Por que sou uma mulher? Ou, conversando com (o seminário XIX de) Jacques Lacan
Dorothee Rudiger
Sempre quis saber, por que sou uma mulher. Um belo dia, tive a oportunidade de conversar com Jacques Lacan. Como assim? Não que tive a felicidade de realizar essa conversa ao vivo com o Dr. Lacan. No entanto, pude conversar com seu seminário impresso muitos anos depois de sua morte. Criei um cenário fictício para, no imaginário, trazer Dr. Lacan por meio de alguns de seus enunciados do início de sua conferência de 8 de dezembro de 1971. Nesse cenário o grande Freudiano, como é chamado, me cedeu uma entrevista e me convidou a refletir sobre mina vida de mulher. Peço licença ao leitor para poder transmitir essa conversa.
“Quando nasci,” contei ao Dr. Lacan, “pouco me importava a diferença dos sexos. Para quê? Queria mamar e só. Para meus pais, a estória de meu sexo era outra. Para eles e o resto do mundo eu era dotada de órgãos sexuais femininos e, portanto, uma menina. Mamei muito, cresci e aprendi a balbuciar minhas primeiras palavras. Assim, quando nasceu meu irmão, me dei conta que havia uma pequena diferença entre nós dois. Ele tinha um pedacinho de carne sobrando que fez dele, tal como me explicavam, um menino.”
Depois de me escutar atentamente, Dr. Jacques Lacan comentou: “Eu não neguei, de início, que há uma diferença perfeitamente notável e desde a mais tenra idade entre uma menina e um menino. Essa diferença que se impõe como de nascença é de fato bem natural. … certamente, muito cedo, mais cedo que a gente entende, os indivíduos se distinguem.” E o psicanalista convidou-me, tranquilamente, a prosseguir.
“Na medida em que fui crescendo, percebia que usava roupa de mulher: vestido, fita no cabelo, sapatinho de verniz. Ganhei uma boneca no Natal. Fazia comidinha para a boneca igualzinha à comida que Mamãe fazia para a família. Era assim, nos anos 50. Menina ganhava boneca. Meu irmão ganhava carrinhos e uma caixa de bloquinhos para construir prédios, cidades e torres, tal como os engenheiros adultos que construíam os prédios de verdade. Por quê eu não podia construir prédios e construir torres e porquê ele não podia brincar com as minhas bonecas?“, lembrei-me pensando em minha revolta infantil.
Pacientemente, Jacques Lacan continuou sua explicação. “(Os seres humanos) só se reconhecem como seres falantes rejeitando essa distinção por toda sorte de identificação. Daí a moeda corrente da psicanálise ser o fato de perceber que está aí o maior impulso das fases de cada infância. … As pessoas os distinguem, não são eles que se distinguem.”
“Por que essas diferenças?”, retomei. “Entendia que eu tinha que aceitar a estória dos bloquinhos e das bonecas, tal como o fato de que ele tinha um ‘órgão’, um ‘fazedor de xixí’ que permitia a ele, meu irmão, de fazer xixí em pé, enquanto eu não podia. Era menina. Era um menino ao qual faltava algo, um fazedor de xixí.”
Dr. Jacques Lacan riu e explicou que os adultos incorrem num erro. “Esse erro consiste a reconhecer, claro, que eles se distinguem, mas não em função dos critérios que dependem da linguagem, apesar de que, como eu digo, é pelo fato de que o ser é falante que há o complexo de castração.”
“Então, Dr. Lacan, “ disse intrigada, “essa pequena diferença me faria mulher, porque dizem que faz? Sou castrada porque dizem que sou ou porque não consigo dizer tudo que quero?” E prossegui: “Descobri mais tarde que, mesmo sendo menina eu podia fazer muito daquilo que ‘menina não faz’: praticar esporte em plena menstruação, por exemplo. Não deixei Mamãe saber e fiz. E o sangue não me subiu à cabeça! Não esperei um homem a me tirar da casa dos pais para morar na casa dele. Minhas primas fizeram isso. Eu fui morar longe dos pais e numa república mista. Era militante de grupos políticos e podia tomar a palavra nas assembleias estudantis ‘que nem homem’. Esses homens eram bons companheiros e maus amantes. Por que?”
Para o Dr. Lacan eu tinha em minha luta pela emancipação confundido alguma coisa. Tinha esquecido, na hora do namoro, que a pequena diferença pode fazer toda diferença. “Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, deve-se realmente pagar o preço da pequena diferença que passa de maneira errônea ao real por intermédio do órgão, justamente quando deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que quer dizer ser órgão. Um órgão é instrumento somente pela interpretação com o qual o instrumento se funde, isto é um significante.”, disse o psicanalista.
Continuei com meu relato sobre o que era ser uma mulher. “Era a época que minhas colegas feministas ensinavam que a nós, mulheres, faltava era nada! Tínhamos também um órgão sexual correspondente ao pênis dos homens, agora dispensáveis na busca do prazer. Tendo uma clitóris, diziam elas, nós tinhamos quase que a obrigação de sermos lésbicas. Elas não estavam nem aí com esse negócio de se sentirem inferiores, castradas, estavam nem aí com os homens. Afinal, não precisavam deles, dos ‘paus’.”
Dr. Lacan ri. “Porque elas não se arriscam de tomar o falo por um significante. Fi-então! Phi-então! Signi-phi então!“
“Mas, eu gosto, é de homem”, confessei ao psicanalista. “Convivi bem ou mal com meus homens. Não queria entender, porque não éramos iguais. E forcei muitas vezes a barra para provar que eu era igual. Até que um dia encontrei um homem com quem vivi que a diferença é tudo de bom. Por quê? Não sabia dizer, não havia razão de ser, não havia entendimento e puro prazer. E continuamos não sabendo dos porquês de nossos encontros. Somos diferentes como o sol e a lua. Se eu não fosse uma mulher, se eu não tivesse lá meus mistérios, como deixaria o desejo desse homem aceso?”
Nisso, o Dr. Lacan levantou-se e me deixou uma última palavra que entendi como “desencane” com as diferenças entre homem e mulher. “.. a ausência da relação sexual manifestamente não impede … o laço, mas lhe dá suas condições.“
Desencanei. Por que então sou uma mulher? Não sei. Só sei que, nos braços de um homem igualmente desencanado, ser uma mulher é tudo de bom.