por Jorge Forbes
Vim aqui para ser interpretado por Souza Dantas, não para interpretá-lo. Para interpretar Souza Dantas, muito pouco poderia acrescentar à competência do exímio historiador Fábio Koifman, exposta em seu livro “Quixote nas Trevas”. O que eu poderia dizer sobre o diplomata que o nosso embaixador Marcos Azambuja, tido e havido como um dos melhores representantes desse país, não o faça com a sua habitual excelência? E sobre o HASHOÁ e o sofrimento da raça humana, sempre aprendo e me emociono com o rabino Henry Sobel. Constato a minha responsabilidade de dividir essa conversa com os que acabei de citar. Agradeço ao convite da CIP e a todos os organizadores. Um obrigado especial à idealizadora dessa reunião, Maria Helena Bogochvol.
Não vim aqui, como parente, nem como representante da família Souza Dantas, mesmo que assim possam me ver. Parto da reflexão de que herói não tem parente, só a consangüinidade não basta. Escolhi falar sobre a interpretação de Souza Dantas, no sentido de que é ele que nos interpreta, e não o contrário.
O herói. Todos nós construímos uma idéia de herói a partir de histórias infantis. O herói era invencível como Hércules, sagaz como Ulisses, quase imortal como Aquiles. Além do mais, todos eram jovens, bonitos, atléticos. O herói dos nossos sonhos infantis tinha cara de herói, tinha nascido para ser herói, não podia ser outra coisa na vida senão herói. Os heróis, nós os admirávamos e ao mesmo tempo nos tranqüilizávamos em nossa vida mediana, em nossa mediocridade. Chegamos até a criar em nossa língua a expressão “não nasci para ser herói”, para nos justificarmos.
E Souza Dantas? Luiz Martins de Souza Dantas foi alguém igualzinho a qualquer um de nós em quase tudo. Ele fez direito, como muitos; ele foi embaixador, como muitos; ele se fascinou por Paris, como muitos; enfim, ele poderia ser uma pessoa igual a qualquer outra. Temos que acrescentar: em quase tudo igual a qualquer outra. É exatamente por isso, pelo fato de Souza Dantas não ter a força de Hércules, nem a semi-imortalidade de Aquiles, nem a sagacidade de Ulisses, que ele nos interpreta, que ele nos tira da nossa acomodação contemplativa. Souza Dantas é um outro tipo de herói, distinto do herói clássico. Em que reside o seu heroísmo? Em um pequeno fator, um mínimo detalhe: Souza Dantas soube suportar uma diferença radical quando todos os outros, seus colegas de trabalho e seus amigos, preferiram a tranqüilidade da burocracia instituída.
Jacques Lacan estabeleceu dois tipos elementares de comportamento humano na ética do desejo. Existe o grupo dos que defendem o princípio do primum vivere – nome bonito para disfarçar o popular “primeiro salvar a sua pele” –, e outro grupo, infelizmente, muito menor, daqueles para quem a vida biológica tem pouca importância se a honra for tocada.
Honra deve ser compreendida, não no sentido glorioso de um Caxias ou de um Garibaldi, mas no sentido daquele ponto íntimo de vergonha que existe dentro de cada um que, se ultrapassado, a vida perde o seu sentido.
Souza Dantas faz parte desse pequeno grupo, que Israel soube cultivar nas alamedas do Jardim dos Justos. Ele nos incomoda, ele nos interpreta, porque materializa a resposta ética de Pablo Picasso. Um dia lhe perguntaram como ele tinha sido capaz de pintar a Guernica, e ele respondeu: não me perguntem como eu a pintei, porém saibam que se eu o fiz é porque é factível. O ato de Souza Dantas, mostrado em suas múltiplas ações, o confirma. Nada é impossível ao homem, o que é impossível ele não faz.
O historiador Fábio Koifman deixa claro o momento em que Souza Dantas se sente obrigado a sair do automaton da burocracia ministerial. Koifman chama a atenção para a diferença de comportamento de Souza Dantas na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Em 1916, durante a Primeira Guerra, ocupando interinamente o Ministério das Relações Exteriores, ele critica duramente o discurso de Rui Barbosa, então Embaixador Extraordinário para a comemoração do Centenário da Independência Argentina. Rui Barbosa, em Buenos Aires, havia contestado a neutralidade brasileira na guerra.
Pode parecer que, vinte e quatro anos depois, Souza Dantas teria abraçado a posição de Rui. Não é fato.
O heroísmo de Souza Dantas não se explica por um posicionamento favorável a um dos lados beligerantes – não é um heroísmo de soldado –, mas sim por ter se defrontado com uma exceção à humanidade, uma vergonhosa exceção: o extermínio em massa de pessoas.
