/Que política para a psicanálise?

 

 

 Que política para a psicanálise?

Leitura de Famílias, amo vocês de Luc Ferry[1]

 

Alain Mouzat

 

 A leitura do livro de Luc Ferry, Famílias, amo vocês,  recoloca o problema: de que lugar lemos? Enquanto membros de um grupo de estudos de psicanálise – O Projeto Análise dirigido por Jorge Forbes – nossa leitura é motivada pela necessidade de nos situarmos em relação às mudanças do mundo contemporâneo e ao surgimento de um novo laço social, e de elaborar uma nova clínica que responda aos novos sintomas a partir de uma nova ética.

Nessa perspectiva Famílias, amo vocês, fornece ampla matéria à reflexão: tomando o exato contrapé do grito de guerra de Gide, “Familles, je vous hais[2], ele vai traçar o percurso de uma organização humana da qual Lacan, desde “Os complexos familiares na formação do indivíduo”[3], tinha sublinhado o caráter determinante para a construção da relação do sujeito com seu desejo, e para seu modo de integração no laço social. Mas, hoje, num mundo em que muitos denunciam o declínio dessa instituição, como pensar que a família possa ser o vetor de perspectivas inovadoras?

O que mudou então? Ferry sublinha que, na evolução da sociedade, e especialmente na dimensão contemporânea de queda dos ideais, a família se transformou, mas permanece ainda uma referência das mais estáveis dos valores individuais. A família paterna vitoriana – sobre a qual Freud fundou sua interpretação edípica – cedeu. Essa família fundada no princípio de conservação e de transmissão do patrimônio deixou lugar a uma família baseada numa escolha por amor.

Da mesma forma que ruiu a figura da patria potestas, outras figuras fundadoras das grandes transcendências – Deus, pátria, revolução – se esvaneceram. O século XX, nos diz Ferry, foi o grande artesão da desconstrução: desconstrução dos grandes ideais e dos grandes sistemas de significação do mundo. Ninguém, hoje, nas sociedades ocidentais, aceitaria mais morrer pela pátria ou pela revolução. Mas, livres dessas transcendências, ficamos órfãos ou, para retomar o termo que Jorge Forbes introduziu no debate em 2004, “desbussolados”[4]: sem ponto para ancorar um sistema de valores, em que poderemos fundamentar nossa ação?

Ferry, ministro da Educação Nacional durante quatro anos, no governo Chirac, não podia deixar de tirar as conseqüências políticas: frente aos problemas de gestão da sociedade, o governante não tem mais grandes princípios, ideais, “transcendências”, aos quais recorrer. Em nome de que exigir “sacrifícios”, responsabilidade para com a res publica? Valores, tais como, “sagrado” (do qual Ferry relembra a etimologia “digno de sacrifício”) vão ter que ser encontrados no mais íntimo do humano, no modelo do que Hans Jonas[5] chamou de “responsabilidade parental” : a livre escolha de uma responsabilidade irrecíproca e irrestrita.

A família aparece então como o lugar de exercício da liberdade mesma do sujeito, na escolha do objeto de amor, e na decisão de se oferecer como garantia de bem estar a um outro a quem – quando muito – ele está ligado apenas por cromossomos. O exercício da minha liberdade passa exatamente pela aceitação do outro como afirmação da minha singularidade. Em outros termos, a família não é a expressão da intimidade enquanto reduto do privado mais narcísico, mas é o lugar mesmo do exercício do mais íntimo revelado pela aceitação da intrusão do outro. É esse quadro, compartilhado pelas sociedades ocidentais em geral, que deve ser mobilizado por uma ação política congruente com um mundo contemporâneo desprovido de transcendências.

Vale dizer: isso implica uma inversão da relação da política e do indivíduo: o interesse geral não exige mais o sacrifício do interesse particular, mas surge da própria inscrição do indivíduo no laço social: a política se coloca a serviço da “familia”, entendida agora como lugar onde possa se manifestar a singularidade irredutível de cada um.

Com certeza, o livro de Ferry coloca um problema de leitura quanto à realidade social de que trata. Assim, apesar da editora brasileira ter achado por bem suprimir parte do capítulo IV, a seu ver – e com a anuência do autor demasiadamente ligada à realidade francesa, permanecem discrepâncias que tornam a leitura em paralelo da política brasileira e da política francesa um exercício delicado, e que podem alimentar a suspeita de que qualquer tentativa de construção de perspectiva corre o risco de se erguer em “solução universal”, de pouca relevância para outra sociedade.

