes

Ivete Villalba

 

Antes de querer fui querido. Antes de ser, fui sido. Talvez essa seja uma maneira que possamos enteder as linhas de Freud no “O Ego e o Id”: “Isso nos conduz de volta à origem do Ideal do Ego; por trás dele jaz oculta a primeira e mais importante identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Isso aparentemente não é, em primeira instância, a conseqüência ou resultado de uma catexia de objeto; trata-se de uma identificação direta e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer catexia de objeto.”[2]

Freud nos fala em pré-história pessoal, isso nos chama atenção, pois uma história é marcada a partir da inscrição na cadeia dos significantes. Aí começa uma história, de identificações podemos dizer, enquanto antes, o que há é algo diferente; uma identidade.

Há uma marca primeira, um momento constitutivo, preparo de uma história.

Afastemo-nos por um momento dessa aparente ontogênese. Já falamos em marca, em história e em identidade à diferença de identificação e mais adiante a esses conceitos retornaremos.

Mudemos o rumo e vamos pegar da clínica.

Ao falar da clínica temos que estar preparados para saber que nela há mudanças. A clínica psicanalítica não é um contínuo estático, que se repete na inércia acomodativa e mimética de seus atores. Basta lermos a primeira página do famoso “Recordar, Repetir e Perlaborar”; ali, em 1914, portanto quando ainda a psicanálise dava seus primeiros passos, já Freud avisava seus seguidores que a clínica tinha passado por mudanças e ele classificava três: recordar e ab-reagir, o trabalho em uma situação específica e a associação livre.[3]

Hoje falaremos em fim de análise. Sustentar esse tema não nos é importante só pelo que ele tem de objetivo em uma análise mas, e sobretudo, porque diz de uma ética, diz das vertentes da clínica e da atividade do analista.

O fim de análise em Freud é claro: a castração, o rochedo da castração. Freud a isso chamou de impasse. Toda análise chegaria a esse impasse que revela a incerteza da definição do bem para uma pessoa. Esse impasse, fim de toda análise, não é algo que se deva imputar a maus analistas mas, pelo contrário, aos bons, àqueles que, por isso mesmo, podemos dizer que têm condições de suportar uma análise.

Aonde Freud falou em impasse, Lacan propôs um termo: Passe. Se de imediato vem a pergunta se assim vai-se além de Freud, deixamos em suspenso. O passe tem a ver com a estrutura chamada Fantasma. É aí que há um passe, ou melhor referido em nossa língua: uma travessia, já por alguém cantada.

A estrutura do Fantasma coordena dois elementos heterogêneos: um, da ordem do significante – o sujeito; outro, objeto dito “petit a”. O sujeito não encontra seu ser na cadeia dos significantes, pois o que ele perde ao se constituir sujeito é exatamente seu ser. Lembremos que aonde se pensa, não se é. É no Fantasma que algo do ser está, enquanto objeto de um desejo, do Outro e, por contrapartida, ali onde se é, não se pensa.

No Fantasma chega-se ao objeto que se é. Uma análise tem a ver com essa construção que toca em um momento que é além da história, o momento que Freud chamou de pré-história , como já vimos ao iniciarmos.

Ainda, precipitadamente diríamos que uma análise antes de recuperar um passado, o que o bom senso nos facilitaria pensar, o que ela faz é instalar o passado, e daí relativizar o presente e permitir um futuro.

Mais nossa conhecida é a vertente que chamamos de Sintoma. Sem dúvida é por seu Sintoma que um paciente chega a uma análise pois este lhe causa desconforto e dele se quer livrar. Não sem certa apreensão, o sabemos, pois são comuns as solicitações: “Quero me ver livre disso mas não por isso deixar de ser o que sou.” Há também o que refletir nessa apreensão, mas não o faremos aqui.

A resolução do Sintoma dá-se na cadeia dos Significantes. Dito mais simplesmente, a própria regra fundamental é capaz de dar conta da mobilização da estrutura sintomal e se não o resolve, pelo menos o altera. A ficar nisso não seria diferente a psicanálise de outras psicoterapias e, por conseguinte, do tratamento médico clássico.

A frase de Lacan “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, hoje já tão propagada, a ponto de por vezes servir mais de rótulo que de reflexão, talvez acabe encobrindo que nem todo trabalho analítico se resume a interpretação. Na interpretação é uma pontuação do analista na cadeia significante, gerando um não sentido, abertura para novas articulações. Mas nem tudo é significante; à beleza, à estética, à criatividade, à poesia das formações inconscientes se contrapõem a inércia, o estático de algo que se repete invariante, em uma análise. Deixar de lado o que nos desagrada neste ponto é mais escamoteio que resolução.

Nem tudo é significante, daí nem tudo ser interpretação. Freud já havia dito mesmo em título: “Construções em análise”. Será que construção é igual à interpretação? – “Interpretação aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma construção, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva…” [4] (grifo nosso)

Há uma divisão de trabalho na proposta freudiana. A interpretação se faz a um elemento isolado do material, por isso chamamos, com Lacan, pontuação. A construção é posta, por quem? – Pelo analista. Há um dizer do analista sobre um ponto da história primitiva.