Não é suficiente dizer que Souza Dantas tenha se indignado. Normalmente, os indignados falam mais de si mesmos que dos acontecimentos. Os indignados ficam tão preocupados em propagar a própria dignidade, que acabam não tendo mais tempo pra nada.
Souza Dantas, ao contrário, sem alarde – a ponto desta homenagem ter demorado sessenta e cinco anos –, orientado só por um aspecto, a vergonha e a honra – duas faces da mesma moeda –, se transformou num salvador de vidas como está no convite para este nosso encontro.
A interpretação de Souza Dantas continua sendo necessária. Por mais que lembremos em filmes, em livros, em conferências dos horrores do nazismo, para que não sejam repetidos, por mais que nos valhamos das últimas testemunhas pessoais ainda vivas, não conseguimos afastar o perigo recorrente do racismo e das propostas eugênicas cientificistas de tratamento. Esse perigo não deixará de acompanhar a espécie humana.
Agora mesmo no Brasil, uma presidente de um conselho de psicologia pede uma lei para que os psicólogos denunciem a intenção de maus-tratos sobre crianças ou velhos, relatada por pacientes. Repito, ela quer punir a intenção. Outra lei quer obrigar os advogados a denunciarem imediatamente clientes que tenham cometido algum tipo de contravenção. E ontem os jornais anunciavam que uma cartilha havia sido lançada fazendo uma ortopedia da língua portuguesa, estabelecendo aquilo o que podíamos e o que não podíamos falar. Pior, isto foi feito pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em um especial ataque aos direitos que deveria defender.
Dizia que esse perigo sempre acompanhou o homem e o acompanhará. Isso se dá por um fenômeno que, já tendo trabalhado sobre ele, resumiria da seguinte maneira: damos mais credibilidade ao insulto que aos elogios. Se elogiamos alguém, o elogiado diz que não é com ele e que quem elogia é visto como exagerado, quando não bajulador. Por outro lado, quando se insulta alguém, o insultado responde atestando a ofensa e quem insulta é visto como corajoso, como aquele que diz a verdade. Em síntese: insulto pega, elogio não.
É interessante notar que o termo insulto não é sinônimo de xingamento. Insultar quer dizer saltar sobre. Em gíria, cair a ficha. Poderíamos, no limite, cumprimentar uma pessoa bem vestida falando “como você está bem insultada”, porém a língua é viva e o fato que são os xingamentos que insultam, que caem bem, acabou por equivaler insulto a xingamento.
Por que estou fazendo essa referência? Pela razão de que o homem, à diferença dos animais, vive em contínuo processo de reorientação de sua existência.
Já perguntava o poeta Keats se o rouxinol que ele via no parque era o mesmo que Shakespeare tinha visto. E, se assim fosse, se ele, Keats, seria também igual a Shakespeare. A resposta é: o rouxinol é o mesmo, porém Keats não é Shakespeare.
Essa necessidade constante de orientar a experiência humana proporciona o surgimento de radicalismos atrozes. Neste momento, na globalização, isso é notável. Vivemos uma passagem de época da qual um dos índices é a perda de formas padronizadas de comportamento que caracterizaram a época anterior do mundo industrial.
Esse mundo, diferente do globalizado, era universal, quer dizer, versava sobre o UM. Orientava-se ao UM.
O mundo globalizado proporciona múltiplas escolhas e por isso exige mais responsabilidade de cada pessoa. Essa responsabilidade angustia. Vemos muitos se dizerem estressados perante a multiplicidade de opções. O que seria equivalente a dizer que alguém é gordo porque vai a restaurante de bufê e tem que comer de tudo que está na mesa para ser justo com todos os animais. Come o boi, a galinha, o porco e o peixe para que ninguém fique chateado. Estressado é aquele que não consegue optar e não consegue optar porque toda opção angustia.
As soluções insultuosas são soluções tranqüilizadoras. O insulto, o racismo, a eugenia, o cientificismo vivem de um maniqueísmo infantil de certo e errado. Infantil, porém atraente, muito atraente.
A interpretação de Souza Dantas, a interpretação que ele nos lega com seu ato, nos interpreta e nos interroga. A sua história, tão parecida com a nossa, é um alerta que a acomodação contemplativa é a pior forma de covardia humana. Seja em momentos de importância circunscrita, seja no insulto à humanidade como o HASHOÁ, que lembramos nesta homenagem.
Faço votos de que saiamos daqui inoculados pela virulência da posição do nosso embaixador. Ele nos representou. Resta saber se estamos à altura de sua representação, se também receberíamos o visto: BOM PARA O BRASIL, BOM PARA A HUMANIDADE.
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Palestra proferida na mesa-redonda “BOM PARA O BRASIL”, em homenagem ao Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, na CIP-Congregação Israelita Paulista, em 5 de maio de 2005, IOM HASHOÁ.