/Que vem e que passa – Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, Paris, 2022

Por que muitos homens degradam a mulher e por que poucos homens elevam a mulher?

Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, Paris, 2022.

 

QUE VEM E QUE PASSA

Jorge Forbes

Garota de Ipanema é o nome da canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, composta em agosto de 1962, completando agora 60 anos. Ela divide com Yesterday, dos Beatles, o lugar da música mais reproduzida no mundo. Não há quem não a reconheça, desde o seu acorde inicial. É da letra, de Vinícius de Moraes, que extraí o título desse artigo: “Que vem e que passa”. Lembro que o verso inicial diz assim: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça/ É ela menina que vem e que passa…”.

Este artigo me foi encomendado pela direção deste congresso mundial de Psicanálise, promovido pela AMP – Associação Mundial de Psicanálise. O pedido é que fale de “quando a mulher existe”, tendo em vista, ao avesso, o aforismo de Lacan, muito conhecido nessa comunidade: “A Mulher não Existe”. Adianto, pelo óbvio, que uma compreensão literal dessa afirmação faz horror às feministas, é claro.

Oito colegas, de países diferentes – Argentina, Brasil, Espanha, França, Itália, México, Reino Unido, Rússia – foram convidados a responder a essa provocação. A maioria das mulheres, escolhidas pela direção, para serem comentadas, são personagens literárias, tais como Mafalda, Madame Bovary e Alice. No meu caso, trata-se de uma mulher de carne, osso e gingado, a Garota de Ipanema.

Heloísa Eneida Paes Pinto Mendes Pinheiro, conhecida como Helô Pinheiro, nascida em 7 de julho de 1945, no Rio de Janeiro, tem 76 anos de idade, mora em São Paulo, é casada com o mesmo marido há mais de cinquenta anos e tem quatro filhos: três mulheres e um homem. Para dissipar qualquer dúvida e para afastar as falsas usurpadoras que se autoproclamavam como a famosa garota, Vinícius de Moraes fez questão de chamar a imprensa e declarar, três anos depois de ter composto a toada, que a verdadeira Garota de Ipanema era Helô Pinheiro.

Ela tinha dezesseis para dezessete anos quando encantou, ou seja, quando fez cantar Tom e Vinícius. (Será que eles formavam uma dupla de pedófilos? Pode-se perguntar o bloco dos politicamente corretos, arre!). Helô costumava ir e voltar da praia – de Ipanema – por suposto, passando em frente ao bar Veloso, na rua Montenegro, onde a dupla dividia a mesa e composições. Ali nasceu a Garota de Ipanema. Hoje o bar tem o nome da canção e a rua foi rebatizada com o nome do poeta e diplomata, Vinícius de Moraes.

A Garota de Ipanema é uma mulher que existe na Helô, evidentemente, e em todas as muitas mulheres que a musa faz sonhar.

Questionei-me sobre quem se poderia contrapor à mulher que existe, à mulher do poeta? Respondo, com Freud: aquela que se contrapõe à mulher que existe é a mulher degradada. “A mulher não existe”, como disse Lacan, na civilização, porque o preço do bilhete de entrada na civilização pode ser degradar a mulher, mudá-la de grau. Explico. Em muitos dos seus textos, como a tríade de ensaios dos anos 10 agrupados sob o título “Contribuições para a psicologia da vida amorosa”, ou nos anos vinte e no começo dos trinta, respectivamente, “Futuro de uma ilusão” e “Mal-estar na civilização”, Freud insiste na mesma ideia: não somos seres naturais, ou como bem formulou Sartre: nos animais a essência precede a existência; no humano a existência precede a essência. Somos obrigados a negociar exaustivamente esse lugar no mundo que a biologia nos faltou: negociar nossa entrada e a nossa permanência na civilização. Entre nossos desejos e a moral civilizada, existe uma distância. Para recebermos as benesses de termos um lugar no mundo pagamos um imposto, tal qual o cidadão paga um imposto para ter saúde, educação, segurança etc.

A pessoa, como imposto, tem que renunciar ao seu maior prazer, sua relação fantasiosa com a mãe e com a irmã, conforme escreve Freud em “Degradação universal da vida erótica”, ao comentar a impotência sexual masculina: “Como conteúdo mais geral desse material patogênico destaca-se a fixação incestuosa não superada na mãe e na irmã”. Com medo de se ver excluído da civilização e viver o temível desamparo, ao interpretar um grande prazer sexual no matiz incestuoso, o homem é levado a degradar a mulher, para ter certeza de que aquela que o atrai, que o excita, não é mamãe.

Selecionei alguns exemplos dessa degradação, verdadeiros anti-cânticos opostos ao poetar. Fiquemos pasmos com o renome de seus autores, a começar por Deus. Em resumo: quando a mulher existe, o homem se inquieta.

Comecemos com o Gênesis, quando Deus diz à mulher que levara o homem a comer o que não devia: “Multiplicarei teus trabalhos e misérias em tua gravidez; com dor parirás os filhos e estarás sob a lei de teu marido, e ele te dominará”.

“A mulher é má. Cada vez que tiver ocasião, toda mulher pecará” (Buda, 600 A.C.).

“As mulheres, os escravos e os estrangeiros não são cidadãos” (Péricles, 450 A.C.).