A interpretação pode ser feita e é feita na transferência e sobre as formações do inconsciente. É claro que estamos nos referindo aos neuróticos e portanto supondo uma estrutura de recalque. A construção é outra coisa; ela escapa ao trabalho da cadeia dos significantes, pois a estrutura fantasmática se repete mas não se conecta. Fora do significante, em sua pré-história, o sujeito encontra na análise o dever, o “soll” de sua existência.

Lacan propôs o fim da análise. A análise é interminável pela vertente do Sintoma. Aí, onde se conectam os significantes em cadeia, toda espera será frustrada, pois a cada novo significante sua solução será no próximo. O fim da análise diz respeito à mudança da posição do sujeito em relação à estrutura fantasmática. Alcança-se deixar de ser objeto da demanda do Outro para voltar-se a causa do desejo – Sujeito desejante -.

Resta a questão: como isso se dá, qual a sua operação? Uma primeira resposta é que o trabalho no Sintoma vai deixando marcas que assinalam o ponto da matriz significativa, o ponto fantasmático. Para vir a ser, contam-se as marcas de um caminho de lutas contra o Rei e de discussão com Deus, como referiu o poeta.

Tomemos um caso clínico do próprio Freud; o “Homem dos Ratos”. É bastante conhecida a riqueza do trabalho do Sintoma que Freud aí faz. Com facilidade e clareza acompanha-se o jogo estabelecido entre os termos que têm “Rat” como ligação: “Ratten” (ratos), “Spielratte” (rato de jogo), “Raten” (prestação), “Frau Holfrat” e outros mais.

Também o momento fantasmático está descrito quando o paciente relata a Freud o suplício dos ratos, a ele contado pelo capitão. A descrição que Freud faz da transformação que o paciente sofre: – “como uma face de horror ao prazer todo seu do qual ele mesmo não estava ciente” [5], fornece-nos de passagem, duas indicações clínicas do relato do Fantasma: o horror e a sensação de desconhecimento do próprio.

Posteriormente Freud formulou: “Agora estava aberto o caminho para a solução de sua idéia do rato” [6] e algumas páginas adiante: “É bem verdade que ele podia ver no rato uma imagem viva de si mesmo“. [7]

Freud, na cadeia significante detectou que rato tinha ligação com rói, de doença da mãe. Também notou quem era o homem dos ratos em imagem viva.

Não encontramos, entretanto, momento onde essa articulação tenha sido nomeada, dita, ao paciente. A ser assim, Freud se absteve de avalizar o “Homem dos Ratos” onde ele era – “wo es war” -.

Pelo que até aqui desenvolvemos, essa abstenção do analista e o simples aguardar é inútil. Sobre aquilo que não foi dito, deve o analista dizer. Nesse momento é avalista de existência. Dá o aval da mensagem invertida, a mensagem que determina o sujeito enquanto objeto. Objeto que não se é e aí se perde, dele ficando a marca de um atributo particular de identidade, que lhe possibilita constituir-se enquanto sujeito desejante.

Sendo o ponto fantasmático correlativo ao gozo, é nesse ponto que dar-se-á um saber em uma análise. “Onde estava o ser, ou o objeto da pulsão, ali eu posso advir, ou melhor, o saber pode advir. O saber pode ser assumido sobre esse objeto. Onde estava o significante, a única coisa que advém é a castração. Onde estava o ser, uma parte do saber advém.” [8]

Suportar uma análise é uma questão, ou mais, um risco. Dizia Lacan que o analista deveria suportá-la a seu próprio risco e de sua própria análise autorizar-se.

Se interpretar já traz problemas, que dizer de construir. Pobre daqueles que buscaram ser psicanalistas pois era um trabalho tranqüilo de só ficar ali, escutando, e tal qual Carolina, vendo o tempo passar. Positivamente, foram enganados. O trabalho e responsabilidade de um cirurgião têm mais semelhança que discrepância com o do analista.

“… Surge a questão de saber que garantia temos, enquanto trabalhamos nessas construções, de que não estamos cometendo equívocos e arriscando o êxito do tratamento pela apresentação de alguma construção incorreta” [9], foi a pergunta que Freud se pôs.

Ousemos uma resposta, começando por uma metáfora, tendo como ponto de partida o próprio Freud, em suas “Recomendações aos médicos”: “- o analista deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente.  Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor (…….) o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações livres do paciente.” [10] (grifos nossos)

Há então um inconsciente que determina as associações. É semelhante dizer que o Fantasma é a estrutura significativa que amarra as formações inconscientes sintomais.

Continuando com a metáfora radiofônica de Freud, sabemos que para localizar o exato ponto de uma estação transmissora desconhecida, devemos nos valer de três pontos distintos de escuta. O cálculo da direção e sentido dessas três recepções, mostra no seu entrecruzamento a localização do ponto transmissor.  A escuta decide do ponto: da estação Fantasma.

