Jorge Forbes
Uma vez que este é um ciclo de debates de Psicanálise e Psiquiatria, vou iniciar contando um debate entre um psiquiatra e um jovem se iniciando na psicanálise. É uma história passada há mais de 10 anos.
Semanalmente, nas 4as. feiras de manhã, o chefe do Serviço de Psiquiatria onde o jovem fazia sua formação psiquiátrica, talvez impressionado pela face de desalento de seu discípulo, lhe perguntava o que se havia passado. Este sempre lhe respondia que estava muito desesperançado por discordar, como sempre, do que lhe tentavam ensinar na noite anterior, em seu seminário de psicanálise.
Passados uns dois meses de repetição deste diálogo, houve um dia que, no corredor, o psiquiatra disse: “É interessante o esforço semanal que você faz de atacar sua inteligência para que possa prosseguir na psicanálise”.
Esta história se passou entre duas pessoas que hoje repartem essa mesa, o Professor Carol Sonnenreich e eu.
“É claro que o jovem era ele e que o psiquiatra era eu…”.
Junto essa pequena história com outra, com o que Lacan diz numa conferência intitulada “Freud no século”.
Essa conferência foi por ele dada em um Serviço de Psiquiatria em Paris, no ano de 1956, comemorando os 100 anos de nascimento de Freud.
Lacan ali se dirigia aos jovens psiquiatras e diz que o fazia com muito prazer, sobretudo porque eles não haviam ainda sido analisados, pois uma vez que o fossem, rapidamente aprenderiam que suas inteligências nada mais eram que “resistências” e que, inclusive, certa psicanálise havia para isso cunhado um termo: intelectualização.
Faço esse pequeno preâmbulo a título de gancho do que me proponho tratar. Alguns aspectos das relações Psicanálise e Psiquiatria.
Tomarei pelo viés da clínica psicanalítica, tentando definir certos pontos fundamentais. Não me preocuparei no cotejo minucioso com a clínica psiquiátrica, não é essa minha intenção e entre outros motivos, dado o grande número de psiquiatras aqui presentes, se for o caso, que o façamos de viva voz.
Se fiz esse preâmbulo, foi para ajudar a pensar que podemos falar em clínica psicanalítica, sem que para tanto ataquemos a nossa inteligência. Há razão na psicanálise, conforme Sonnenreich e Lacan, em momentos diversos anunciaram.
Não é simples, nem evidente falarmos em clínica psicanalítica. A que nos estaríamos referindo? À, por exemplo, clínica da supervisão? Àquela que faz com que cada caso atendido, seja de imediato passado sob o crivo do supervisor, que atestaria, imaginariamente, o correto, ou o incorreto, de um suposto bem-fazer?
Almeja essa clínica transformar o supervisando em supervisor, sustentado, talvez, numa idéia que a psicanálise passa por contágio, como se fosse uma infecção.
Seria a clínica psicanalítica, a clínica do sentimento? Aquela que sustentaria, que através dos seus sentimentos, em algo chamado contra-transferência, o analista seria o anunciante da verdade escondida na profundeza da alma do outro? Ou talvez ainda pudéssemos dizer que a clínica psicanalítica é aquela da cumplicidade (analista – parte sadia do analisando) uma luta contra os maus impulsos, objetivando um Ego forte, sadio e adaptado.
Esta divisão que faço é, evidentemente, arbitrária, superficial e com um quê de caricata. Mas, se a faço e a deixo assim, é simplesmente por entender que toca pontos já por demais discutidos e de conhecimento da maioria.
Em um momento de seu “Seminário XI”, Lacan define a clínica psicanalítica como o tratamento do Real pelo Simbólico. Já antes, em seu Seminário das “Psicoses”, dizia que a psicanálise se preocupa com a estruturação do sujeito pela palavra, ou melhor, dito, pelo significante.
Assim, poderíamos dizer que a psicanálise é a clínica do significante, embora nem tudo aí se passe a esse nível.
A psicanálise é uma clínica freudiana, com uma específica determinação do sintoma. Em Freud o sintoma se articula na fala. “Todo fenômeno que participa como tal do campo analítico, da descoberta analítica, do que temos a fazer no sintoma, nomeadamente na neurose, é estruturado como a linguagem” entende Lacan que sobre isso diz também que: “a única maneira de abordagem, conforme a descoberta freudiana é de colocar no registro mesmo, onde o fenômeno nos aparece, isto é, no nível da fala”.
É com esta frase que Lacan resolve e abandona, em seu Seminário das “Psicoses” a velha discussão entre organogênese e psicogênese.
Essa é assim a primeira especificidade, que me ocorre dizer da psicanálise em relação à psiquiatria. O sintoma psicanalítico está articulado na fala.
Uma vez tendo tentado uma definição da clínica psicanalítica, prossigo. Uma das relações que veria entre psicanálise e psiquiatria é uma relação de medo.