Eurípedes, o dramaturgo, na mesma época: “Os melhores adornos de uma mulher são o silêncio e a modéstia”.

Um pouco depois, o pai da lógica, Aristóteles, saía-se com esta: “A mulher é por natureza inferior ao homem; deve, pois, obedecer… O escravo não tem vontade; a criança tem, mas incompleta; a mulher tem, mas impotente”.

“A mulher deve aprender em silêncio, com plena submissão. Não consinto que a mulher ensine nem domine o marido, apenas que se mantenha em silêncio” (São Paulo, século I).

“Os homens são superiores às mulheres, porque Deus lhes outorgou a preeminência sobre elas. Os maridos que sofram desobediência de suas esposas podem castigá-las: deixá-las sozinhas em seus leitos e até mesmo golpeá-las” (Maomé, século VII).

“Para a boa ordem da família humana, uns devem ser governados por outros mais sábios do que eles; em decorrência, a mulher, mais débil em vigor da alma e força corporal, está sujeita por natureza ao homem, em quem a razão predomina.” (São Tomás de Aquino, século XIII).

“Você não sabe que sou mulher? Quando penso, tenho de falar” (Shakespeare, século XVII).

“Ainda que o homem e a mulher sejam duas metades, não são nem podem ser iguais. Há uma metade principal e outra metade subalterna: a primeira manda e a segunda obedece” (Molière, século XVII).

“Uma mulher amavelmente estúpida é uma bendição do céu” (Voltaire, século XVIII).

“A mulher pode, naturalmente, receber educação, porém, sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas artes” (Hegel, século XIX).

“Todas as mulheres acabam sendo como suas mães: essa é a tragédia” (Oscar Wilde; século XIX).

“A mulher parece resolvida a manter a espécie dentro de limites medíocres, a procurar que o homem não chegue nunca a ser semideus” (Ortega y Gasset, século XX).

Elias Canetti, búlgaro, Prêmio Nobel de Literatura de 1981: “Sua confusão era tal que começou a piorar mentalmente, como uma mulher”.

Finalmente, fora da ordem histórica, o epitáfio que o poeta inglês John Donne (século XVII) inscreveu na tumba de sua esposa: “Enquanto você repousa, eu descanso”.

Em vista desses desaforos, palavra que significa tirar de um lugar e pôr no outro, “desa-forar”, somos levados a nos perguntar: qual é o denominador comum desses insultos contra a mulher? Responderia ser a dificuldade em suportar a falta de um nome adequado a uma mulher, pois não há uma adequação possível e garantida. No turbilhão da revolução tecnológica que nos sacode, não existe algoritmo que traduza uma mulher. Nesse sentido, podemos aproveitar o momento, para comentar rapidamente um tema conexo, o da diferenciação dos três grandes posicionamentos atuais frente à IA – Inteligência artificial: os biodefensores, os transhumanistas e os pós-humanistas. Não haverá uma raça que substitua a raça humana, como almejam enlouquecidamente os pós-humanistas – penso naqueles reunidos na auto proclamada Singularity University – enquanto a mulher não existir no algoritmo.

Voltemos ao campo clínico. Dizer que é uma proteção ao incesto, como Freud pensou, é uma solução ambivalente: se por um lado explica os motivos da degradação, por outro lado, deixa entender que só não a alcanço, a mulher, por ela ser um pecado. Se não fosse um pecado eu a alcançaria? Os avanços teóricos clínicos de Lacan, nesse território, são fundamentais. Lacan, com seu conceito de Real (Real é o que volta sempre ao mesmo lugar e que não tem nome nem nunca terá, parodiando Chico Buarque de Hollanda, “O que não tem medida, nem nunca terá/ O que não tem remédio, nem nunca terá/O que não tem receita”). O conceito de Real possibilita tratar nossa falta essencial, anteriormente referida, como sendo da natureza singular do humano e não como um defeito. Lacan é mais radical que Freud. Freud procurava, para achar, Lacan achava mais além do procurar. Conhecemos a frase de Picasso, citada por Lacan, quando o gênio catalão afirma: “Eu não procuro, eu acho”. O Real antecede o Simbólico; na prática, o ato é anterior ao conhecimento, verificamos esse acontecimento todos os dias, em nossos consultórios.

Se a mulher não existe na conformidade da civilização, fazê-la existir é muito perigoso, embora também seja divino e maravilhoso, como cantou Caetano Veloso, outro músico popular brasileiro. É perigoso por fazer a pessoa sentir que seu imposto foi devolvido, que a civilização não aceitou seu pagamento, sua moeda sintomal. O Real de Lacan, nos possibilita dirigir um tratamento, uma análise, no eixo do Freud explica ao do Freud implica. De uma mulher que não existe, à uma mulher que existe. Ela existe por um momento; ela é um presente, entre o tempo de chegar e o de partir. Na música de Milton Nascimento, “A hora do encontro é, também, despedida”.

Cantam Tom e Vinícius: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar”. “Que vem e que passa” alude a um presente fugidio que nos excede. Pode-se entender: que vem do passado – que não é mais -,  e que passa ao futuro – que não é ainda. Quanto ao presente, como chamá-lo? Invento seu nome: “Garota de Ipanema” … a caminho do amar.

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Paris, 30 de março de 2022

Trabalho apresentado no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, 2022.

 

 

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