Para ilustrar o fato, retomemos uma das soluções proposta por Ferry, no original francês, para reduzir o peso orçamentário da Educação Nacional na França. O ex-ministro propõe aumentar o número de horas aula dos professores do segundo grau – compensando em parte com um aumento de salário – que passaria de 16 ou 18 horas para 20 horas semanais.

Evidentemente, a situação provoca o sarcasmo do leitor brasileiro acostumado a outra realidade: o analfabetismo funcional de 68% da população, a existência de duas sociedades estanques manifestada pela existência de duas escolas – a particular e a pública – e até mesmo de duas cadeias! -, etc. A diferença é obvia: enquanto o político francês se preocupa em dinamizar a sociedade questionando um bem estar social – conquistado pelas lutas sociais do século XX – que se alimenta da dívida, a sociedade brasileira se preocupa com o básico: fornecer a todos uma escola que propicie  o acesso ao letramento.

Mas, longe de se constituir em obstáculo, o engajamento de Luc Ferry na política francesa apenas valida os termos de sua reflexão. Não se trata de uma reflexão moralista sobre o que “deveria ser feito”, mas sim – a partir de um exercício concreto da dificuldade de governar – extrair os princípios necessários à orientação de qualquer ação no mundo contemporâneo. Eu os resumiria em dois:

1- É impossível hoje governar a partir de significantes mestres. Mas, esvaziando os céus, ficamos a mercê do mundo dos objetos (as lathouses, diz Lacan[6]), a mercê do mercado (Ver o que Milner[7] denuncia como “política das coisas”). Não se trata de recusar os avanços conquistados pelas lutas sociais durante os séculos XIX e XX, mas de reconhecer que deixar essa dinâmica, esse processo sem sujeito, se desenrolar leva à catástrofe. De um lado, porque não é um processo equitativo – sabemos que essa ordem das coisas acentua as diferenças – e de outro, porque ela leva à falência do sistema (a dívida, herança envenenada que deixaremos para nosso filhos). Donde a necessidade de inventar, não outra ordem, mas outro discurso, outro laço social, fundamentado em valores do íntimo.

2- Esse valor do íntimo só se constrói passando pelo outro. É uma “extimidade”. É o que manifesta Ferry quando critica a recusa da comunidade européia à integração da Turquia. Nos já vimos em O Intruso, de Jean-Luc Nancy[8], o quanto esse intruso é constitutivo do meu mais íntimo.

A partir da distribuição desses termos só posso pensar na construção de Lacan dos quatro discursos, e vislumbrar uma aproximação da proposta teórica de Ferry com o discurso do Analista: pôr no lugar do agente, não o significante mestre já falido, nem o Saber que só torna mais performante a produção dos objetos, mas sim o a , que o outro me revela curiosamente como meu mais íntimo.

 


 

[1] Minha leitura se baseia tanto na edição brasileira do livro de Luc Ferry Família,  amo vocês ( Objetiva, 2008) – , quanto na edição francesa Familles, je vous aime (XO Éditions, 2007). Essa precisão se torna necessária, pois o editor brasileiro alterou profundamente o capítulo IV – com anuência do autor – sem ter a precaução de avisar o leitor brasileiro.

[2] ” Familias, odeio vocês”, a frase se encontra em Les Nourritures terrestres ( 1897) de André Gide (1869-1951) que, no início do século XX,  teve um papel intelectual importante na crítica à moral vitoriana que rege a sociedade francesa da época.

[3] Jacques Lacan,  ” Les complexes familiaux dans la formation de l´individu» (1938), em Autres Écrits , pp.23-84,  (Seuil, 2001)

[4] http://www.ebp.org.br/biblioteca/pdf_biblioteca/Jorge_Forbes_A_%20Psicanalise_%20do_%20Homem_%20Desbussolado.pdf. Essa referência, entre outras,  é particularmente significativa: pois ela inaugura, em 2004,  a reflexão sobre a relação da psicanálise e do mundo globalizado.

[5] Hans Jonas  O princípio responsabilidade ( Contraponto, Editora PUC Rio, 2006). Especialmente, o capítulo IV: “O bem, o dever e o Ser: teoria da responsabilidade”, pp. 149-225.

[6] Jacques Lacan,  Séminaire 17, L´Envers de la psychanalyse, pp 188-189 (Seuil, 1991).

[7] Jean-Claude Milner  La Politique des choses ( Navarin, 2005).

[8] Jean-Luc Nancy, L´intrus, (Galilée, 2000).