É assim que pensamos sobre Belkis. Abreviaremos sua história que melhor está desenvolvida em outro trabalho.[11] Em uma determinada sessão, repentinamente relata que quando por volta dos 6 anos, seu pai que era aviador, retorna de uma viagem de um mês aos Estados Unidos. Ela, sua mãe e seus dois irmãos, curiosos, aguardavam a abertura da mala que seguramente continha presentes para cada um. E o fato assim se deu: os irmãos foram todos presenteados e por último, do fundo da mala, o pai, como em surpresa, puxa o presente para sua mulher: um lindo peignoir Hollywoodiano. Esta, ao pegá-lo, amassa-o e joga-o a um canto dizendo: “Isso não é para mim, isso é coisa de Madame“. Belkis, lembrando disso, fala de sua linda coleção de peignoirs que hoje tem. Pergunta se isso não tem a ver com seu pai. Três acontecimentos tinham antecedido essa sessão, nos três algo se repetia: Belkis se via em posição de Madame e isso lhe causava vergonha, constrangimento e inibição.

A essa sessão relatada seguiram-se semanas de grande mal-estar, tendo sido necessário, em um momento, frente à pergunta de Belkis se sua vida não se resumia em colorir com essas tintas, as situações por onde passava, uma confirmação do analista: “É isso!”.

A atemporalidade do inconsciente ali estava exercendo sua função repetitiva. A análise instala um passado. Ali, onde isso era, vem um saber.  Três movimentos se dão: uma perda, a do “objeto a”, causador da angústia e do mal-estar, objeto que sutura o vazio, a chegada a -φ, e a recuperação em Φ, falo simbólico. Identidade a um traço, identificação a um significante, e não objeto de um sentido.

Sabemos que a análise não chega a dizer o bem, isso é questão para quem pôde o bem dizer, dizê-lo, sabendo no entanto, que pode ser qualquer coisa, que só agora, ao depois, dentro mexe.

Então:

Existe um fim numa análise que é dado pela referência ao objeto, onde a existência do sujeito está sendo mantida, quando neurótico; devendo ao analista dirigir dois movimentos: o de pontuar a cadeia significante – Sintomal – e o de decifrar os seus restos, indicando, dizendo, o ponto fantasmático, possibilidade da identidade particular do Sujeito, nas marcas que formam o próprio do trabalho do desejo; pois o sujeito do significante agora marcado, é o Sujeito do Inconsciente.

 

Referências bibliográficas

 Bataille, L. – Amor, Ódio e Ignorância, Analítica 3/4, Ateneo, Caracas, 1980.

– Fantasme et interpretation, Ornicar? 25, Paris, 1982.

 Lacan, J.    – Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse (Écrits).

  • Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien (Écrits).
  • Position de l’inconscient (Écrits).
  • Las Formaciones del inconsciente, Nueva Vision, B.A., 1976.
  • La relation d’object, Seminário inédito, 1956-57.
  • La logique du fantasme, Seminário inédito, 1966-67.
  • Proposition du 9 octobre 1967, Ornicar? – Analytica, Paris.

 Laurent, E.  – El final del analisis, Analítica 3/4, Ateneo, Caracas, 1980.

Miller, J.A.   – El final del analisis, Analítica 3/4, Ateneo, Caracas, 1980.

D’un autre Lacan, Ornicar? 28, Navarin, Paris, 1984.

C.S.T., Ornicar? 29, Navarin, Paris, 1984.

 


[1] Trabalho apresentado às “III Jornadas de Psicanálise” da Biblioteca Freudiana Brasileira, em São Paulo, a 1º de julho de 1984.

[2] S. Freud, O Ego e o Id. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. RJ: Imago, vol.XIX, 1976, p. 45.

[3] S. Freud, Recordar, Repetir e Elaborar. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. RJ: Imago, vol. XII, 1976, p. 193.

[4] S. Freud, Construções em Análise. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. RJ: Imago, vol. XXII, 1976, p. 295.

[5] S. Freud, Notas sobre um caso de Neurose Obsessiva. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. RJ: Imago, vol. X, 1976, p. 171.

[6] Ibidem. p. 211.

[7] Ibidem. p. 218.

[8] Colette Soler, Conferência pronunciada na “Biblioteca Freudiana Brasileira” em 03/08/1983: O tempo em análise.

[9] S. Freud, Construções em Análise. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. RJ: Imago, vol. XXII, 1976, p. 295.

[10] S. Freud, Recomendações aos Médicos que exercem a Psicanálise . Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. RJ: Imago, vol. XII, 1976, p. 154.

[11] Jorge Forbes, O Fantasma na Clínica: a direção do tratamento, estudo de uma sessão. Apresentado no III Encontro Internacional do Campo Freudiano, em Buenos Aires, julho 1984.