Claudia Riolfi
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Álvaro de Campos(3)
Que interesse poderia haver ao psicanalista um trabalho a respeito do estado de exceção, cuja pesquisa propõe a explorar a “terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida…” (p.12)? As ligações não são nada óbvias e Agamben não facilita: vai sem escalas para o interior do direito e salve-se quem puder.
Eu exemplifico. Recorrendo ao trabalho de Schmitt,(4) Agamben escreve, como se fossem evidentes, postulados para lá de provocativos. Em especial, causa espécie a assimilação feita por ele entre a teoria do estado de exceção e a doutrina da soberania, uma vez que, a partir dela, o autor dá plenos poderes ao soberano, considerado como aquele que, por ser responsável pela decisão “sobre o estado de exceção, garante sua ancoragem na ordem jurídica” (p.56).
Para empreender sua discussão, Agamben tem como pano de fundo os acontecimentos catastróficos de magnitude tal que levariam um governante a interpretá-los como consistindo em eventos cujas potenciais conseqüências demandariam a suspensão da lei habitual e a criação de uma nova ordem para que a vida pudesse ser preservada.
Admitindo-se que esta é uma leitura legítima para as palavras de Agamben, pode-se dizer, inclusive, que o ponto de atração mais ou menos velado que moveu o escritor para que produzisse sua reflexão foi o de separar a lei da vida humana propriamente dita. Em suas palavras: “Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reinvindicava para si o nome política”. (p.133)
Pode-se dizer, a partir daí, que o livro de Agamben é uma denúncia. Ele se opõe a estes tempos sombrios nos quais, por incrível que isso possa parecer, fazem-se as coisas sem desejo e sem brilho nos olhos apenas porque ainda não foi possível perceber que a máquina que nos rege tem o seu centro vazio, isto é, consiste em uma norma sem relação com a vida. (p.131).
Não é muito difícil acompanhar sua linha de raciocínio quando se pensa em fenômenos de escopo social mais amplo como, por exemplo, a guerra civil instalada à luz do dia em “cidade maravilhosa”, entretanto, já que terremotos, furacões ou golpes de estado são fenômenos que não costumam freqüentar tão livremente o divã do analista, construir uma resposta para a questão com a qual iniciei este trabalho não é assim tão banal.
Mas tento. E nem preciso ir sozinha. Musicando a palavra poética, vamos de Chico, para, digamos, dar o tom:
Chico Buarque(5)
Foi relendo as palavras que o eu lírico de Chico dirige à Lola, personagem título da canção, que eu pude me reconciliar com Agamben e, a partir de sua questão formular uma que me é bem mais cara: O que, na história de vida de alguém, poderia ser comparado a uma catástrofe de tal magnitude que, frente a ela, tudo o que já se pensou e o que se fez tomba obsoleto, lançando o vivente que é por ele visitado no mais inconsolável espanto e desamparo?
Ah! A este eu conheço, e chama amor, aquele que, como dizia o poeta português, é o mais esdrúxulo dos sentimentos.(6) Forbes(7) já discorreu a respeito, diga-se de passagem. No texto que serviu de inspiração para estas mal traçadas, afirmou que há “uma vergonha em todo amor, uma desadaptação, uma quebra na harmonia do conjunto.” (p. 18). E, para além do escrito, causando-o e sustentando-o, há a clínica.
Em uma análise, a narrativa de um amor vivido como “estado de exceção” é praticamente coisa corriqueira. Para quem o pode, é verdade. Varia o enredo das historietas que perfilam nos consultórios, contadas em meio a silêncios pontuados por suspiros que são signos de paixão, mas a presença de um embaraço inexplicável para quem o experimenta as une.
Um exemplo. Fulano e beltrana são francamente adultos. Nos lugares onde circulam, ambos têm fama de bravos. Não no sentido de mal-humorados, mas, sim, de corajosos, desembaraçados com as palavras. Não engolem desaforo e nem mandam recados. Falam muito, e bem.
Isso tudo, separados. Coloque-os juntos e, na narrativa da moça, será impossível diferenciar os seus impasses daqueles vividos por um casal, digamos, de uns doze, treze anos, no máximo. Ela bem que gostaria de ser mais eloqüente, mas está além de suas forças. Se eu abrir a boca pra, digamos, fazer uma insinuação velada, ela reclama, vai ser mais ou menos como se eu tivesse mandado publicar a notícia do meu amor no New York Times…
Não creio que minta. Não há como fugir do escândalo quando se disse “sim” para o impacto do amor. Nem adianta tentar dizer do amor com o discurso do bom senso. As cartas de amor têm de ser ridículas porque, se há amor, ele não é passível de ser recoberto pelas palavras. O corpo do vivente chega na frente. Impõe-se e dá vexame certeiro. Não há mãe de santo que possa evitar a essa, digamos, demonstração de uma possessão.
Frente a um quadro destes, o psicanalista é o soberano? É ele quem tem plenos poderes? Não creio. Mas entendo que faz parte de sua lida trabalhar para que, por estar amando, o analisante possa se responsabilizar por tudo de vivo que desse amor possa advir. E, seguindo as pistas de Agamben, para que também possa se responsabilizar pela invenção de uma outra norma, que, necessariamente dando os contornos dessa criação, a torne visível no mundo em um forma, se não menos vexaminosa, pelo menos mais contagiante.
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1. As palavras que aqui se seguem procuram dar conseqüência ao trabalho de AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
2. Psicanalista, doutora em lingüística e docente da Faculdade de Educação da Universidade em São Paulo. Pesquisadora do Projeto Análise. Contatos: riolfi@usp.br.
3. PESSOA, Fernando. Cartas de Amor (Assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos, em 21-10-1935). In: Fernando Pessoa – Obra Poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1972. P. 399.
4. No caso, a SCHMITT, C. Politische Theologie, Munique, 1922.
5. BUARQUE, Chico. Lola. Long Play: Francisco. Rio de Janeiro: BMG Ariola, 1987.
6. Eu cito literalmente o excerto do poema: (Todas as palavras esdrúxulas,/ Como os sentimentos esdrúxulos,/ São naturalmente/ Ridículas.). PESSOA, Fernando. (op. cit).
7. FORBES, Jorge. O amor e o ridículo. In: Você quer o que deseja? São Paulo: Best Seller, 2004. Pp. 18-20.