Não deve ser só o desinteresse e as diferenças de campo que podem explicar a pouca freqüência de encontros como esse de psicanalistas e psiquiatras.
Digo, ingenuamente, medo e diria não ingenuamente angústia, lugar desde o qual o analista se interroga sobre o seu ser. Retomando o medo, parece que os analistas têm medo de se confundirem, ou serem chamados de psiquiatras. Isso, em algumas esferas, quase se tornou um insulto. O mais novo insulto da língua portuguesa: psiquiatra.
Nesse xingamento, deve-se entender, reacionário, autoritário, rotulador. E à diferença, o psicanalista seria, o libertário, o que não faz diagnóstico, o que compreende, para quem, cada caso é um caso e do qual nada se pode generalizar.
É óbvio que entendo isso falso pelos dois lados. Como já disse, continuo pelo lado da psicanálise.
Entendo que hajam claras diferenças entre psicanálise e psiquiatria, mas não por isso deveria escamotear que a psicanálise é herdeira da psiquiatria. Talvez, uma filha pródiga, talvez uma filha querida, a opinião dos pais varia, mas herdeira da psiquiatria.
Lacan, ao abrir seu mais famoso livro, os “Escritos”, faz uma homenagem a uma só pessoa, à que se refere como “meu mestre”, Clérambault, que conceituou o automatismo mental, que Lacan pode desenvolver o seu tão conhecido “Outro que fala em mim”.
Durante toda sua vida, ao contrário do que alguns poderiam imaginar, Lacan nunca abandonou o hospital psiquiátrico e mesmo até o recomendava aos que se pretendiam analistas; esse defrontar com a loucura, momento maior do inconsciente a céu aberto.
Poderíamos, é claro, também falar de Freud, que chega à psicanálise pelos pontos interrogantes que a medicina em que estava inscrito lhe apresentava.
As diferenças, portanto, entre psicanálise e psiquiatria, a meu ver, não podem ser feitas sumariamente, numa partição consultório e hospital.
Não me estendo mais sobre os exemplos de Freud, ou Lacan, gostaria agora de voltar a abordar, o que de genérico pode ser pensado em relação à clínica psicanalítica, ou clínica do significante, como antes referida; certos pontos que a serem precisados, talvez possam por vocês ser cotejados, com a clínica psiquiátrica.
Me referirei a três momentos da análise: a entrada, o percurso e o fim.
A Entrada em Análise
A entrada em análise é feita por uma demanda, por uma demanda dirigida ao analista.
Normalmente, essa demanda se apresenta como um pedido de restituição de um saber, que falta para aliviar o do que a pessoa sofre.
Talvez seja essa a forma mais simples de introduzir para vocês, o que Lacan chamou, que sob a transferência, o analista ocupa a posição de Sujeito Suposto Saber.
Essa falta desse saber, que gera o sofrimento, é que podemos juntar com a famosa concepção, que a clínica é o “real” enquanto o impossível a suportar. O impossível a suportar que se articula em sintoma e daí o sofrimento.
Em psicanálise, o analista faz parte do sintoma; a transferência passa por um significante do analista e este, por fazer parte do sintoma, por não estar o analista excluído, ou observador do tratamento, a ele é dado neste período inicial de contato com o paciente, de fazer um cálculo. Um cálculo, portanto, da posição que deverá ocupar no tratamento e desde a qual lhe será possível manejá-lo e conduzi-lo.
Conduzir o tratamento, que não deve ser confundido com conduzir o paciente. É neste momento que o tão mal-falado diagnóstico volta à baila.
Neste tempo inicial chamado por Lacan de Entrevistas Preliminares, prática que podemos depreender de seu ensino, o diagnóstico recobra a importância.
Uma vez que dissemos que a psicanálise trata da articulação do sujeito ao significante e sendo que isto é operado pela castração, Lacan recupera em Fred, três maneiras distintas de dizer NÃO à castração, que originam: neurose, psicose e perversão; recalque, recusa e forclusão.
Poderíamos discutir mais essa questão diagnóstica, pensá-la também em relação a respostas frente ao desejo do Outro, mas isso nos obrigaria, explanações de conceitos, que ultrapassam nosso limite, aqui.
Nessa parte, finalizaria dizendo que há uma responsabilidade por parte do analista, responsabilidade que Lacan devolve ao analista com tal vigor, desde o primeiro momento que este se encontra com a pessoa que lhe vem pedir análise. Responsabilidade essa que se vê, desde a mais simples questão: será que é a mesma a posição do analista frente a um neurótico e a um psicótico? Será que é a mesma posição que ele pode ocupar nesses tratamentos?
Pelo dito anteriormente, sustento que não.
O Percurso do Tratamento
Freud legou um “que fazer” ao analisando. A ele cabe associar livremente. E ao analista? É uma pergunta que há muito ronda as diferenças dos próprios analistas, à qual alguns tentaram responder, criando verdadeiras cartilhas do “bem fazer” analítico, burras como todas as cartilhas e tantas vezes denunciadas por Lacan.
Não há um “bem-fazer”, ou um “que fazer” do analista, que possa ser sustentado fora dos conceitos fundamentais da psicanálise.
A ele analista é dada a interpretação e a construção, sim, mas não há uma fórmula anterior para explicá-las: como, quando e aonde.
Não há resposta programada à famosa pergunta: “Meu paciente falou isso, o que é que eu devo dizer?”, ou pior: “Estou me sentindo mal porque meu paciente só falou”, como se falar fosse pouco, em análise.
À interpretação, podemos associar o termo pontuação. O analista ao pontuar a cadeia de significantes, aponta um sentido, sentido esse que se entrelaça entre o registro do Simbólico e do Real.
Assim, podemos entender a citação, anteriormente referida de Lacan, que a Psicanálise é o tratamento do Real pelo Simbólico.
Apontar o sentido é distinto de apontar a significação. Esta, diferentemente da anterior, se faz na articulação do Simbólico com o Imaginário, um trabalho, habitualmente operado pelo analisando, nos espaços inter-sessões. Tendendo as sessões, a serem cortadas no momento do enigma, momento da pontuação. Esse momento tem um tempo, um tempo que é dado pela própria operação da cadeia de significantes, ou dito mais simplesmente, pela associação livre. Por isso, que o tempo de uma sessão varia e não é, por exemplo, correlato ao tempo de um medicamento que utilizamos na psiquiatria e que de antemão, já conhecemos um prazo habitual de atuação, que quando não correspondido, se altera o medicamento. Esse, o tempo, é mais um ponto que Lacan devolve à responsabilidade do analista.
Sobre a construção, poderíamos dizer que esta se refere ao ponto de inércia de uma análise, aquilo que Freud, em seu texto que tem por título “Construções em Análise”, referiu que fica à parte do conteúdo da neurose, aquilo que não passa pela cadeia significante; se quisermos uma aproximação com a matemática, diríamos que funciona enquanto axioma.
Dessas duas operações da clínica, são relativas às duas posições do analista no tratamento. Como grande Outro, suposto de um saber, no que tange à interpretação e como “petit a”, objeto de desejo, inominável, no que se refere à construção.
Com isto chegamos ao terceiro item, a que nos propusemos, o fim da análise.
O Fim da Análise
O fim de análise, podendo ser entendido como finalidade e como término.
Sobre a finalidade e sobre o fim, retomaria uma frase de Freud, tantas vezes por Lacan citada: “Não importa o que for, é preciso chegar lá”. Se o analista tem “horror a seu ato”, como diz Lacan, é entre outros motivos, porque a psicanálise não tem nada a ver com o bom-senso.
Ao aceitar uma análise, o analista tem a responsabilidade de levá-la até o fim e este não é visto coloridamente por Freud.
Toda análise bem conduzida chega a um impasse, o impasse do rochedo da castração. Se, supostamente, aquele que vem à uma análise sofre porque goza e goza porque descobriu um objeto que lhe completa e o que gostaria que acontecesse fosse uma ortopedia psíquica, no sentido de gozar adequadamente, no fim de uma análise, ao se deparar com a castração, ao se deparar com o inominável objeto de desejo, esse gozo fica relativizado e o desejo possibilitado. Desejo, no entanto, sem nenhuma garantia de estabilidade, desejo testemunho do incerto e não do certo.
É sobre este impasse da castração enunciado por Freud, que Lacan propôs o passe, uma alteração na articulação do ser do sujeito, articulação essa no matema lacaniano representada pela ligação do sujeito com seu objeto, que escapa à representação significante, que escapa à associação-livre.
Este momento, Lacan denominou como momento fantasmático, como “o salto no Real”. Fica clara a divisão do sujeito entre saber e ser, enunciado na famosa inversão da frase cartesiana que dizia “penso logo existo” para “penso onde não existo e existo onde não penso”. Dito de forma mais simples, valendo-se mesmo do título do artigo de Freud, verifica-se no fim de uma análise que há um “Mal-Estar na Civilização”.
Na civilização se está mal, porque existe uma discordância do instrumento que temos para enunciar nosso desejo: a palavra e aquilo que queremos nomear: o objeto.
Sendo assim, no fim de uma análise há uma decepção, isso não é lá uma grande propaganda.
Uma decepção no analisando, sobre sua esperança de que embora ele soubesse, que ele não sabia o que lhe faltava, alguém, o outro, o analista deveria sabê-lo.
O fim de uma análise traz ao sujeito a sua verdade, que estar neste mundo, que ser, um ser de fala, que ser um “fale-ser” é inconciliável com a garantia, mesmo que se quisesse refúgio no sintoma neurótico.
(Palestra proferida no ‘X Ciclo de Debates: Psiquiatria e Psicanálise’ promovido pelo ‘Grupo de Estudos Psiquiátricos do Hospital do Servidor Público Estadual de S. Paulo’, em 15 de junho de 1985.)